Considero Gaspar Noé um grande cineasta; um visionário cujas convicções extremas sobre a vida se manifestam nas imagens, geralmente surpreendentes, que cria para os seus filmes. Comprovam-no a curta-metragem “Carne” que é seguida por “Sozinho contra Todos”, onde, a partir da implacabilidade da atitude lúcida do protagonista face às pessoas, a moral que as orientam e a sua própria existência, viu na revolta e na violência as únicas formas de estar no mundo, para além do suicídio; e a longa-metragem “Irreversível”, a sua obra-prima, sobre a qual questiona a origem da causa primeira da destruição que se sente no Presente. A áurea das suas histórias parece navegar entre o mais grave pessimismo e a crença absoluta no egocentrismo do homem (tanto que “viver é um acto egoísta”), que julga ser-lhe naturalmente intrínseco. Para isto retratar, Noé aposta em histórias com um arco de mudança “decadente”, quer dizer, com um destino a seguir sempre o pior desenvolvimento para as suas personagens, e em histórias que, com o objectivo de abalar o pathos do espectador, contenham as mais chocantes situações para os protagonistas. A sua estratégia, sem dúvida premeditada e crua, é geralmente culpabilizá-las do seu próprio fado (relembro a sua curta documental “Sida”).
Talvez seja por isso que o mais recente trabalho do realizador francês, “Enter the Void”, saiba plenamente a ele mesmo, porque lá estão todos os ingredientes que o caracterizam. Aqui, propõe-se a tratar dois temas centrais: as drogas e os seus efeitos, e a morte. Quanto ao primeiro, entramos em Tóquio e num psicadélico exercício cuja mestria na representação pode ser equiparada a Aronofsky, com o seu “Requiem”, ainda que de forma completamente distinta. Os efeitos especiais são incríveis, embora o deslumbramento se possa tornar, a quem não se predisponha a acompanhá-los de forma calma, cansativo. E entende-se perfeitamente o objectivo de aproveitar este tema central para as manias que a realização vem a mostrar. Quanto ao segundo, Noé trata de novo a morte e a reacção perante ela. A singularidade que este filme traz reside no facto de o protagonista viver na primeira metade e estar, omnisciente, presente na segunda, mas morto.
No entanto, ao contrário dos seus precedentes filmes, Noé perde-se e descuida-se na estrutura e no conteúdo do seu argumento. Começa por tratar a relação íntima de dois irmãos, desde a infância onde perdem os pais e fazem um pacto de sangue de que ficarão sempre juntos, até a maioridade onde voltam a ficar juntos e se separam por culpa dos destinos que ambos escolheram para as suas vidas. No entanto, tudo surge emaranhado numa teia de acontecimentos forçados, descredibilizando a própria personalidade de cada personagem e a relação que têm umas com as outras, sobretudo a principal, entre irmão e irmã. O realizador, como argumentista, parece obrigar-se de tal forma a mostrar uma relação de companheirismo e entendimento que o resultado final mostra-se desonesto e com lugares-comuns, ao contrário do que se viu com “Irreversível” e a relação do casal central, também com os seus altos e baixos. Da mesma maneira, Noé parece, a dada altura, não ganhar imaginação para seguir o filme em linha recta a partir do acontecimento primeiramente mostrado e forçar-se a inventar uma série de desinteressantes acontecimentos que, como um puzzle mal montado, surgem desconexos e apenas a encher o que podia ser preenchido com outro conteúdo. Por fim, trata a sexualidade como antes, mas de forma mais livre e, ao mesmo tempo, mais descabida, e introduz elementos de fantasia e misticismo que não lhe são característicos e que, portanto, surgem pouco credíveis.
Apesar destas deficiências, o filme revela-se como um verdadeiro fluxo de consciência e ilude o espectador com uma espécie de fluído plano sequência, de quase três horas, que sai e entra na mente do protagonista, mostrando as suas recordações (e aí uma evidente découpage, que se assemelha à primeira metade de “Sozinho contra Todos”, toma cargo do filme) e pensamentos. É por isso na realização que “Enter the Void” ascende a um nível de originalidade singular, ainda que de toda essa ambição resulte, nalguns momentos, uma concretização de pirotecnia visual desnecessária. A maneira como se desloca e os caminhos por onde a câmara filma são de uma mestria completamente arrebatadora, dando razão a Kubrick quando diz que “if it can be written or thought, it can be filmed”. E há um claro envolvimento – diria até quase imposto – do espectador com o protagonista, dado incontáveis momentos de pura subjectividade. Noé põe-nos, literalmente, a fumar, a ficarmos drogados, a lavarmos a cara e a olharmos para um espelho, a voar como um fantasma, a fazer sexo e a morrer. Há um estranho magnetismo que os círculos e as lâmpadas detêm sobre o olhar do espectador, tudo para que se explore toda a estranha beleza da luz, associada aqui à morte, à perda de noção de tempo e espaço e às drogas.
