sábado, novembro 05, 2011

LEFFEST 2011 (1): Gus Van Sant contra o mundo

Se o cinema pode ser um mecanismo que permita que observemos e exploremos a vida, Gus Van Sant parece então ter descoberto a forma de fazer o mesmo com a coisa misteriosa que é, para si, a morte. Restless (título original; que estreia no próximo dia 10 de Novembro e foi exibido ontem em antestreia no Cinema Monumental no âmbito do primeiro dia do Lisbon & Estoril Film Festival – sessão dupla às dez e à meia-noite) começa por nos expor, então, um dilema que é, sobretudo, eminentemente cinematográfico: como representar aquilo que é invisível ou, por outro lado, aquilo que não existe? Continuando a filmar os vivos, evidentemente. 

Para o realizador norte-americano a morte não é um tabu. Demonstrara-o já na sua “trilogia da morte” (Gerry, em 2002, Elephant, Palma de Ouro de 2003, e Last Days – Últimos Dias, em 2005) e em Paranoid Park, apresentado em 2007, ponto de equilíbrio (ou assim quisemos acreditar) entre o cinema independente e mainstream. Mas Gus Van Sant parece não estar interessado em participar nesse duelo, tanto que Inquietos (título da versão portuguesa) se afirma claramente (pela transparência e um certo convencionalismo dramatúrgicos, muito embora o argumento não siga o arco arquetípico dos filmes clássicos, dado que não há qualquer ponta de objectivos per se) como um filme para o público (e não para um público), sem que isso equivalha ao abandono das suas ideias e da sua omnipresença enquanto autor. 

Na sua mais recente longa-metragem, a morte volta a estar no núcleo temático, a par do protagonismo nostálgico dos adolescentes. Partindo de uma amizade que, tão rápida como lentamente, se transfigura no princípio de uma relação amorosa, Inquietos segue Mia Wasikowska como Annabel, doente de um cancro terminal, e o filho de Dennis Hopper (mítico realizador e actor a quem o filme é no fim dedicado), Henry Hopper, como Enoch, assombrado, literalmente, pelos fantasmas do passado. Aqui, a proximidade do fim sofre da dicotomia entre a angústia e a indiferença. E isso é, porventura, a característica que transforma o filme distinto – quer de qualquer um que Gus Van Sant tenha realizado, como também de qualquer outro que tenhamos visto enquadrado num certo tipo de estética que um filme como Inquietos pode ser rotulado (mal, naturalmente). Angústia pelos vivos que partem (Annabel) e pelos vivos que ficam (Enoch); indiferença pela evidência da inexistência de algo pós-vida e, como consequência, pelo absurdo da vida. Há duas cenas particularmente chocantes em Inquietos: numa delas, Enoch confronta a namorada com o facto de não existir nada quando morremos; noutra, Gus Van Sant ousa em nos apresentar a sua visão da morte (um plano completamente negro). Importa, de igual modo, descrever como esse choque com o espectador se distingue do horror mediático que é nosso familiar contemporâneo. Ao vermos cenas do ataque nuclear em Nagazaki, ocorrido em Agosto de 1945, somos confrontados com a nossa indiferença face ao massacre que assistimos diariamente nos meios de comunicação social – perante esse estado de espírito, Gus Van Sant prefere não nos dar a morte, mas aquilo que temos por viver (e é isso que nos deixa em desassossego, em restless, precisamente). 

É por isso que a convivência com a morte não deixa de requerer, necessariamente, um lado ao mesmo tempo espiritual e, à falta de melhor palavra, realista. Primeiro: porque o sagrado, materializado na figura do fantasma Hiroshi, serve de ponte para nos relacionarmos com aqueles que não já são e, por conseguinte, atenuarmos um certo sentimento de solidão; segundo: porque a natureza no seu estado bruto, observada por Annabel, proporciona que entendamos a vida num constante estado de espanto e deslumbramento. Ou, melhor dizendo, de felicidade. Porque, como recorda a personagem encarnada por Mia Wasikowska, o pássaro canta de manhã porque se apercebe que ainda está vivo (reparemos, já agora, na frequente presença dos sons dos pássaros nos últimos filmes de Gus Van Sant – em Elephant, Last Days, Paranoid Park e, agora, em Restless –, associados sempre à morte). E, se por si só a utilização invulgar do som nos bastava para descrever o cinema simbólico de Gus Van Sant, associemos toda aquela atmosfera plácida e tranquila (fruto da colaboração com o director de fotografia Harris Savides e o compositor Danny Elfman, responsáveis pela imagem e pela banda musical de Milk, respectivamente) ao contexto do Outono (já visto em Elephant), estação agora associada ao realizador. 

Muito embora possamos pensá-lo um filme sobre a morte será melhor desenganarmo-nos. Parece ser sobre uma questão ainda mais fundamental: como viver a vida ou, sem redundâncias, como viver? Porque, como aqui ouvimos, a morte é fácil, o amor (ou toda a vida, não nos importemos de acrescentar) é que é difícil. Em Inquietos chora-se – mas pelos vivos. No plano final do filme percebemos que a memória é o recurso que nos é mais caro para lidarmos com tudo aquilo que é efémero, tudo aquilo que já não é.

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