Da data da sua estreia original à da reposição de uma cópia renovada nas salas de cinema portuguesas em 2010, “Aniki-Bobó” foi durante quase sete décadas o filme do rio Douro por excelência. Este artigo foi publicado originalmente no dia 22 de Julho no Diário de Notícias.
Semanas depois de a primeira longa-metragem de Manoel de Oliveira ter estreado, no Cine-Teatro Éden, no dia 18 de Dezembro de 1942, o jornal Cidade de Tomar avisava que “a fita é uma infame cilada armada à inocência das crianças e à imprevidência dos pais”, chamando-a ainda “uma verdadeira monstruosidade”. Paralelamente, grande parte do público também não viu com agrado a adaptação que aquele realizador vindo do Porto, potencialmente perigoso, tinha feito do conto “Meninos Milionários”, do escritor e advogado João Rodrigues de Freitas. Vivia-se então sobre a penumbra autoritária e corporativista do Estado Novo, que nascera ao mesmo tempo que “A Canção de Lisboa” se demarcara como o primeiro filme sonoro português (no qual o próprio Manoel de Oliveira interpreta) e anunciava uma nova fase do cinema nacional.
Servindo-se das zonas ribeirinhas do Porto e de Vila Nova de Gaia, somos conduzidos à rivalidade sentida por dois jovens rapazes – Carlitos (o protagonista) e Eduardinho –, que estão apaixonados por Teresinha. Para agradar a rapariga, Carlitos rouba da Loja das Tentações a boneca desejada por Teresinha e oferece-a. Mais tarde, quando o grupo de miúdos está a brincar depois de ter faltado à escola, Eduardinho cai para perto de um comboio em movimento e todos começam a suspeitar que Carlitos o teria empurrado.
A história encara, por isso, a perda da inocência, o jogo de poder, o ciúme e o primeiro amor vividos pelas crianças. Manoel de Oliveira filma tudo isso com um olho dir-se-ia quase “neo-realista” (as crianças são actores amadores), trespassando o documentário que deixou para trás – o primeiro trabalho do cineasta portuense foi a curta-metragem documental “Douro, Faina Fluvial”, em 1931. Apesar de apontado com críticas desfavoráveis, podemos considerar que “Aniki-Bobó” irradia uma humanidade proporcional ao tamanho da sua pedagogia, então incompreendido pelo espectador da época. Os valores da amizade, da esperança e da justiça são no fim enaltecidos, como uma lição autêntica de moral ao estilo dos contos populares para crianças.
Em “Aniki-Bobó”, o sentido de documentário alia-se a “uma sensibilidade eminentemente poética posta ao serviço do cinema português”, segundo as palavras do produtor do filme. Quer isto significar que Manoel de Oliveira estrutura o espaço dramático e fictício da história do filme nas paisagens que rodearam a sua própria infância no Porto e em Gaia. Para além de fazer recurso da memória para recordar o seu passado, o realizador perpetua no cinema, mais que as imagens do rio Douro (dirigidas a partir da fotografia de António Mendes), a forma como as olhava em 1942, então com 34 anos. “Se o fizesse hoje fá-lo-ia certamente bem diferente (…) porque quem mudou, ou julga ter mudado, e muito, fui eu”, comenta Manoel de Oliveira, que hoje está a poucos meses de completar o 103º aniversário. E relativamente às intenções didácticas, o realizador admite: “Quando muito, intencionalmente, mas muito ao de leve, pretendi sugerir uma mensagem de amor e compreensão do semelhante, como advertência a uma sociedade que luta e se desespera em injustiças.”
Parábola tão mágica como é a lengalenga que serve de motivo para o título do filme e para as brincadeiras das crianças (Aniki-bebé. Aniki-Bobó. Passarinho. Totó. Berimbau. Cavaquinho. Salomão. Sacristão. Tu és polícia. Tu és ladrão), este filme, com a passagem do tempo e das gerações, ergueu-se como um clássico absoluto e essencial da cinematografia portuguesa e como um dos mais icónicos “quadros animados” do rio Douro.
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