Diria, resumidamente, que “Enter the Void” é um inesquecível exercício de cinema, que mostra como um realizador tão maduro e firme ideologicamente consegue inovar-se a cada trabalho que realiza, ainda que, infelizmente, contenha deficiências na sua estrutura narrativa que impedem uma completa elevação deste aos melhores filmes do cineasta francês.
Talvez seja por isso que o mais recente trabalho do realizador francês, “Enter the Void”, saiba plenamente a ele mesmo, porque lá estão todos os ingredientes que o caracterizam. Aqui, propõe-se a tratar dois temas centrais: as drogas e os seus efeitos, e a morte. Quanto ao primeiro, entramos em Tóquio e num psicadélico exercício cuja mestria na representação pode ser equiparada a Aronofsky, com o seu “Requiem”, ainda que de forma completamente distinta. Os efeitos especiais são incríveis, embora o deslumbramento se possa tornar, a quem não se predisponha a acompanhá-los de forma calma, cansativo. E entende-se perfeitamente o objectivo de aproveitar este tema central para as manias que a realização vem a mostrar. Quanto ao segundo, Noé trata de novo a morte e a reacção perante ela. A singularidade que este filme traz reside no facto de o protagonista viver na primeira metade e estar, omnisciente, presente na segunda, mas morto.
No entanto, ao contrário dos seus precedentes filmes, Noé perde-se e descuida-se na estrutura e no conteúdo do seu argumento. Começa por tratar a relação íntima de dois irmãos, desde a infância onde perdem os pais e fazem um pacto de sangue de que ficarão sempre juntos, até a maioridade onde voltam a ficar juntos e se separam por culpa dos destinos que ambos escolheram para as suas vidas. No entanto, tudo surge emaranhado numa teia de acontecimentos forçados, descredibilizando a própria personalidade de cada personagem e a relação que têm umas com as outras, sobretudo a principal, entre irmão e irmã. O realizador, como argumentista, parece obrigar-se de tal forma a mostrar uma relação de companheirismo e entendimento que o resultado final mostra-se desonesto e com lugares-comuns, ao contrário do que se viu com “Irreversível” e a relação do casal central, também com os seus altos e baixos. Da mesma maneira, Noé parece, a dada altura, não ganhar imaginação para seguir o filme em linha recta a partir do acontecimento primeiramente mostrado e forçar-se a inventar uma série de desinteressantes acontecimentos que, como um puzzle mal montado, surgem desconexos e apenas a encher o que podia ser preenchido com outro conteúdo. Por fim, trata a sexualidade como antes, mas de forma mais livre e, ao mesmo tempo, mais descabida, e introduz elementos de fantasia e misticismo que não lhe são característicos e que, portanto, surgem pouco credíveis.
Apesar destas deficiências, o filme revela-se como um verdadeiro fluxo de consciência e ilude o espectador com uma espécie de fluído plano sequência, de quase três horas, que sai e entra na mente do protagonista, mostrando as suas recordações (e aí uma evidente découpage, que se assemelha à primeira metade de “Sozinho contra Todos”, toma cargo do filme) e pensamentos. É por isso na realização que “Enter the Void” ascende a um nível de originalidade singular, ainda que de toda essa ambição resulte, nalguns momentos, uma concretização de pirotecnia visual desnecessária. A maneira como se desloca e os caminhos por onde a câmara filma são de uma mestria completamente arrebatadora, dando razão a Kubrick quando diz que “if it can be written or thought, it can be filmed”. E há um claro envolvimento – diria até quase imposto – do espectador com o protagonista, dado incontáveis momentos de pura subjectividade. Noé põe-nos, literalmente, a fumar, a ficarmos drogados, a lavarmos a cara e a olharmos para um espelho, a voar como um fantasma, a fazer sexo e a morrer. Há um estranho magnetismo que os círculos e as lâmpadas detêm sobre o olhar do espectador, tudo para que se explore toda a estranha beleza da luz, associada aqui à morte, à perda de noção de tempo e espaço e às drogas.
Diria, resumidamente, que “Enter the Void” é um inesquecível exercício de cinema, que mostra como um realizador tão maduro e firme ideologicamente consegue inovar-se a cada trabalho que realiza, ainda que, infelizmente, contenha deficiências na sua estrutura narrativa que impedem uma completa elevação deste aos melhores filmes do cineasta francês.
É mau e esquecível. Performances más, um tema, com tanta substância, mal aproveitado, melomania despropositada (ou falta de inteligência para mais): uma desgraça onanista. Este era o filme que o Kubrick fazia com 18 ou 19 anos de idade.
ResponderEliminarLN, exageras. O facto de ser o seu pior filme não o faz "mau e esquecível", muito menos uma "desgraça onanista". No entanto, concordo quando falas das representações dos actores, que ajudam a desperdiçar o tema.
ResponderEliminarEste ainda vou ver...
ResponderEliminarDepois de o fazer irei ler este texto e dar o meu parecer...(de amador...Aqui fala-se e percebe-se muito de cinema!)
