“É interessante virarmo-nos para uma outra Rússia, como aval dessa época em que a liberdade alimentava a esperança de um mundo novo. Tarkovsky exprime-se quando a Rússia atravessou o século, sufocada por um regime totalitário assassino dos corpos – o que ainda se pode contabilizar – mas também das almas, inumeráveis essas, de todos aqueles que sobreviveram à catástrofe antropológica maior que esse regime provocou. Uma vez que essa humanidade «nova» perde qualquer referência (Stalker), Tarkovsky voltou-se para o passado para aí ir buscar a seiva de um Renascimento possível. Não devemos, portanto, admirar-nos por o ver explorar o mundo dos pintores de ícones (Andreï Rublev) ou exprimir a sua nostalgia de um mundo habitado pelas memórias do sentido (Nostalgia).
1 - «O Artista exprime a verdade através da figura da realidade»
«Acontece muitas vezes que, estando tudo perdido, tudo é para voltar a fazer», dizia Baudelaire. Tarkovsky não se compraz na contemplação do mundo arruinado, que, no entanto, dá a ver com um génio moderno em Stalker: a sua nostalgia impele-o a reconstruir, pondo o dedo nas fissuras mais perigosas antes de arrasar aquilo que ainda corre o risco de desabar. Porque, se é certo que é preciso reconstruir, é preciso voltar a partir das fundações do edifício em ruínas. E por isso que ele é o cineasta das raízes: da infância (A Infância de Ivan, O Espelho), do país natal (Nostalgia), da Terra (Solaris), do «Céu» metafísico no fundo (todos os seus filmes). Ele é também o cineasta do desenraizamento: do arrancamento temporal à infância, do exílio, da viagem, do esquecimento metafísico. Por fim, é o cineasta do lembrar a necessidade da memória dessas raízes, lutando contra o esquecimento, a ocultação ou a negação, o recalcamento, a distracção. A sua démarche foi, no princípio, de protesto contra a história (o inferno de A Infância de Ivan, o inferno das invasões bárbaras no coração da Idade Média, onde, no entanto, trabalhava a emergência de uma exigência de salvação: Andrei Rublev). A seguir, ela foi a atestação da possibilidade reivindicada para a nossa época dessa mesma emergência (Stalker) porque, se o tempo da história é o tempo infernal da queda, temos de nos levantar até uma inteligência metahistórica do real, redescobrir os valores éticos e espirituais fundamentais, para voltar a agarrar o leme de uma história quem seja mais digna do homem.
Por fim, a sua obra põe em evidência um método: o de toda a vontade de inteligência de si próprio, individual e colectivo, o do regresso às origens, para reencontrar o caminho, depois te ter errado. «Sabemos tão pouco das coisas da alma, somos como cães perdidos» (Le Monde, 12 de Maio de 1983, «Le noir coloris de la nostalgie»). As suas intuições, no fundo, fazem ressurgir a ideia de um parentesco profundo entre o bem e o belo: «Parece-me que o objectivo da arte é preparar o espírito humano para perceber o bem» (Positif, n.º 247, Out. de 1981). A verdade encontra-se tanto no bem como no belo: «O artista exprime a Verdade através da figura da realidade». Também o artista deve dirigir um olhar puro sobre a realidade, o olhar do primeiro dia, como Leonardo da Vinci ou Johann Sebastian Bach («De la figure cinématographique», in Positif, n.º 249, Dez. de 1981). Então, a obra de arte faz-se, na sua própria materialidade, ícone do espírito.
2 - «A arte icónica e eidética»
2.1. A imagem como metáfora e ícone do cinematógrafo
«A metáfora é a imagem», dizia Tarkovsky na sua entrevista com Hervé Guibert, no Le Monde de 12 de Maio de 1983 («Le noir coloris de la nostalgie»). E como «a imagem possui as mesmas características que o mundo que ela representa», a metáfora, tal como Tarkovsky a concebe, é aquilo que ele também denomina a figura. É o ícone do cinematógrafo. A montagem é completamente secundária para ele: «A figura cinematográfica cria-se durante a rodagem e só existe no interior do plano» (ibid.). Tarkovsky, como Eisenstein, do qual, no entanto, não partilhava as ideias relativas à montagem, interessa-se pelo haïkaï ou kaïku, terceto japonês com 17 monossílabos (5-7-5), normalmente introduzido e realçado por um haïbu ou prosa poética. Seguem-se três exemplos de haïku de Bashô, sendo o terceiro apresentado como exemplo pelo próprio Tarkovsky (Positif, n.º 249).
