O suplemento P2 do jornal Público publicou hoje um artigo escrito por José Riço Direitinho sobre o cinema dinamarquês – ou, em bom rigor, o método de financiamento pelo qual o estado subsidia a sua produção nacional. Antes de vos deixar o texto na íntegra, cuja leitura considero fundamental, será importante ressaltar a pertinência de Assim se faz cinema no reino da Dinamarca. Em tempos de profunda crise de apoio governamental ao cinema português (pautada pela ausência dos concursos do ICA para 2012, pelo bloqueamento do FICA ou pela espera da nova Lei do Cinema) este artigo divulga (para além de expor, com subtileza, as grandes deficiências portuguesa) uma alternativa que aposta, fundamentalmente, na educação (de públicos e de jovens criadores) e no equilíbrio entre a atribuição de subsídios para o cinema com apelo comercial e para um com pendor apenas artístico.
ASSIM SE FAZ CINEMA NO REINO DA DINAMARCA
por José Riço Direitinho (em Copenhaga) in Público (suplemento P2)
Por cá, continuamos a discutir as políticas de financiamento às artes. Mais a norte, a Dinamarca, que tem metade da área de Portugal e metade dos habitantes, tornou-se num dos países mais importantes da produção cinematográfica europeia. Como? Apostando nas crianças e jovens.
No começo do ano, a Dinamarca assumiu a Presidência da União Europeia e, para assinalar o facto, a embaixada em Lisboa promove hoje, na Cinemateca, às 19h, a exibição do filme Um Mundo Melhor, da dinamarquesa Susanne Bier e vencedor de um Óscar e de um Globo de Ouro.
Por que deve um país gastar dinheiro dos contribuintes em subsídios a filmes? Por que é que o cinema não pode "tomar conta" de si próprio? A estas perguntas, diz-nos Henrik Bo Nielsen, director do Det Dansk Filminstitut (Instituto de Cinema Dinamarquês), já os políticos responderam de maneira convicta, e em perspectiva de longo prazo, no início dos anos 70.
Na Dinamarca, estas foram questões importantes, hoje já não são discutidas. E as respostas tiveram em conta o nível de ambição que se tinha em relação aos cidadãos e, em especial, em relação às crianças. Ambição que tem vindo a aumentar. Reflexo disso foi a lei que na década de 80 fixou que um quarto do montante total de dinheiro atribuído anualmente ao cinema - cerca de 70 milhões de euros - deveria ser usado em actividades e produções que tivessem por alvo as crianças e jovens. "Mesmo que parássemos amanhã de subsidiar filmes, os cinemas continuariam cheios", diz Bo Nielsen. "Haveria por ano talvez um ou dois, ou mesmo três, filmes dinamarqueses, provavelmente comédias de qualidade muito baixa, o resto viria de Hollywood. Se concordarmos com isso, não há qualquer problema. Se acharmos que é importante que os cidadãos tenham a possibilidade de ver as suas vidas, a sua história, os seus desafios, em narrativas cinematográficas originais que lhe vão ser contadas na sua própria língua e num ambiente que reconhecem, então é diferente."
Os números falam por si: por ano, na Dinamarca, são vendidos cerca de 13 milhões de bilhetes para as 162 salas do país, o que dá uma média de 60 espectadores por sessão. No Top 20 dos filmes mais vistos, o número de produções dinamarquesas oscila entre 5 e 8, dependendo do ano. O Estado financia uma média de 25 longas-metragens e de 30 documentários; a média do orçamento por filme é de 2,5 milhões de euros, e o Estado financia-os, em média, em cerca de 33% (em Portugal, segundo o Anuário 2010 do ICA, venderam-se 16,5 milhões; estrearam-se 22 longas-metragens nacionais, mas no Top 40, não há qualquer produção portuguesa). O mercado cinematográfico, incluindo exibição em sala e no serviço público de televisão, tem cerca de 22% de filmes nacionais (em Portugal, segundo o ICA, a percentagem é de 2,5% ).
Bo Nielsen não tem dúvidas que estes números se devem à qualidade atingida pelo cinema dinamarquês, ao nível dos apoios, mas sobretudo ao "talento" e ao "gosto" que têm vindo a ser desenvolvidos há muito tempo. "Se é isto o que ambicionamos, então temos mesmo de aceitar que é necessário ter uma política cinematográfica nacional e que os subsídios são necessários", prossegue. "Não é possível viver da normal comercialização do cinema e ao mesmo tempo produzir filmes de boa qualidade. Isto é ponto assente. Felizmente, quase todos os países europeus decidiram que é necessário um apoio financeiro nacional. A ideia, em toda a Europa, é que todos querem ter a possibilidade de contar a sua própria história. Um facto importante é que os cidadãos dinamarqueses que actualmente financiam os filmes através dos impostos, também usufruem deles, como mostram as estatísticas."