Cumprimentos
Guakjas, fazes bem em vê-lo, depois diz o que achaste (por aqui os pareceres são pessoais, sejam eles amadores ou não, não nos cabe julgar). Já viste algum do Gaspar Noé?
ResponderEliminarAinda não...Mas tenciono "descobri-lo". Tenho amigos próximos que me falam bem dele e por isso quero "provar"! E penso que esta pode ser a melhor maneira de começar...
ResponderEliminarCumprimentos
Caro amigo Flávio, penso que agora seja uma altura pertinente para lançar o debate sobre a questão da partilha de ficheiros na internet. Veja-se as noticias que saíram à uns dias: http://bit.ly/hYWfOX%20 e http://bit.ly/fQac56.
ResponderEliminarGostava que se "abrisse um post" acerca desta questão. Penso que seja interessante e pertinente. É só uma pequena sugestão de um leitor assíduo de blogues mas sem muita paciência para escrever, confesso...
Cumprimentos
Noé é mais um "técnico" que contador de histórias, por isso os seus filmes nunca serão prodígios no que a argumento diz respeito.
ResponderEliminarMas se todas as suas obras tiverem a mesma pujança visual como este ENTER THE VOID, por mim tudo bem...
Cumps cinéfilos.
Não vi o filme, mas anseio muito. Porém, já vou desiludido, pelo que aqui leio. Mas disposto a aproveitar o que o filme tem de bom.
ResponderEliminarPosso dizer, sem hesitar, que é a tua melhor crítica desde que sigo o blog ;)
Guakjas, em breve escreverei sobre o assunto, obrigado pelas ligações ;)
ResponderEliminarSam, não consigo concordar, porque eu acho que o Sozinho contra Todos e o Irreversível são grandes argumentos para cinema. O primeiro foi inclusive galardoado por causa do guião. Agora este "Enter the Void" vale por alguns momentos escritos e por toda a técnica construída.
Diogo, penso que concordarás comigo. E quanto ao resto, fico muito lisonjeado :P Obrigado.
Flávio, claro que é uma desgraça onanista... passas 2/3 do filme numa masturbação técnica superficial super-estúpida e redundante até à NÁUSEA, como se ser obsessivo seja sinónimo de apaixonado de um tema com tanta carga/possibilidade (Filosofias, Espiritismo, Antropologia...), que é uma vergonha apresentar, sequer, aquilo para alguém ver. Do argumento nem falo: porque não existe.
ResponderEliminarFilme que vale a pena do Gaspar, é o Seul Contre Tous, esse sim, tiro-lhe o chapéu. Quem vê um filme daquele carácter e desce para este (ETVoid), só pode pensar que o gajo se vendeu completamente. O Irreversible é girinho.
LN, concordo com tudo que estás a dizer. Se te recordas nos últimos momentos do filme Gaspar Noé levo-nos a uma exuberante e desnecessária passagem de uma cena para outra, ex: estamos numa cozinha da-mos umas voltas e entramos num orificio do fugão para a seguir nos enquadrarmos noutra cena, como por exemplo o rapaz morto (dessa vez entramos pelo buraco causado pelo tiro) isto repete-se vezes e vezes sem conta. Apetecia-me tanto acrescentar lá uma cena em que eles estivessem a jogar twister! Em que bola em que vamos entrar? na azul? na amerla?
ResponderEliminarFilmes detestável, o exemplo de perfeito de quando o filme se deixa engolir pela fotografia
Estendal:
http://segundoestendal.blogs.sapo.pt/
As primeiras duas obras do Noé (o referido SEUL CONTRE TOUS e a curta CARNE) têm argumento mais aprimorado. Mas sempre foi o aspecto técnico desses dois filmes que sobressaiu. Assim como sobressai no IRREVERSIBLE e neste ENTER THE VOID...
ResponderEliminarIl semble que vous soyez un expert dans ce domaine, vos remarques sont tres interessantes, merci.
ResponderEliminar- Daniel
já fiquei vacinado contra Gaspar Noé depois de ver Irreversible... estou meio na dúvida se visione ou não este, pode ser que sim num futuro próximo. Noé é mais o estilo do que o argumento.
ResponderEliminarAbç
Tenho que ver isto.
ResponderEliminarCumps.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «
Olá,
ResponderEliminarSou do Brasil e por "acidente" descobri seu blog, parabéns pelo conteúdo incrível.
Creio que só tenho a concordar com sua visão sobre Enter The Void, tive a sensação que Noé se perdeu no experimentalismo e caiu na exaustão na segunda metade do filme. Infelizmente essa pirotecnia lisérgica não foi ao nível do que vimos em 2001...
Ainda mesmo com os contras (como o roteiro cheio de buracos), gostei muito da direção de arte (minha visão de designer me obrigou a sentir o filme como uma grande experiência visual também), acredito que o filme tenha muito a se aproveitar se encarado dessa forma, eu recomendaria.
Abraços amigo