Noite de Primavera: | Secado o ramo; | As canas são cortadas pelo telhado
As cerejeiras! Às cerejeiras | Pousado o cesto; | Nas hastes esquecida
Chegou a aurora | Crepúsculo de Outono | Cai uma nevezinha ligeira
O kaïku, observa Tarkovsky, é um exercício espiritual que convida à meditação: por meio do mais objectivo e do mais concreto, atinge o subjectivo e o indizível; por meio dos dados mais modestos da vida quotidiana submetidos a uma intensa concentração do olhar meditativo, ele atinge o ilimitado. Despido de qualquer sentido «final» imediato, o haïkaï exige do leitor uma contemplação criadora de uma profundidade, uma comunicação intuitiva, rica de verdades sensíveis à alma sem mediação do intelecto. Os poetas zen mostram também o caminho, diz Tarkovsky: «Eles trabalham para eliminar a interpretação» (Positif, n.º 249, Dezembro de 1981). Trabalham também para transcender a emoção porque «a emotividade não tem nada a ver com a verdadeira espiritualidade» (Le Monde, 12 de Maio de 1983). Nos seus filmes, a contemplação silenciosa assume habitualmente a forma de um quadro: naturezas mortas, ou melhor, «vidas silenciosas», objectos inscritos como sinais obscuros na materialidade do mundo. Interrogado sobre o papel da água, considerável na sua obra, Tarkovsky responde: «Abordámos esses problemas como pintores» (Positif, n.º 247, Outubro de 1981). «Para mim, o que conta», diz ele noutro sítio, «é a imagem e, sobretudo, a luz. Sou a favor de um cinema que utilize poucas palavras» (Le Film français, Ed. do Festival de Cannes, 15 de Maio de 1983). Essa imagem que fala sem palavras, sobretudo através da luz, que arranca quem a olha à imediatidade glauca e desesperante do mundo totalitário (Stalker) qualifica Tarkovsky como pintor de ícones.
2.2. Sentido literal, sentido alegórico e sentido espiritual da imagem
Se quisermos entregar-nos a um exercício de iconologia a partir da iconografia de Tarkovsky, é filosoficamente fecundo partir de Nostalgia por causa da sua tonalidade platónica. Com efeito, trata-se do exílio e do mal específico que caracteriza o estado de afastamento do país natal, aquele onde temos raízes e cuja seiva alimenta a vida, a tal ponto que, quando estamos totalmente cortados dele, morremos. É, pois, a história de uma doença de langor, acompanhada de um desejo ambivalente e, por consequência, doloroso, do regresso. É a pena melancólica de um período passado, mas também a esperança de ver efectuar-se o regresso ao lugar de onde procedemos. Ora, se Nostalgia nos conta, no primeiro grau, a história de um homem efectivamente exilado (acontecimento autobiográfico tardio), em viagem que se pode marcar no mapa, no espaço da geografia crítica real, realista (Rússia, Itália), é preciso, evidentemente, na exegese desta Ilíada, ultrapassar o sentido literal para encontrar, através da espessura alegórica, o sentido espiritual: o de um Itinerário do Espírito em direcção a Deus, segundo a expressão de São Boaventura, uma tentativa de Odisseia.