Mas toda esta história de sucesso começou quando a atenção foi centrada na educação dos futuros profissionais, ainda antes da actual política de subsídios. A Danish Film School (Escola de Cinema Dinarquesa), em que o Estado tem investido muito dinheiro, floresceu nos anos 70. Em anos de excepção chega a lançar para o mercado seis realizadores, sendo pelo menos um ou dois originários de outro país escandinavo. Isso cria competição no meio, o que atrai jovens criativos. Também o facto de ser dada quase toda a liberdade para aplicar o dinheiro onde se quer, incluindo em filmes a que se sabe que o mercado não vai responder bem, ajuda. "A maior parte do dinheiro não tem que ser gasta naquilo que a maioria das pessoas vê", diz Bo Nielsen. "Se fizéssemos isso, o apoio iria quase todo para filmes de entretenimento familiar e de vampiros. Como em todos os apoios às artes, devemos focar-nos naquilo que o mercado não trata muito bem. Ter políticos que aceitem que empreguemos cerca de 1,5 milhões de euros num filme que muito pouca gente verá, desde que seja artisticamente interessante, continuará a fazer progredir o cinema."
Estratégia combinada
De certa maneira, pode dizer-se que a chave do sucesso é dar atenção aos mais novos. Do orçamento total anual para o sector, um quarto é aplicado em filmes para crianças e jovens. Isso tem enorme impacto. Significa que, depois de um certo tempo, se passa a ter mais capacidade para financiar produções de outros géneros porque o número de espectadores aumenta. Em 2010, por exemplo, um quarto das várias centenas de milhar de espectadores da Cinemateca de Copenhaga tinha menos de 7 anos de idade.
Existe uma estratégia combinada, ou seja, há uma estratégia na própria produção que se estende depois ao marketing e à distribuição dos filmes, exibidos regularmente no circuito comercial em sessões para as escolas. Todos os anos são elaborados programas para assegurar que todas as crianças têm acesso à experiência, tanto as que estão em idade escolar como pré-escolar. Há guias de estudo para os professores (também acessíveis aos pais), para que os filmes possam ser estudados. Uma enorme colecção (centenas) de filmes curtos e documentários podem ser descarregados livremente de um sítio na Internet gerido pelo Instituto.
"O programa educativo para os jovens está dividido em várias partes: visando sempre assegurar que as crianças possam visualizar os filmes, acompanhamo-las de modo a que os consigam trabalhar, a que sejam mais críticas, e também a que possam criar os seus próprios filmes", diz Charlotte Giese, responsável pela área de subsídio à produção de curtas e documentários para a infância e juventude. "Tentamos apoiar os professores, dando-lhes justificação educativa para levar os estudantes ao cinema, porque os filmes podem ser usados de várias maneiras. Actualmente, estamos a debruçar-nos mais sobre as crianças em idade pré-escolar, proporcionando-lhes as ferramentas para trabalharem os filmes de maneiras novas e até mesmo de os criarem elas próprias. Para os mais velhos, num estúdio interactivo que temos no Instituto, é possível dar a oportunidade única de dirigirem, de representarem, e de fazerem os seus pequenos filmes."
Para o Bo Nielsen, o apoio ao cinema infantil e juvenil é também uma questão de justiça social. "É evidente que as crianças das classes média e superior vão ao cinema com frequência. Recebem uma boa educação. Mas, as crianças das classes mais baixas terão possibilidade de ir ao cinema se o Estado não intervier? A resposta é não, não têm. Ir ao cinema implica também aprender a usar essa forma de arte, e para isso é preciso formação. No caso de um exame do 11.º ou do 12.º ano, podemos deparar-nos com um poema, por que é que não nos podemos deparar com um documentário ou com um filme?"
Charlotte sublinha ainda a importância que se deve dar à formação dos professores, e o Instituto assume essa responsabilidade. "Estamos muito dependentes de uma boa relação que tem que ser mantida e solidificada com o Ministério da Educação", diz. E refere ainda a relevância de a Comissão Europeia estar a exigir dos estados membros que encarem "a literacia dos media de um modo mais sério".
Numa época de crise económica global de que os dinamarqueses também se queixam, Bo Nielsen é claro: "Tivemos de reduzir o orçamento para 2012, mas optámos por cortar nos gastos do Instituto - viagens, assessorias, pareceres, etc. - não cortámos nos subsídios."
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