Finda a trilogia da morte (Gerry / Elephant / Last Days), poder-se-ia, precipitadamente, adivinhar malogrado o futuro da carreira de Gus Van Sant, dada a má receptividade da última fita apresentada em Cannes. Ainda assim, depois de dois anos de trabalho, este não renunciou do estatuto de um dos mais proeminentes realizadores avant-garde da contemporaneidade e mergulhou de novo no festival com Paranoid Park, a adaptação do romance homónimo de Blake Nelson e uma obra ousadamente familiar no que à temática diz respeito. Escusado será dizer que foi, uma vez mais, extremamente bem sucedido.
Paranoid é, tal como o irmão Elephant, um ensaio sobre o estado moderno de uma adolescência perdida, indolente, desinteressada e vivida em facilitismos, mas, ao contrário deste, com motivações dostoievskianas e de forma mais directa, explora, em específico, a noção de culpa interior e consequente autodestruição, o “acaso determinista” e o absurdo, debruçando-se, tal como já é típico nos filmes do cineasta, sobre uma minoria social — neste caso, os skaters (e, para quem estiver interessado, após o texto deixo-vos com a versão dos Youth Group da Forever Young, que os homenageia). Apesar da forma mais directa e menos dada a reflexões posteriores, a fita é rica em detalhes que, se vista superficialmente, podem passar por despercebidos (por exemplo, a paixão silenciosa de Macy pelo amigo Alex é-nos sugerida numa cena entre muitas outras onde Van Sant capta as suas irrequietas e indecisas mãos, no autocarro), assim como é rica em cenas que, no seu todo, nos são transcendentes. E que exemplo mais edificativo do que a inesquecível cena do banho? Iniciando-se com uma clara alusão ao (escusadíssimo) remake que realizara de Psycho, técnica e metafisicamente tudo se encontra em perfeita harmonia (o som, a cor, a água, os azulejos) para tão desarmoniosa e melancólica remição: Alex deixa-se caído na culpa e vergonha, como se acreditasse que, com aquele duche, tudo fosse resolvido. Há que aplaudir, então, o desempenho do inexperiente Gabe Nevins, o único a sobressair-se verdadeiramente numa mescla de péssimas actuações (Van Sant, contudo, escolheu os amadores ao dedo, de acordo com a sua própria personalidade e tiques, o que me resta concluir que os restantes não representavam autenticamente).
O filme é servido, respeitante à realização e à narrativa, como uma espécie de catapulta para o futuro Milk, contrabalançando a sua arte com a agradabilidade fácil entre o público, que se estende com estas duas obras. As semelhanças visíveis são notórias: ora porque ambas histórias são versadas na primeira pessoa (comprometendo, por conseguinte, a ordem e sequencialidade das cenas), ora porque é ressuscitado um prazer peculiar de Van Sant demonstrado, antes, apenas com Mala Noche — o de intercalamento entre imagens de ficção e documentais, através da diferença do modo de filmagem (mais livre e amador) e da fotografia (que se apresenta como se de uma verdadeira super 8 se tratasse). Este segundo aspecto (utilizado para reforçar um provável realismo ou, alternativa antagónica mas não menos plausível, a ideia de um mundo interior e independente do físico) só vem a engrandecer o complexo e assombroso esforço de Christopher Doyle que consolida aqui o que de melhor consegue fazer na edição da imagem. E, para podermos, igualmente, analisar o sentido metafísico e alegórico deste tipo de cenas (e não só) há que, forçosamente, referir o magnífico trabalho no design de som de Leslie Shatz e, ainda, da banda sonora musical de que o filme é bem recheado. Enquanto a tonalidade das cores, da iluminação e da focagem é alterada em função do estado da mente desenfreada da personagem (por exemplo — um de muitos —, após a morte do segurança somos brindados com um soberbo plano geral de uma vertiginosa trovoada), o som também é utilizado de uma forma bastante particular e não convencional: ora com a emprestada d’O Bom Rebelde “Angeles”, de Elliott Smith, ora com as composições do falecido italiano Nino Rota, dos filmes de Fellini. Assim, toda esta relação imagem / som / sujeito, articulada, resulta, belamente, em cenas que exaltam a pretendida intersubjectividade fantasiosa das situações e, principalmente, o solipsismo de que é própria a trilogia da morte e Paranoid Park, tão subtilmente defendido pelo realizador.
Esta obra é, sem margem para qualquer tipo de dúvida, uma admirável revisita ao colossal Elephant e uma excelente adaptação literária conseguindo, ainda assim, com uma linha narrativa mais convencional, aproximar-se imenso da magnificência e inovação estilística, impondo-se como um inesquecível marco na filmografia van santiana.
9/10
Só estou a comentar porque mo pedes muitas vezes e raramente o faço, LOL.
ResponderEliminarGostei da crítica, apesar de olhar a cena do duche não como se "tudo fosse resolvido", mas o contrário. aquilo é desespero puro! Esta cena mostra-nos o sentimento de problema sem saída, da condenação à culpa eterna! O sentimento de incapacidade perante o ciclo natural das coisas - tão natural que toda a cena é conjugada com o som de passarinhos que "parece vir dos azulejos" que o rodeiam. E perante uma combinação de sons tão sinistros o desespero é retratado de forma tão forte que dói.
Em relação ao resto concordo contigo.
Bem, colocaste em palavras o que eu não consegui - formulando um comentário muito aquém do que o filme surtiu em mim. Parabéns, gostei imenso de ler ;)
ResponderEliminar(Não há que ter medo em usar palavras :p)
Sandra:
ResponderEliminarsim, fizeste bem em comentar - finalmente!... - mas acho que me interpretaste mal. Tudo o que escreveste (e muito bem) reflecte a minha opinião quanto à cena do banho. Escrevi eu que "Alex deixa-se caído na culpa e vergonha, como se, com aquele duche, tudo fosse resolvido" - e reforço a ideia de impossibilidade de solução daquele problema com a expressão "como se". Ainda assim, vou modificar o texto original para "como se acreditasse que", para ser mais directo.
Beijinhos
Jackson,
Muito obrigado pelo elogio!
(Agora não há como receá-las :) )
Dos que tinha planeado ver, só me falta o Elephant e o Paranoid Park!
ResponderEliminarEstás a escrever muito bem, rapaz, os meus parabéns, fizeste uma excelente crítica.
ResponderEliminarNão sei porquê, o filme não me seduziu tanto como os da trilogia.
A rever.
Cumps.
Roberto Simões
CINEROAD – A Estrada do Cinema
Também já vi este filme.
ResponderEliminarGostei, não posso dizer que amei, mas gostei o suficiente para me interessar por outros do Gus Van Sant.
Gostei do vídeo :)
Tenho o filme em casa há muito tempo já. Saiu no Público creio mas ainda não tive vontade de pegar nele e dedicar-lhe o tempo que merece. Fica para uma próxima mas é óbvio que a tua opinião me empolgou.
ResponderEliminarAbraço
Ruy A...,
ResponderEliminarÉ um bom começo van santiano. Os restantes filmes merecem a visualização.
Fifeco,
Vê, então! Acho que gostarás, mas provavelmente não tanto como eu
Abraços