A técnica da linguagem utilizada, que entrança os três níveis de sentido (literal, alegórico, espiritual), magistralmente elucidados por Orígenes e depois por toda a tradição medieval, faz com que Tarkovsky reate, em Nostalgia, com a veia de inspiração explorada em Andrei Rublev, evocada igualmente como reminiscência de um mundo passado e em ruínas, em Stalker («na Idade Média, Deus estava em todo lado, em cada casa»). É que o sentido literal é o ícone do sentido espiritual: o aspecto manifesto da trama sensível da narração remete para o conteúdo latente sugerido por ele, isto é, para o sentido espiritual, inteligível. O espiritual puro é obrigado, para se exprimir, a ir buscar o esquema da imaginação de dar a ver o invisível. Mas cabe ao espectador atravessar a figura sensível para a transfigurar e adivinhar a origem de onde ela procede. Em Nostalgia, Tarkovsky ilustra a impotência actual da maioria para operar essa travessia através da personagem boticelliana de Eugenia, a tradutora de Gortchakov: Eugenia é a própria Vénus saída das águas e é o seu excesso de beleza sensível – não acompanhado da sua interiorização – a quem Gortchakov tem a força de voltar ostensivamente as costas, recusando-se literalmente à sua sedução. Essa beleza sensível só por ela é estéril, beleza da superfície das coisas privada da profundidade que as enraíza nas estranhas do Ser que as dá à luz. Deste modo, à Vénus moderna que tem as feições da de Boticelli, Tarkovsky prefere a veneração da Virgem paradoxalmente fonte de toda a fecundidade (cf. a visita à Madona del Parto, de Piero della Francesca que, na ausência de Gortchakov, permite o confronto de dois tipos de feminilidade, de dois tipos de abordagem da Vida, indo a preferência para o fervor das mulheres humildes que rezam para obter o filho que não podem ter, cena que fecha com os pássaros a levantarem voo do seio da Madona de procissão). Esta cena também permite compreender a diferença de estatuto e de função da imagem para a turista e para as mulheres que oram. Para Eugenia, a imagem é «letra morta», beleza não ordenada no sentido que a atravessa; é com essa superficialidade do voyeurismo turístico que Gortchakov rompe quando diz: «Estou farto dessas belezas fastidiosas», recusando-se a entrar no santuário. Para as mulheres que oram, a imagem é vector espiritual. Há, portanto, neste filme uma reflexão sobre a imagem que reconduz, aprofunda a reflexão iniciada no seu segundo filme Andrei Rublev. O ícone é a referência central deste cineasta Russo que cresceu no domínio ortodoxo da expressão do mistério cristão, tanto mais intrigante (no sentido próprio do termo) quanto estava tocada de ostracismo recalcado pela cultura oficial incapaz, no entanto, de destruir os seus preciosos vestígios relegados para o museu…
A técnica da linguagem utilizada, que entrança os três níveis de sentido (literal, alegórico, espiritual), magistralmente elucidados por Orígenes e depois por toda a tradição medieval, faz com que Tarkovsky reate, em Nostalgia, com a veia de inspiração explorada em Andrei Rublev, evocada igualmente como reminiscência de um mundo passado e em ruínas, em Stalker («na Idade Média, Deus estava em todo lado, em cada casa»). É que o sentido literal é o ícone do sentido espiritual: o aspecto manifesto da trama sensível da narração remete para o conteúdo latente sugerido por ele, isto é, para o sentido espiritual, inteligível. O espiritual puro é obrigado, para se exprimir, a ir buscar o esquema da imaginação de dar a ver o invisível. Mas cabe ao espectador atravessar a figura sensível para a transfigurar e adivinhar a origem de onde ela procede. Em Nostalgia, Tarkovsky ilustra a impotência actual da maioria para operar essa travessia através da personagem boticelliana de Eugenia, a tradutora de Gortchakov: Eugenia é a própria Vénus saída das águas e é o seu excesso de beleza sensível – não acompanhado da sua interiorização – a quem Gortchakov tem a força de voltar ostensivamente as costas, recusando-se literalmente à sua sedução. Essa beleza sensível só por ela é estéril, beleza da superfície das coisas privada da profundidade que as enraíza nas estranhas do Ser que as dá à luz. Deste modo, à Vénus moderna que tem as feições da de Boticelli, Tarkovsky prefere a veneração da Virgem paradoxalmente fonte de toda a fecundidade (cf. a visita à Madona del Parto, de Piero della Francesca que, na ausência de Gortchakov, permite o confronto de dois tipos de feminilidade, de dois tipos de abordagem da Vida, indo a preferência para o fervor das mulheres humildes que rezam para obter o filho que não podem ter, cena que fecha com os pássaros a levantarem voo do seio da Madona de procissão). Esta cena também permite compreender a diferença de estatuto e de função da imagem para a turista e para as mulheres que