Basta vermos os primeiros minutos de Cavalo de Guerra para nos apercebermos que, com este filme, nos encontramos no patamar das grandes produções de Hollywood que seguem, fielmente, o mais tradicional dos modelos narrativos: a fábula. E é precisamente aí que se instala a mais recente longa-metragem de Steven Spielberg (que estreia amanhã nas salas portuguesas), ele próprio já elevado ao estatuto de mito.
O realizador norte-americano, responsável pelo menos simpático Tubarão (1975), Encontros Imediatos de Terceiro Grau (1977), E.T. – O Extraterrestre (1982), A Lista de Schindler (1993), A.I.- Inteligência Artificial (2001), recupera aqui, com a adaptação do romance homónimo de Michael Morpurgo (publicado em 1982 e que gerou, há cinco anos, uma peça de teatro), os temas e mensagens centrais da sua filmografia.
Situando-nos numa Inglaterra que pressente o princípio da Primeira Grande Guerra, Steven Spielberg começa por tratar a relação de cúmplice amizade entre um cavalo chamado Joey e o jovem adolescente Albert (interpretado pelo estreante Jeremy Irvine), que é encarregado de o domar e treinar. A reviravolta sucede-se, contudo, quando das paisagens bucólicas inglesas somos conduzidos por Joey, que entretanto é vendido a um regimento de cavalaria, para uma França avassalada pela guerra.
Transportando a narrativa para as mais diversas personagens e as suas pequenas histórias, a jornada do animal acaba então por assumir contornos épicos (intensificados pela banda musical assinada pela mão de John Williams e pela direção de imagem do polaco Janusz Kaminski). Infelizmente, a nossa atenção não deixará de cuidar alguns “pequenos desastres” ao longo do desenvolvimento do filme, cuja montagem faz descobrir alguns erros de raccord de luz e ambiente (vide, por exemplo, a cena em que o cavalo consegue lavrar a terra e, de repente, sem que isso seja esperado, começa a chover). O mesmo se aplica à cor e à música, por vezes desinspiradas e exageradas na sua tentativa de manipular as emoções do público.
Nomeado para seis Óscares da Academia entre os quais se incluem as categorias de melhor filme e de direção artística (ao contrário do muito esquecido As Aventuras de Tintin – O Segredo do Licorne, que venceu o Globo de Ouro de melhor filme de animação), as atenções parecem ter sido entretanto viradas para a prudência no tratamento dos 14 cavalos utilizados para encarnar o protagonista. Numa edição recente da revista Time, Bryan Walsh, que acompanhou o procedimento (que reproduz, digitalmente, o animal nas cenas mais violentas), confirma a avaliação da American Humane Association: “nenhum animal foi ferido” (seja em termos físicos ou meramente psicológicos).
Mais que um simples filme de guerra ou de aventura (que evoca, através de travellings em grua ou simplesmente pelo conteúdo de certos planos, algumas cenas dos títulos mais exemplificativos do autor, como Indiana Jones e a Grande Cruzada ou O Resgate do Soldado Ryan), Cavalo de Guerra é um melodrama que subsiste fundamentalmente dos atores (entre os quais se encontram nomes como Emily Watson, Niels Arestrup ou Tom Hiddleston) e das relações que estabelecem entre eles e com o animal enigmático (que move montanhas para reaver Albert).
É talvez por isso que seja particularmente fácil não gostar de Cavalo de Guerra: o seu tom ingénuo faz com que o filme seja indicado particularmente às famílias e crianças. Mas a verdade é simples e provavelmente incómoda: o filme é, na essência, um filme otimista e que acredita que a bondade humana (ainda) é possível. Recupera, assim e com invulgar coragem, uma idealização do homem moral (transmitida, precisamente, por John Ford) destruída pelo cinismo do nosso espírito contemporâneo.
(Este texto adapta um artigo publicado no Diário de Notícias - 23 de fevereiro de 2012)
Esta crítica mereceu destaque na rubrica «A "Polémica" do Mês» do Keyzer Soze’s Place, disponível aqui: http://sozekeyser.blogspot.pt/2012/03/polemica-do-mes-10.html
ResponderEliminarCumps cinéfilos!