Este texto foi publicado originalmente no Diário de Notícias, no dia 7 de janeiro de 2012, acompanhado por uma opinião assinada por João Lopes (ler aqui). Escrevi também sobre o filme neste blogue, aqui.
Estávamos a uma semana do Natal de 1994 quando um grupo de três curiosos espeleólogos conseguiu entrar na gruta de Chauvet (que mais tarde assim se chamou em homenagem a um dos exploradores, Jean-Marie Chauvet), perto de Vallon-Pont-d’Arc, no Sudeste de França. A sua descoberta: um enorme complexo rupestre, incrustado a cristais e do tamanho de um campo de futebol, com inúmeros restos de mamíferos da Idade do Gelo e pinturas pré-histórias com mais de 32 mil anos.
Dezassete anos depois, a redescoberta é feita por nós com o lançamento nas salas portuguesas do documentário do realizador alemão Werner Herzog A gruta dos sonhos perdidos. Bastou a leitura de um artigo sobre as pinturas de Judith Thurman, da revista New Yorker, para motivar o realizador a querer filmar dentro da gruta.
Mas só com uma autorização especial (e difícil de obter) do Ministério francês da Cultura Herzog pôde captar as imagens, utilizando câmaras com tecnologia 3D. Era uma equipa mínima (o diretor de fotografia Peter Zeitlinger, um diretor de som e um assistente) e com limitações expressas. Só podiam filmar quatro horas por dia, durante menos de uma semana; não podiam tocar nas paredes; só podiam caminhar num corredor com cerca de um metro de largura...
Apesar do seu cepticismo relativamente ao 3D (Zeitlinger afirmou ao portal Sabotage Times que o realizador considera a tecnologia “um artifício do cinema comercial”), Herzog compreendeu, após a sua primeira visita à gruta, que o relevo das pinturas rupestres nas paredes apenas poderia ser registado utilizando a estereoscopia como intermediário.
De facto, a partir de uma reapropriação do 3D, A gruta dos sonhos perdidos parece aproximar o espectador da realidade documentada, permitindo-lhe descobrir, com mais exatidão, o relevo e a forma das paredes em Chauvet.
Não obstante, as três dimensões engrandecem, da mesma maneira, a reflexão de Herzog sobre os poderes e as funções da arte: há 32 mil anos (numa altura em que a “arte” poderia servir a dimensão espiritual dos seres humanos que a produziam e que então se reuniam em seu redor para celebrar rituais religiosos) e no nosso tempo (em que temos uma “arte pela arte”).
De acordo com as palavras do próprio autor, aquelas misteriosas pinturas, que resultam de uma estrutura cerebral e da apreensão da linguagem simbólica associadas ao Homo sapiens sapiens, representam, tão-somente, o “princípio da alma moderna”. E, quanto à sua execução, Herzog ousa ir mais longe: o desenho de várias pernas nos animais pintados apresenta as primeiras formas de proto-cinema (já que conferem uma sensação de movimento à imagem fixa).
É assim que Herzog comprova que, em 30 mil anos, talvez possamos não ter mudado tanto quanto acreditamos. E volta ao ponto de chegada (que de certo modo também é o de partida): que significa irmos ao cinema, colocarmos os óculos 3D e assistirmos A gruta dos sonhos perdidos, que se insere numa das mais recentes formas de arte dos últimos anos?
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