São dois diálogos esplendorosos, aqueles com que abre Sangue do Meu Sangue, o recente filme de João Canijo. Na cozinha, o mafioso Telmo tenta convencer uma filhota a comer, com a irmã mais crescidinha num delicioso jogo duplo. Logo a seguir, na saleta contígua (e o trabalho de câmara é sublime), o mafioso trava-se de razões com o moço traficante Joca, que vem confessar-se desfalcado duma pipa de massa. A autenticidade das falas é patente. Elas partem do real estado de espírito dos intervenientes, e não (como em soluções mais primárias) das casuais «deixas» alheias.
Quando, certa noite, o rapaz se prepara para um arranjo com o mafioso, a muito jovem tia Ivete é terminante: irá com ele. Vestida para sair, pondo a carteira ao ombro, diz: «Já chamaste o táxi?» E o rapaz, de costas para nós, uma voz de súplica: «Deixa-me ir sozinho.» Ela avança, rumo à porta, rumo a nós, passado rente a ele: «Vou bem assim?» É um prodígio de economia linguística. Andou ali mão de mestre. Ou de mestres, já que, no genérico, os diálogos têm atribuição plural. Os americanos, que são heróis nestas finezas, não fariam melhor.
Quando ainda tudo são rosas, a protagonista Márcia tem um monólogo, pensativo, ziguezagueante, enquanto a filha Cláudia toma um duche. «Mas eu vou sentir muita falta é de ti. Vai-me fazer muita falta, a Cláudia, muita falta, filha, vou ter muitas saudades tuas. Que a gente tá habituadas é a dormir juntas, n'é?» E por aí discorre. É ouro puro.
As nossas conversas surgem-nos, de facto, atulhadas de minúsculas disfunções: a frase inacabada, a precipitação, o ajuste de rumo, o cultismo deslocado, a graça involuntária, o mal-entendido, o anacoluto ou falha lógica («Se chover, está aqui um guarda-chuva»), a formulação idiota que escapa ao interlocutor e por isso é certeira. Os bons autores de diálogos conhecem essas sinuosidades e, mais, têm a coragem de reproduzi-las. Tão bem o fazem que nos sentimos envoltos em realidade. Só não saberíamos dizer porquê.
Fernando Venâncio in revista LER (Língua movediça - Sinuosidades do diálogo), n.º 109 (Janeiro de 2012), segunda série.
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