quarta-feira, janeiro 27, 2010


Quando o cinema se desconstrói numa lógica ilógica, a que se junta o facto de ser, igualmente, revolucionária, ambiciosa e livre, e, depois, se une como arte em estado bruto, então origina-se e põe-se-nos defronte a uma das obras mais preciosas de sempre: 8 ½.

Perante todo o convencionalismo e rigidez normativos na sétima arte e respectivas leis da perspectiva, narrativa e coesão, muitos e necessários foram aqueles que impuseram no público novas visões, algumas delas provocatórias como foi o caso do dadaísmo de Duchamp, ou da introdução da Nouvelle Vague francesa no mundo. Neste contexto, Fellini apresenta o seu filme mascarado no seu protagonista, também ele um cineasta, denunciando a necessidade de fuga da padronização exuberante do cinema. Três anos depois da apresentação da película italiana, Bergman também se demarcava com o excelente e inesquecível Persona, perfeito exemplo do que acabamos de falar. Porém, o italiano pode considerar-se um caso à parte. Com belíssimas interpretações, fotografia e banda sonora que fazem juz à sua qualidade narrativa, “8 ½” não é, simplesmente, do ponto de vista formal, algo de subversivo. É, sim, o confluir de todo um surrealismo próprio do realizador e, como óbvio acaba por ser, da sua vida. É, talvez, por isso que Guido nos parece tão verdadeiro e tão vivo — é nele, afinal, que habita o resultado de uma profunda introspecção realizada por Fellini. Sensível como um auto-retrato de Mattia Moreni, é ele que move o espírito do seu criador e se apresenta ao espectador mais deliciado.

Nele, vemos aquilo com que este enfrenta diariamente, fruto da sua personalidade: a abulia, o cansaço e o desencanto máximo da realidade; a consequente tentativa de fuga desta por via do cinema, meio conciliador da sua redenção com uma vida que lhe parece insuficiente e, ao mesmo tempo, sufocante. É também pelo facto de estar atrás de uma objectiva que Guido Fellini, unido como se de Pessoa e Campos tratasse, recorda, uma vez mais, os desejos e medos recônditos de uma infância distante, inocente e mágica, fundindo-os e confundindo-os numa realidade monótona e disfuncional (representada, neste caso, por um casamento mal sucedido ou por uma luta constante por uma saúde plena).

A nostalgia doente do realizador (qual deles?), que servirá, também e por exemplo, para reavivar uma consciente crítica à sociedade católica italiana, alia-se à interminável busca pela liberdade e pela consolidação de uma identidade que talvez nunca chegou a ser formada na totalidade. Pela busca de uma ultra-realidade, misteriosa e mágica, sem tempo para tempo, onde o impossível se torna possível, onde a vida se demonstra interminável e pura. Perspectiva-se, então, o referido pelas metáforas visuais, pelas burlescas personagens com que tudo parece suceder, e pelas reflexões feitas pelo diálogo ou pela acção, das mais pequenas às mais dançantes circunstâncias. Nesta autêntica obra-prima, a realidade é, simplesmente, o túnel onírico que medeia a inexistência da metafísica e o mistério imaginário da vida. Caberá a nós, aqui e agora, decidir se o queremos atravessar.

9/10
+Críticas da iniciativa "Janeiro & Federico Fellini" ao mesmo filme: 

7 comentários:

  1. Fellini 8 e ½ é uma das mais fantásticas obras do Cinema. A confirmação de um cineasta genial, único e competente, que resulta num dos mais inspirados filmes da História do Cinema. Uma obra-prima!

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  2. Eh pah, mas que crítica brilhante. Os meus parabéns!

    E sim, 8 1/2 é uma obra-prima absoluta!

    Cumps.
    Roberto Simões
    CINEROAD - A Estrada do Cinema

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  3. Tiago, exacto, estou em mpleno acordo contigo. A inspiração para tratar a "desinspiração" é perfeitamente notória.

    Roberto e O Homem Que Sabia Demasiado, obrigado aos dois pelo elogio. 8 1/2 é um filme muito bom mesmo, uma obra-prima essencial a qualquer um que aprecie a arte de fazer cinema

    Abraços!

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  4. Faço minhas as palavras do Roberto e do Victor. Bom texto sobre uma das obras-primas desse génio que foi Fellini.

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  5. Álvaro, a ti também te agradeço as palavras amigas. Fellini foi um génio, sim!

    Abraço

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  6. o pobrezinho 9 só dá algum prazer se se tiver visto esta coisa enorme antes.

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