Estamos em meados do século XVI, no quarto onde D. João, terceiro de Portugal, tomou a decisão de oferecer a seu primo, o arquiduque austríaco Maximiliano, um elefante indiano, por razões implicitamente políticas. E é precisamente a partir deste acontecimento que a uma fantástica odisseia se dá início.
A premissa é, no entanto, a desculpa para dar começo, como Saramago já bem nos habituou, a uma profunda análise da humanidade, estudando e expondo mordazmente todas as suas ideias pré-concebidas, contradições e fraquezas, elevando dois heróis distintos que dependem, estreitamente, um do outro: um elefante chamado Salomão (depois “Solimão”) sem falsos moralismos que se vê, de um momento para o outro, como o centro de atenções, podendo ver, de perto, uma sociedade madrasta e, ao mesmo tempo, risível, e o seu cornaca (tratador) chamado Subhro (depois “Fritz”), que dele o cuida e ama, sendo, provavelmente, a humanização do outro animal, já que tantas características partilham. Subhro é, como o autor o descreve na recta final, a “personagem decisiva em todos os momentos do relato, dos dramáticos e dos cómicos, arriscando o próprio ridículo sempre que foi achado conveniente para o bom tempero da narrativa, ou apenas tacticamente aconselhável, disfarçando as humilhações sem levantar a voz, sem alterar a expressão da cara, cuidadoso em não deixar transparecer que, se não fosse por ele, não haveria ninguém para levar o elefante a Viena”.
É, contudo, a viagem de Salomão desde a capital portuguesa à austríaca (passando também por Castelo Novo, Valladolid, Génova, Tentro, Bolzano e Bressanone / Brixen), que podemos ver o claro impacto que um animal enorme, supostamente irracional (Saramago até brinca com o facto de que o elefante tem espaço suficiente para pensar), provoca nos seres humanos. Como melhor exemplo disto temos o comandante português que dirigiu a viagem de Lisboa a Valladolid com todos os outros homens que ajudaram no transporte da comida e afins para o elefante, e que sofreu uma feliz modificação no seu comportamento: antes dogmático e impositivo, passou a considerar, onde inicialmente acharíamos altamente incerto, Subhro como amigo, pela convivência que foram tendo os dois (aliás, os diálogos entre eles são notáveis).
Convém realçar também a grande crítica religiosa feita, mais uma vez, em diversas ocasiões, mas que se salienta em duas ocorrências cómicas: quando o elefante é “abençoado” por um padre e, irritado, o deita para o chão com a pata, e quando um outro sacerdote, italiano, ordena Subhro, agora Fritz, admitindo verbalmente a hipocrisia eclesiástica, que faça com que o elefante se ajoelhe à porta da igreja, teatralizando aquilo que é, aparentemente, um milagre, de forma a conseguir mais “adeptos” cristãos (já que, relembremo-nos, situamo-nos na época do protestantismo luterano).
O que prima, conjuntamente, na obra, é a já conhecida interacção leitor-autor, evidenciada com a utilização frequente da primeira pessoa do plural na narração, e tornou-se interessante, e até, a certas alturas, hilariante, seguir a acção com o próprio Saramago. Como dois exemplos n’A Viagem do Elefante temos, diria eu, a parte onde o autor decide, e anuncia-o na narração, converter os processos de medida utilizados no século XVI (como a légua) para os da actualidade (o quilómetro, por exemplo), para ser mais inteligível ao leitor (e compara esta modificação histórica a um filme legendado, dado que, como sabemos, e parafraseando Saramago, as legendas suprem a ignorância ou um insuficiente conhecimento da língua falado pelos actores. É também de salientar que esta ligeira mutação nos termos utilizados na narração ocorre porque, supostamente, o leitor, caracterizado por ser “curioso e amante do saber” (serão todos?), pergunta ao narrador como se entendiam os portugueses, perante tantos processos de medida, respondendo Saramago, nesse diálogo meramente fantasioso que tem connosco, com uma pergunta, “como nos entenderemos nós”, dando de seguida a solução que já referi acima. O segundo outro grande exemplo, e também mais cómico, é quando Saramago pede ao leitor, na altura em que Subhro, ou Fritz, o cornaca, que a meio da noite tem uma vontade imensa de defecar e fá-lo apressado num agregado de árvores, “desviemos a vista enquanto ele se livra da roupa, que, milagrosamente, ainda não sujou, e esperemos que levante a cabeça para ver o que nós já vimos, aquela aldeia banhada pelo maravilhoso luar de agosto (…)”.