oram. Para Eugenia, a imagem é «letra morta», beleza não ordenada no sentido que a atravessa; é com essa superficialidade do voyeurismo turístico que Gortchakov rompe quando diz: «Estou farto dessas belezas fastidiosas», recusando-se a entrar no santuário. Para as mulheres que oram, a imagem é vector espiritual. Há, portanto, neste filme uma reflexão sobre a imagem que reconduz, aprofunda a reflexão iniciada no seu segundo filme Andrei Rublev. O ícone é a referência central deste cineasta Russo que cresceu no domínio ortodoxo da expressão do mistério cristão, tanto mais intrigante (no sentido próprio do termo) quanto estava tocada de ostracismo recalcado pela cultura oficial incapaz, no entanto, de destruir os seus preciosos vestígios relegados para o museu…
2.3. Função psicagógica do cinema: despertar a alma
A arte não se justifica senão pela sua função psicagógica, função de despertar a alma. Ela não tem de reproduzir a aparência, mas tornar visível o invisível. Ela desempenha a função de ícone e, como ícone, ela é epifania. Mas, em vez de fazer a forma desaparecer, como nos ícones abstractos de Malevitch, Tarkovsky restaura-a dando a ver a Forma, o eidos das formas: a alma. Nesta arte icónica e eidética, trata-se da nossa essência: a alma, a qual é indissociável da incarnação e do caminhar da existência no tempo. Andrei Rublev conta um itinerário iniciático, no espaço e no tempo, que, na sua progressão temporal, é regressão em direcção ao fundamento: o alfa e o ómega de toda a realidade, a Sabedoria eterna do Deus escondido. Vemos evoluir Teófane, o Grego, que cita Epifânio, o Filósofo, Andrei Rublev, Daniel, o Negro, que fizeram todos escola, transmitiram uma tradição cuja prática e sentido são eles próprios herdados do platonismo. Ao nível deste seu segundo filme, a referência histórica é já referência metafísica por intermédio da teologia que serve de base à prática da pintura de ícones. Poder-se-ia dizer que, nesses homens que se procuram, é feita referência à cultura da imagem para responder à exigência do entendimento: Tarkovsky inclina-se diante do ícone, sonda-o e interroga-o para compreender aquilo de que ele é o espelho, porque, na opacidade deste mundo, ele é como o vestígio, a marca, a memória de um saber perdido. Qual é, pois, a lisibilidade da imagem trazida pelo visível?
2.4. O ícone como imitação da transfiguração
João Damasceno (séc. VIII), autor de Três Discursos sobre as Imagens, escreve: «Visto que o Invisível, tendo-se revestido da carne, apareceu visível, tu podes figurar a semelhança daquele que se fez Teofania» (cf. J. Damasceno, Le Visage de l’invisible, Migne, 1994). O fundamento do ícone é, pois, cristológico. Dizer que Deus se fez homem é o equivalente absoluto de dizer: Deus fez-se imagem, houve advento da divindade no visível a fim de que os homens vejam. Há redenção ao nível da imagem que visualiza sob os traços da humanidade a processão da segunda hipóstase cristã, o Filho. Ora, o ícone é imagem da Imagem que o Filho, nele próprio, já é. Ele torna presente Aquele que dá presença sensível ao Deus que se ausenta e se subtrai aos olhares na sua transcendência radical. Ele é, portanto, mediador e mimético, mas não é consubstancial àquele que ele imita: é apenas uma placa de madeira, um fundo, uma qualquer matéria sobre a qual deve ser representada a Imagem transfigurada. A verdadeira mimética icónica consiste, pois, na imitação da transfiguração. Trata-se, portanto, de dar a ver, por intermédio da matéria-prima da arte, uma matéria aliviada do seu peso, uma matéria em glória. O ícone é esse espaço onde o espiritual se torna sensível, onde nos é dado a ver, através da imagem de Cristo, o próprio olhar de Deus, na modalidade da humanidade visível. É esse estatuto do ícone como símbolo no sentido de indício, de índice do vestígio deixado pelo ausente fascina Tarkovsky, pintor da ausência de Deus no nosso mundo moderno. Porque indicar a ausência é permitir querer suscitar de novo a presença, para que da imagem obscurecida do mundo possa voltar a brotar a luz. É precisamente o que acontece no fim de Andrei Rublev. A saída da prova que cobre todo o filme, rodado a preto e branco, faz-se na luz da Transfiguração: o ecrã ganha cor dando-nos os fragmentos sumptuosos de uma obra que canta a glória dos Céus e o Ícone de Trindade – os três anjos sentados á mesa de Abraão – está lá para lembrar que Deus é Vida, Unidade trina, isto é, relação, de onde o jogo dos olhares no interior dessa esfera perfeita e a abertura para o quarto lugar: o lugar do espectador está aberto; o espectador é comprometido, implicado, porque a perfeição divina não exclui o imperfeito que nós somos: o terrestre tem o seu lugar nessa esfera celeste. É preciso ainda que tenha a nostalgia suficiente que lhe dará o poder do seu levantar voo.
