quarta-feira, abril 11, 2012

No princípio era a...



Também em "Tabu" de Murnau, que podia ter sido um filme sonoro, isto é, que não necessitava, mas que precisava de ser um mudo, a palavra está sublimada nas coisas mostradas, tendo sido habilmente enjeitado pelo mestre alemão o uso supletivo das tradicionais caixas de texto ou separadores do mudo. Miguel Gomes não dispensa a palavra, mas o seu som é só prerrogativa do narrador em off - o Ventura no café, hoje. O que torna esta narração encantatória e não só uma mera "ferramenta" narrativa é precisamente a sua colagem a espantosas imagens mudas-sonoras que resgatam do esquecimento paisagens imaginadas de uma África lendária.
Aproveito este excerto da crítica escrita pelo Luís Mendonça (aqui) para falar do problema para mim fundamental de Tabu, de Miguel Gomes, esse objeto de grande beleza e incisivo no que respeita a história coletiva da memória portuguesa (como já tinha sido, embora de maneira mais interessante, em Aquele Querido Mês de Agosto). Trata-se de um obstáculo simples: quer-se mostrar e remeter ao mudo de Murnau (da sua obra-prima Tabu) mas entendemos as sequências do “Paraíso” como um fluxo de imagens “imaginadas”, como quem ouve uma “história de adormecer”. Tal como O Artista se limitou a ser uma galeria de imagens de leitura básica para dispensar a palavra, também este Tabu dispensa o dispositivo do diálogo diegético para servir uma constante… voz em off! Como admirar aquelas imagens (resultado do magnífico trabalho de Rui Poças) se a sua (possível) profundidade é dissipada por um comentário contínuo e redundante? O mesmo sucede, afinal, com um jogo de futebol exibido na televisão, como João Lopes reflete aqui:
Em todo o caso, mesmo quando os comentários são serenos e interessantes, fica quase sempre a sensação de que se olha pouco e se escuta ainda menos. Na verdade, nestes como noutros casos, a televisão, dita um fenómeno de imagens, acaba por ser conduzida pelo som de quem fala. Como se, enfim, a televisão receasse a pluralidade interior de qualquer imagem e necessitasse de lhe impor um sentido único, definitivo e... aceitável.

1 comentário:

  1. A citação do João Lopes é extremamente interessante e espelha bem um receio que eu próprio tive nos pirmeiros instantes do "Paraíso", aliás, na minha opinião, espelha muito bem o que falha redondamente num outro filme mudo-sonoro que falei no meu texto, "Anatahan" de Sternberg.

    Agora, penso que o Miguel Gomes consegue fugir à questão da narração como presença totalitária da imagem, quando joga com o som a dois níveis: primeiro penso que a narração off do Ventura pontua a narrativa, articula as imagens, não as comenta ou se sobrepõe a elas como acontece num jogo de futebol; segundo, as imagens não são totalmente mudas, apenas à palavra diegética é suprimido o som. Este segundo aspecto "alivia" a meu ver o peso da narração off, extradiegética, sem contudo retirar a sua dimensão de "história contada", que simula, com grande encantamento, o tal folhear de um álbum fotográfico antigo, gesto ritualizado aos olhos de quem vê, exercício de memória para quem conta as histórias escondidas nas imagens, muitas vezes, e no caso, a meu ver, sobretudo, "entre as imagens". Penso, por isso, que a palavra nunca "abafa" a imagem, pelo contrário, articula-a numa montagem mais ou menos mítica, porque, na minha opinião, está sempre implícito no "Paraíso" esse gesto de "virar de página" (mui analógico) do álbum degradado de fotografias. Um álbum que, como o livro de crianças em "A Cara que Mereces", não tem existência "de facto" no filme.

    O cinema do Miguel Gomes é muitíssimo complexo, cheio de efeitos, e, por isso, também eu receio que caie, no instante seguinte, nos lugares comuns da transmissão televisiva, também ela hiper-saturada de efeitos de som e imagem - montra excelente, aliás, de todos os gadgets existentes de montagem e realização.

    Quer dizer, no fundo, percebo o que dizes, porque não está longe de um receio que eu próprio tive durante o visionamento do filme. Mas, como digo, o Gomes, numa fórmula muito complexa, consegue sempre (pelo primitivo) dar a volta aos lugares comuns do audiovisual.

    Cumprimentos!

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