quarta-feira, agosto 12, 2009

:Os Filmes de José Saramago


Até grandes escritores têm filmes que marcaram a sua vida e, portanto, é com prazer que partilho convosco três publicações que o Prémio Nobel da Literatura português fez no seu blog público, as quais transcrevo de seguida e recomendo vivamente a leitura:

Charlot (18/05/2009)

Numa destas últimas noites vi na televisão alguns filmes antigos de Chaplin, a saber, dois ou três episódios nas trincheiras da primeira guerra mundial e um filme mais extenso, “The Pilgrim”, que, retoma, com menos felicidade que noutros casos, o tema recorrente de um Chaplin sem culpas procurado pela polícia. Não sorri nem uma única vez. Surpreendido comigo mesmo, como se tivesse faltado a uma jura solene, dei-me ao trabalho de tentar recordar, tanto quanto me seria possível oitenta anos depois, que risos, que gargalhadas me terá feito soltar Charlot nos dois cinemas populares de Lisboa que frequentava quando tinha seis ou sete anos. Não recordei grande coisa. Os meus ídolos nessa época eram dois cómicos suecos, Pat e Patachon, que esses, sim, eram, para mim, autênticos campeões da gargalhada. Continuando a reflectir com os meus botões, sempre bons conselheiros porque em princípio não mudam de casa nem de opinião, cheguei à inesperada conclusão de que Chaplin, afinal, não é um cómico, mas um trágico. Repare-se como tudo é triste, como tudo é melancólico nos seus filmes. A própria máscara chaplinesca, toda ela em branco e negro, pele de gesso, sobrancelhas, bigode, olhos como pingos de alcatrão, é uma máscara que em nada destoaria ao lado das representações plásticas clássicas do actor trágico. E há mais. O sorriso de Chaplin não é um sorriso feliz, pelo contrário, aventuro-me a dizer, sabendo ao que me arrisco, que é tão inquietante que ficaria bem na boca de qualquer drácula. Se eu fosse mulher, fugiria de um homem que me sorrisse assim. Aqueles incisivos, demasiado grandes, demasiado regulares, demasiado brancos, assustam. São um esgar no enquadramento rígido dos lábios. Sei de antemão que pouquíssimos vão estar de acordo comigo. O caso é que, uma vez que foi decidido que Chaplin é um actor cómico, ninguém lhe olha para a cara. Creiam no que lhes digo. Olhem-no de frente sem ideias feitas, observem aquelas feições uma por uma, esqueçam por um momento a dança dos pezinhos, e digam-me depois o que viram. Chaplin levaria todos os seus filmes a chorar se pudesse.

Cinco Filmes (23/07/2009)

Cinco filmes me foi pedido que recordasse. Não teria de precocupar-me se seriam ou não os melhores, os mais famosos, os mais citados. Bastaria que me tivessem impressionado de maneira particular, como nos impressiona um olhar, um gesto, uma intonação de voz. Escolhê-los não foi difícil, pelo contrário, apresentaram-se-me com toda a naturalidade, como se não tivesse andado a pensar noutra coisa. Ei-los, então, mas a ordem por que os menciono não é nem deve ser tomada como uma classificação por mérito. Em primeiro lugar (algum teria de abrir a lista), “O sal da terra” de Herbert Biberman, que vi em Paris no final dos anos 70 e que me comoveu até às lágrimas: a história da greve dos mineiros chicanos e das suas corajosas mulheres abalou-me até ao mais profundo do espírito. Cito a seguir “Blade runner” de Ridley Scott, visto também em Paris num pequeno cinema do Quartier Latin pouco tempo depois da sua estreia mundial e que, nessa altura, não parecia prometer um grande futuro. Sobre “Amarcord” de Fellini, desse, ninguém teve nunca dúvidas, estava ali uma obra-prima absoluta, para mim talvez o melhor dos filmes do mestre italiano. E agora vem “A regra do jogo” de Jean Renoir, que me deslumbrou pela montagem impecável, pela direcção de actores, pelo ritmo, pela finura, pelo “tempo”, enfim. E, para terminar, um filme que me acode à memória como se viesse da primeira noite da história dos contos à lareira, “Pat & Patachon” moleiros, aqueles sublimes (não exagero) actores dinamarquese que me fizeram rir (tinha então seis ou sete anos) como nenhum outro. Nem Chaplin, nem Buster Keaton, nem Harold Lloyd, nem Laurel e Hardy. Quem não viu Pat & Patachon não pode saber o que perdeu…

Almodóvar (05/08/2009)

Cheguei tarde à “movida”, quando ela já tinha deixado os seus trajes de arlequim urbano, as suas lágrimas falsas de rimel negro, os seus postiços, as suas perucas, os seus risos e a sua tristeza. Não quero dizer que as “movidas” sejam tristes por definição, o que digo é que têm de se esforçar muito para não deixar que lhes saia da boca, no meio da festa e da orgia, a pergunta definidora: “Que faço eu aqui?” Atenção, estou contando uma história que não é minha. Nunca fui homem para “movidas” e se alguma vez acontecesse deixar-me seduzir, estou certíssimo de que não faria melhor figura que D. Quixote no palácio dos duques. O ridículo existe de facto, não é unicamente um ponto de vista. Posto isto, creio não equivocar-me muito imaginando Pedro Almodóvar, referente por excelência da “movida” madrilena, a perguntar à sua pequena alma (as almas são todas pequenas, praticamente invisíveis): “Que faço eu aqui?” A resposta vem dando-a ele nos seus filmes, esses que nos fazem rir ao mesmo tempo que nos põem um nó na garganta, esses que nos insinuam que por trás das imagens há coisas a pedir que as nomeemos. Quando vi “Volver” enviei a Pedro uma mensagem em que lhe dizia: “Tocaste a beleza absoluta”. Talvez (seguramente) por pudor, não me respondeu.
Devo concluir. De uma forma decerto inesperada para quem está mal gastando o seu tempo a ler estas linhas, e que resumo assim: a Pedro Almodóvar espera-o o grande filme sobre a morte que vem faltando ao cinema espanhol. Por mil razões, sobretudo porque essa seria a maneira de recuperar dos escombros o sentido último da “movida”.

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