Filme biográfico, sim, drama político também, mas J. Edgar (filme) é e conseguiu ser, talvez sobretudo, uma história de amor – nascido num casamento (entre o guião assinado por Dustin Lance Black e música, produção e realização por Clint Eastwood). O declínio de J. Edgar Hoover é, pois, tido aqui como um declínio pelo amor.
Se Lance Black aproxima, pela importância públicas e políticas, as personagens de Harvey Milk (sobre quem escreveu em Milk, de Gus Van Sant) e Hoover, o argumentista distancia os dois na dimensão dos episódios selecionados na trama, privilegiando, num ato de profundo humanismo, a dimensão íntima, igualmente enorme, do protagonista (aproveito e especulo assim o motivo pelo qual o filme tem por título J. Edgar e não Hoover). Falo, concretamente, das relações mantidas pelo presidente do FBI ao longo de 50 anos (magnífico Leonardo DiCaprio) com a sua mãe (Judi Dench), o seu braço direito Clyde Tolson (Armie Hammer) e a sua secretária (Naomi Watts). Em todas elas trespassam no protagonista dois marcantes sentimentos: de incompletude (seja porque teme não corresponder às expetativas da mãe ou porque não se consegue relacionar condignamente com Clyde) e de culpa (ponto que se deve ao recalcamento da sua sexualidade).
Trata-se assim de um filme de repressão íntima, de autoridade e de contradições – um filme, pois, de máscaras. Compreende-se o uso do artifício tão evidente da caracterização decidido por Eastwood. Narrado pelo próprio J. Edgar Hoover (tal como, curiosamente, em Milk), o realizador parece confrontar-nos com uma grave evidência: na ziguezagueante retrospetiva da nossa autobiografia conhecida sobressai o mais luminoso e evidente – sobressai aquilo que queremos que transpareça. E é assim que Eastwood e Lance Black nos golpeiam com a mentira (que preencherá, no final, o foco temático principal). Descrente na política e na bondade públicas (a própria fotografia, dirigida por Tom Stern, é de mínima saturação), J. Edgar vive no conflito entre aquilo que é falso (o passado glorificado por Hoover) e verdadeiro (o amor que Edgar nutre por Clyde). Dois momentos exemplificam essa dualidade com subtileza afinada (que, aliás, caracteriza o tom do filme a partir de uma montagem que dá valor à passagem e à influência marcante do tempo): Edgar, filmado de costas, olha para o retrato de Abraham Lincoln cada vez que entra no escritório e, no final, regressado a casa, endireita uma moldura da sua mãe pregada à parede.
Esta descrença radical na América contemporânea de Eastwood parece ter perturbado os seus compatriotas, tanto que a estreia do seu mais recente título da filmografia nas salas de cinema portuguesas (na passada quinta-feira) não deixou de trazer consigo o signo amargo de derrota (zero nomeações para os Óscares e, apesar da nomeação para a categoria de melhor ator, zero Globos de Ouro). A atenção mediática parece, talvez por isso, ter sido reduzida até o impensável, tal como acontecera com Hereafter – Outra Vida. Para além do mais, e já que se refere a longa-metragem que procedeu Invictus, grande parte da crítica escrita, cá ou lá fora, não se deixou convencer. Não obstante, J. Edgar, certo que felizmente, não parece ter, como poderia ocorrer com qualquer outro filme que não de alguém tão representativo como Eastwood, uma espécie de prazo de validade. A história do cinema é feita também dos nomes que nos esquecemos.
Os últimos 3 filmes de Eastwood parecem ter sido feitos a pensar nos Óscares. Continuo a achar que o seu melhor trabalho desde Mystic River foi o Changeling.
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