Ora, o homem do fim deste século de provações sem igual, surdo aos símbolos (sumbolon), seduzido pelas potências enganadoras (diabolon) já não sabe que só no Espírito pode encontrar o seu verdadeiro rosto, que, para encontrar, tem de procurar. Para se voltar a lembrar, tem de ter consciência do esquecimento. E aquilo que Tarkovsky põe a nu é precisamente o esquecimento do esquecimento, a satisfação completa da «alma» moderna, alma caída, privada de asas. Tarkovsky é um cineasta da queda (Stalker) – conceito ético e espiritual mais pesado do que o conceito puramente temporal, histórico de decadência. Por intermédio do platonismo ou do neoplatonismo, subjacente à teoria da imagem, Tarkovsky reactiva um pensamento essencialista, isto é, normativo: a existência tem vocação de incarnar a essência e o sentido que deve orientar a vida é a descoberta da inteligência da nossa essência. Esta é a Via, o caminho, guiada cada vez mais em Tarkovsky, pela Verdade de que o ícone está impregnado. Do fundo das profundezas da cloaca ética de cores sombrias e sórdidas exploradas por Stalker, que é, sem dúvida, a obra-prima do cinema decididamente moderno na forma, subiu o clamor da sua arte que é interrogatório, tacteio, método cada vez mais explícito para encontrar a Via, sabendo que, fora de uma relação vivificante com o Ser, só existe caos e desespero. Muito curiosamente, Tarkovsky está muito perto de Malevitch, com a diferença que a sua tendência para o teocentrismo não abole a figura, mas constitui uma reivindicação firme de regresse às origens para reconfigurar o espaço humano e restaurar-lhe o rosto desfigurado. Deste modo, ele pratica uma arte onde o absoluto nunca é mostrado mas indicado como fundo. A ausência de Deus permite restituir o espiritual como presença, sendo a alma apresentada como reflexo de uma realidade transcendental. Assim, nele, a relação com o ícone como emblema da memória ontológica faz referência a uma experiência da kenose, mas esse vazio não é uma falta, é uma plenitude.
Ora, o homem do fim deste século de provações sem igual, surdo aos símbolos (sumbolon), seduzido pelas potências enganadoras (diabolon) já não sabe que só no Espírito pode encontrar o seu verdadeiro rosto, que, para encontrar, tem de procurar. Para se voltar a lembrar, tem de ter consciência do esquecimento. E aquilo que Tarkovsky põe a nu é precisamente o esquecimento do esquecimento, a satisfação completa da «alma» moderna, alma caída, privada de asas. Tarkovsky é um cineasta da queda (Stalker) – conceito ético e espiritual mais pesado do que o conceito puramente temporal, histórico de decadência. Por intermédio do platonismo ou do neoplatonismo, subjacente à teoria da imagem, Tarkovsky reactiva um pensamento essencialista, isto é, normativo: a existência tem vocação de incarnar a essência e o sentido que deve orientar a vida é a descoberta da inteligência da nossa essência. Esta é a Via, o caminho, guiada cada vez mais em Tarkovsky, pela Verdade de que o ícone está impregnado. Do fundo das profundezas da cloaca ética de cores sombrias e sórdidas exploradas por Stalker, que é, sem dúvida, a obra-prima do cinema decididamente moderno na forma, subiu o clamor da sua arte que é interrogatório, tacteio, método cada vez mais explícito para encontrar a Via, sabendo que, fora de uma relação vivificante com o Ser, só existe caos e desespero. Muito curiosamente, Tarkovsky está muito perto de Malevitch, com a diferença que a sua tendência para o teocentrismo não abole a figura, mas constitui uma reivindicação firme de regresse às origens para reconfigurar o espaço humano e restaurar-lhe o rosto desfigurado. Deste modo, ele pratica uma arte onde o absoluto nunca é mostrado mas indicado como fundo. A ausência de Deus permite restituir o espiritual como presença, sendo a alma apresentada como reflexo de uma realidade transcendental. Assim, nele, a relação com o ícone como emblema da memória ontológica faz referência a uma experiência da kenose, mas esse vazio não é uma falta, é uma plenitude.