“Quando o cérebro divaga, quando nos arrebata nas asas do devaneio, nem damos pelas distâncias percorridas, sobretudo quando os pés que nos levam não são os nossos”. E é precisamente desta forma que nos sentimos a ler este livro. A história culmina, pois, num final trágico que não vos arruinarei mas que me pareceu um pouco abrupto e acelerado, com um episódio rápido de salvamento que ilustra, a meu ver, apesar da simplicidade, as circunstâncias difíceis com que se deparou José Saramago durante a escrita e, depois, a magnífica “ressurreição” que teve por uma luta entre a vida e a morte. Aliás, a retrospectiva de uma vida é analisada, por breves momentos, na passagem que afirma que “o passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas” ou, até, quando escreve que “a vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginámos silêncios, e súbitos regressos quando pensámos que não voltaríamos a encontrar-nos”. No entanto, o livro serve para mostrar a importância, não propriamente de ter um elefante, mas de ter alguém disposto a ajudar-nos em situações limite, alguém próximo, um amigo para a vida inteira.
Salomão torna-se, pois, o pretexto para viajarmos a um universo que nos é bem conhecido, o dos animais mais (ou talvez menos) civilizados e coerentes, com uma história que nos presenteia de forma brilhante com as acções e cogitações (umas mais estrambóticas do que outras) que a mente humana pode formar, ao lado de outros seres, racionais ou não, explorando toda a sua vertente moral. O elefante torna-se, por outras palavras, nada mais, nada menos, do que a plateia incensurável de uma peça de teatro humana interminável, burlesca e, por vezes, quando ao elenco convém, congruente, compassiva e sensata.
Convém realçar também a grande crítica religiosa feita, mais uma vez, em diversas ocasiões, mas que se salienta em duas ocorrências cómicas: quando o elefante é “abençoado” por um padre e, irritado, o deita para o chão com a pata, e quando um outro sacerdote, italiano, ordena Subhro, agora Fritz, admitindo verbalmente a hipocrisia eclesiástica, que faça com que o elefante se ajoelhe à porta da igreja, teatralizando aquilo que é, aparentemente, um milagre, de forma a conseguir mais “adeptos” cristãos (já que, relembremo-nos, situamo-nos na época do protestantismo luterano).
O que prima, conjuntamente, na obra, é a já conhecida interacção leitor-autor, evidenciada com a utilização frequente da primeira pessoa do plural na narração, e tornou-se interessante, e até, a certas alturas, hilariante, seguir a acção com o próprio Saramago. Como dois exemplos n’A Viagem do Elefante temos, diria eu, a parte onde o autor decide, e anuncia-o na narração, converter os processos de medida utilizados no século XVI (como a légua) para os da actualidade (o quilómetro, por exemplo), para ser mais inteligível ao leitor (e compara esta modificação histórica a um filme legendado, dado que, como sabemos, e parafraseando Saramago, as legendas suprem a ignorância ou um insuficiente conhecimento da língua falado pelos actores. É também de salientar que esta ligeira mutação nos termos utilizados na narração ocorre porque, supostamente, o leitor, caracterizado por ser “curioso e amante do saber” (serão todos?), pergunta ao narrador como se entendiam os portugueses, perante tantos processos de medida, respondendo Saramago, nesse diálogo meramente fantasioso que tem connosco, com uma pergunta, “como nos entenderemos nós”, dando de seguida a solução que já referi acima. O segundo outro grande exemplo, e também mais cómico, é quando Saramago pede ao leitor, na altura em que Subhro, ou Fritz, o cornaca, que a meio da noite tem uma vontade imensa de defecar e fá-lo apressado num agregado de árvores, “desviemos a vista enquanto ele se livra da roupa, que, milagrosamente, ainda não sujou, e esperemos que levante a cabeça para ver o que nós já vimos, aquela aldeia banhada pelo maravilhoso luar de agosto (…)”.
“Quando o cérebro divaga, quando nos arrebata nas asas do devaneio, nem damos pelas distâncias percorridas, sobretudo quando os pés que nos levam não são os nossos”. E é precisamente desta forma que nos sentimos a ler este livro. A história culmina, pois, num final trágico que não vos arruinarei mas que me pareceu um pouco abrupto e acelerado, com um episódio rápido de salvamento que ilustra, a meu ver, apesar da simplicidade, as circunstâncias difíceis com que se deparou José Saramago durante a escrita e, depois, a magnífica “ressurreição” que teve por uma luta entre a vida e a morte. Aliás, a retrospectiva de uma vida é analisada, por breves momentos, na passagem que afirma que “o passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas” ou, até, quando escreve que “a vida ri-se das previsões e põe palavras onde imaginámos silêncios, e súbitos regressos quando pensámos que não voltaríamos a encontrar-nos”. No entanto, o livro serve para mostrar a importância, não propriamente de ter um elefante, mas de ter alguém disposto a ajudar-nos em situações limite, alguém próximo, um amigo para a vida inteira.
Salomão torna-se, pois, o pretexto para viajarmos a um universo que nos é bem conhecido, o dos animais mais (ou talvez menos) civilizados e coerentes, com uma história que nos presenteia de forma brilhante com as acções e cogitações (umas mais estrambóticas do que outras) que a mente humana pode formar, ao lado de outros seres, racionais ou não, explorando toda a sua vertente moral. O elefante torna-se, por outras palavras, nada mais, nada menos, do que a plateia incensurável de uma peça de teatro humana interminável, burlesca e, por vezes, quando ao elenco convém, congruente, compassiva e sensata.
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