domingo, julho 17, 2011

Regressar às origens

Rodado no Alto Minho e com uma cena dedicada ao seu rio, "Viagem ao Princípio do Mundo" (1997) é um filme autobiográfico assinado por Manoel de Oliveira conhecido por contar com a derradeira interpretação de Marcello Mastroianni. Este artigo foi publicado originalmente no dia 15 de Julho de 2011 no Diário de Notícias.
Estávamos no ano de 1997 e o realizador Manoel de Oliveira, então com 89 anos, acabava de ganhar no Festival de Cannes o Prémio FIPRESCI e uma menção honrosa do Júri Ecuménico. Havia, contudo, um malogrado sentimento de saudade na apresentação de “Viagem ao Princípio do Mundo”, não apenas por causa da nostalgia presente na sua narrativa, mas por apresentar aquela que seria reconhecida como a derradeira interpretação de um dos maiores actores da história do cinema italiano: Marcello Mastroianni, falecido em Paris a 19 de Dezembro de 1996, vítima de um cancro no pâncreas diagnosticado enquanto rodava o filme.

Neste filme auto-biográfico, Manoel de Oliveira dá a Mastroianni (o realizador-protagonista de 8 ½, de Fellini) o seu próprio papel. Chama-o de Manoel e caracteriza-o também como um realizador. A personagem de Manoel acaba por acompanhar Afonso (Jean-Yves Gautier), um actor francês, na busca da aldeia onde cresceu o seu pai português. Nesta viagem ao Norte de Portugal, Manoel traz a Afonso e a dois colegas actores (Judite, interpretada por Leonor Silveira, e Duarte, representado por Diogo Dória) as suas recordações do Alto Minho. Junto do Rio Minho, Manoel descreve-o como “tenebroso”, lembrando os tempos de criança. “Agora parece calmo! Mas nos dias sombrios de Inverno, sempre que voltávamos [para o colégio de jesuítas] depois do Natal, o rio metia medo. Diante da barca, as águas escapelavam-se como no mar… Era uma barca negra, que nos levava para a outra margem… Afocinhava a proa nas ondas, e a mim, miúdo que era, parecia que nos ia engolir a todos. O intrépido barqueiro não parava de remar. Na minha imaginação de criança, já via um naufrágio e olhava temeroso para o meu pai. Como o visse sereno, tanto bastava para me tranquilizar.”

Quase todo o filme se baseia na viagem de carro do grupo de colegas (conduzida pelo próprio Manoel de Oliveira) até a aldeia do pai de Afonso, que tinha emigrado para França e lá casado com uma mulher. Na freguesia de Barbeita, em Monção (Viana do Castelo), fazem uma paragem e deparam-se com a escultura humorística de Pedro Macau construída pelo escultor Francisco Luís Barreiros, lembrando com uma aldeã (Adelaide Teixeira) os versos populares relacionados com a figura: “Eu sou o Pedro Macau / Carrego às costas este pau. / Por mim passa muito patego, / uns de focinho branco, / outros, de focinho negro. / E nenhum me tira deste degredo.”

Quando, por fim, chegam ao destino, Afonso descobre por fim a sua tia Maria Afonso (Isabel de Castro), casada com José (José Pinto), que o recebe de forma desconfiada, por este não saber a “sua fala”. Só quando Afonso lhe confessa o exclusivo desejo de visitar o cemitério da sua família é que a sua tia se apercebe que está diante do futuro que nunca conheceu.

Apesar de se apresentar como uma produção luso-francesa, este é, provavelmente, um dos filmes mais “portugueses” de Manoel de Oliveira, por se debruçar sobre o tema da saudade e da memória. De facto, o realizador eterniza não só a figura de Mastroianni como também as paisagens das montanhas e rio do Alto Minho, os ecos profundos, íntimos e secretos de uma infância e adolescência passados por Manoel – a personagem que faz de realizador e o próprio realizador que filma a sua personagem.

“Manoel de Oliveira é um monumento, um homem extraordinário; é um privilégio estar a trabalhar com ele”, declarou o actor italiano pouco antes de morrer. Finalizada a obra, o mais velho realizador do mundo, que sabia do “degredo” de que sofria Mastroianni, dedicou-lhe o filme, agradecendo-lhe a centésima septuagésima primeira – e última – representação, que deu corpo, voz e vida ao próprio cineasta.

3 comentários:

  1. Flávio Gonçalves gostei muito de ler o que escreveu, tenho pena que sendo eu(Adelaide Teixeira)a actriz que faz a aldeã, não tenha referido o meu nome, por quanto esse foi o meu primeiro filme com Manoel de Oliveira e logo com actores daquela grandeza!!!!Depois desse, já fiz mais cinco filmes com o Mestre , o último "O Estranho Caso de Angélica"!!! Mas obrigada na mesma por citar o "meu" texto de Pedro Macau

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  2. Obrigado, Adelaide, pelas suas palavras gentis. Acrescentarei o nome no texto publicado online e, quanto tiver tempo, responderei à mensagem que enviou no Facebook. Um beijo e parabéns pela interpretação.

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