3 - «Escultura com o tempo como matéria, eis o que é a figura cinematográfica»
Se o ícone transmuta o espiritual de natureza qualitativa em espaço físico, Tarkovsky, esse, transmuta-o em temporalidade. «No cinema, a essência da criação é uma escultura no tempo», dizia ele. Esculpir o tempo é esculpir o real na sua duração. «O tempo fixado na película adquire a forma visível do real» ou, de modo inverso, a imagem, na incarnação física das suas formas, manifesta o tempo vivo como material: «escultura com o tempo como material, eis o que é a figura cinematográfica» («De la figure cinématographique», Positf, n.º 249). Um filme é feito de tempo, esculpido é certo, mas, primeiro que tudo, concreto, de estases temporais maciças, longas, visíveis. «Podemos imaginar um filme sem actores, sem música, sem cenário e sem montagem, apenas com a sensação do tempo que se escoa no plano. E esse seria o verdadeiro cinema.» (ibid.) Essa temporalidade é o ícone móvel da eternidade imóvel. Há aí um jogo sério, uma démarche de paciência que, no caminhar, no peregrinar do tempo, pode juntar elementos dispersos e em ruínas e balbuciar a reminiscência do eterno. Tarkovsky situa-se na perspectiva da nossa relação com a força única que funda o universo e no estado de queda que geralmente fragmenta a unidade profunda do real: trata-se de restaurar o ícone desfigurado, de reencontrar a sua harmonia perdida no tumulto com os bocados, os despojos e as colagens que com eles podemos fazer. Esta obra põe em cena, portanto, essa dialéctica eterna do rasgamento da consciência – que é a própria condição humana – que sabe que a pureza passa pela falta que ela condena. Só encontramos procurando e arriscando-nos. Existe em Tarkovsky uma visão do ser como acto e não como preguiça passiva e consumidora. As vias abertas ao homem, à criação e ao amor, alienam-se frequentemente; é preciso cultivar a atenção vigilante, ser sentinela de si próprio. Então, sob o clamor que sobe de uma humanidade não realizado por condição mas de que a alma é enteléquia e abre caminho a um sentido."
A ARTE, cap. X, de FRANCE FARAGO
Porto Editora, 2002
Texto bem redigido. Tarkovsky é dotado de grande simbolismo e, pelos vistos, genialidade.
ResponderEliminarAbraço
Cinema as my World
É boa ideia trazer esse tipo de artigos para os blogs. Não o vou ler porque ainda me falta ver muito Tarkovsky.
ResponderEliminarEm relação ao filme que tens "Em Destaque", não era bem este o texto mas serve, cá está o prometido:
http://www.thefilmjournal.com/issue7/red.html
Uma questão importante é saber quem é "o Juíz". Na perspectiva desse texto é o criador, o artista, Kieslowski himself. Outras perspectivas apontam para que seja Deus, dada a insistência no número sete durante a obra.
De qualquer forma, e apesar de polaco e de ter feito o Dekalog, penso que Kieslowski não era crente. Fica ao critério de cada um. Podem ser a mesma pessoa.
Bruno, sem dúvida que é.
ResponderEliminarCarlos, quando vires dá uma espreitadela. Penso que mesmo não tendo visto nada dá para ser visto sob uma perspectiva de querer conhecer o conceito de arte para Tarkovsky.
Obrigado pelo link ;) Li e concordo com algumas coisas. A teoria que Kieslowski se tenha representado na personagem do juíz é interessante, até porque acaba de renunciar ao cargo de forma desinteressada. Denoto também mta nostalgia na sua personagem.
Saquei o primeiro Dekalog e estou muito interessado.
Penso que o realizador tem uma perspectiva religiosa, mas no sentido cósmico, não católica. Penso que isso é visível quando capta a realidade envolvente de forma paulatina, tentando-a elevar ao sublime, à metafísica. É como se tudo, a alma e o meio em que esta se insere, fossem dotados de uma irrevogável distinção divina. :)
Abraços
PS: procurei e, de facto, a Binoche aparece nos 3 filmes. No "Branco", é em plano de fundo, muito brevemente, a sair do tribunal onde o protagonista é julgado.
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