Que há para além de nós, do contínuo espácio-temporal que prende cada ser humano à sua residência terrestre? Tarkovsky, com Solaris, a sua primeira aventura pela ficção científica, não ousa sequer responder a isto porquanto, tal como as personagens criadas, se apercebe da aparência presente na factualidade e segurança que julgamos ter da nossa existência e do nosso conhecimento concreto das coisas, acabando então por o rejeitar com veemência, assim como a curiosidade mórbida que nos afunda o pensamento.
Interessa ao mestre russo explorar, numa primeira fase, o sentimento do homem de ambição desmedida de alcançar e conquistar o espaço sideral e o grande e escusado salto que este pretende fazer à mascarada ignorância do mistério que é a sua essência vital, levando os cientistas astronautas a se depararem com o angustiante e imenso vazio que há no universo. Numa segunda fase, já aceite, com a acalmia e anti-positivismo necessários, a consideração de que não há possibilidade de saber muito mais, são tratadas as já conhecidas ideias que defendem o urgente recasamento do homem com a Natureza e a procura tranquila e pessoal da alma e dos verdadeiros desejos lá residentes (algo que dará mais ênfase no subsequente Stalker). Estão, por outro lado, bem salientes as considerações sobre a real e absurda postura do protagonista, representante da contemporânea humanidade, perante a mortalidade e o amor – é de forma implacável e cruel que este é posto ante a (im)possibilidade de a morte de alguém querido regredir, neste caso a da mulher que tragicamente perdeu na Terra. Nesta circunstância, fantasiosa e quase que disparatada, o cineasta, escondido atrás da divina e paradoxal transparência opaca do Oceano, estuda a reacção que temos quando nos encontramos frente ao desconhecido e ao que não é logicamente explicado pelo saber adquirido, investigando, de igual maneira, a forma como erradamente racionalizamos os sentimentos (o amor, particularmente) e como essa teorização alimenta a nossa zona de conforto interior. Assim sendo, chegamos a duas concludentes e cruas reflexões – a que sustenta a vivência dos momentos como algo de percepcionado e sentido intersubjectiva e intimamente, ainda que estes sejam colectivamente partilhados, e a que defende o conhecimento (da existência, da identidade, do amor, do espírito e do mundo) alcançado apenas por via da libertação do considerado não-conhecimento (científico, rígido e “universal”). Apresentadas estas conclusões, que são, como seria de esperar, recusadas e ridicularizadas pelos restantes figuras intervenientes nesta parábola, são tratadas, por fim, a incomunicabilidade moderna da humanidade (apresentada, de forma mais edificativa, pela longa sequência do trânsito no Japão, captando, com angustiante sensibilidade, as estradas e vidas que se entrecruzam de forma mecânica) e a moralidade que é, desacertadamente, imposta em cada sociedade. Tarkovsky, partindo do vislumbre dos “Caçadores na Neve” de Bruegel e da transposição para a actualidade, e partindo da firme convicção de que, no futuro, o homem se encontrará perdido no sentimento de vergonha (tal como é dito na obra), preconiza a utopia de uma nova sociedade – a que será construída, após um empenho deste em se descobrir e aceitar, baseada numa plena interacção harmoniosa com a floresta e com o outro, e no generalizado, fraterno e vivido (não racionalizado) sentimento de amor.
Solaris é, sem sombra para dúvidas, uma obra-prima do cinema e das melhores do autor, sublime na sua estrutura formal e na forma como se é servido desta para atingir o transcendente, misteriosa na sua essência, como afinal o é a própria imensidão do universo e da nossa alma.
É mesmo, João ;)
ResponderEliminarÉ um excelente filme e o meu preferido do Tarkovsky.
ResponderEliminarNão é o meu preferido mas é um dos melhores do Tarkovsky sim. E acho-o melhor do que o 2001.
ResponderEliminar