domingo, março 07, 2010

O triunfo da popularidade

Será daqui a algumas horas (quatro, mais ou menos) que muitos de nós, na melhor das hipóteses, nos reuniremos frente à televisão (sintonizada naquele canal que, de mim, só retira o sentimento de aversão, tal é a sua colossal qualidade), esperando saber, em directo e em primeira mão, quais os vinte e quatro vencedores da 82ª cerimónia dos Óscares, realizada, como já tem sido habitual, no palco da Kodak Theatre, em Los Angeles.

A megalómana cerimónia, se antes reconhecida por ser a mais importante e crível no que toca à gratificação daquele que seria, supostamente, “o” filme do ano, depois da revolução a que a Internet foi responsável, tem vindo a perder a magia que a envolvia, tal como a sua credibilidade. Centrada em Hollywood, desmascaram-se as tentativas de propaganda aos votantes, assumiu-se implicitamente a vontade expressa de influenciar aqueles que decidem, anualmente, o melhor que foi feito na sétima “arte”, tal como se declarou, pública e subtilmente, o centralismo norte-americano de que vivem os Óscares. Sempre assim foi, não nos iludamos. É uma evidência que cada cinéfilo tem que aceitar – e o facto de, em 2010, estarem nomeados 10 filmes em vez de 5 para promoção e busca de audiências televisivas e, também, de estarem divididos melhor filme / melhor filme estrangeiro, ilustra bem esta realidade. Algo que, também implicitamente, se tem vindo a assumir é a busca de inclusão dos filmes independentes (ou, pensando melhor, “so called”): “Juno” e “Little Miss Sunshine” são dois exemplos passados bem ilustrativos do que acabo de falar. Contudo, esta procura por um equilíbrio entre aquilo que vem da indústria e aquilo que é mais “diferente” (reforcem-se as aspas), algo que foi visto como claro aquando da luta, ano passado, entre “O Estranho Caso de Benjamin Button” e “Quem Quer Ser Bilionário?”, tem vindo a acentuar as dificuldades internas da Academia em agradar tudo e todos. O que é, obviamente, compreensível. Cada vez mais o cinema se tem fragmentado (seja em género, seja em modus operandi, seja em intenções, seja em origem), e a busca por um consenso que faça reunir, novamente, milhões frente a um televisor para ver a entrega dos Óscares (como aconteceu aquando das gratificações “Titânic”a e “Gump”iana) é já uma utopia declarada. A estatueta dourada, perdendo o seu brilho, importância e “glamour”, não passa hoje disso mesmo: de um prémio merecedor de quarenta e cinco segundos em agradecimentos, de um nome e de uma tira de DVD (como nos falava o jornal “Ípsilon”, na passada sexta-feira). Os Óscares passaram a desempenhar uma função social, em vez de reconhecer a qualidade e o valor das obras que vai nomeando (onde está “Um Homem Singular”?): e tudo depende do contexto. Se “Forrest Gump” venceu e calcou “Pulp Fiction” depois da celebração do belíssimo “A Lista de Schindler”, foi para manter o equilíbrio de felicidade e esperança que o cinema supostamente deveria transmitir. O mesmo, exactamente, se sucedeu ano passado: depois do niilismo de “Este País não é para Velhos”, tornou-se óbvia a vitória do slumdog, dos pobres, do “desigual”, do brilho, da esperança, da mudança (veja-se a vitória de Obama nesse tempo). E se a cerimónia de hoje passar, apenas e só, pela reprodução do que se sucedeu com os passados Globos de Ouro (mas com uns passos de dança como ano passado), então aguarda-nos uma valente perda de tempo.

A Academia não gosta de surpreender, digam o que almas sábias disserem – numa altura em que, sob pressão das cadeias televisivas, se vê obrigada a navegar entre a popularidade das suas películas, torna-se clara a vitória do Rei do Mundo. “Avatar” (crítica) percorreu países, é dos filmes mais rentáveis de sempre (“o” mais, dizem!), esteve sob o signo da revolução técnica, a sua magnificência requer-se imortal e incontestável (é o que se diz, e não me atreveria a calar um planeta embusteado). Mas bem… se há um Óscar que, ano menos ano, será criado e que deveria ser entregue a posteriori a este trabalho de pirotecnia, seria o de Melhor Propaganda. Mas, não sei bem porquê, cansa-me falar deste filme. A sua rivalidade não é a melhor, também é certo: “Precious” é o filmezito que Oprah tanto quis produzir e que não passa de um mega-dramalhão que sobrevive das suas interpretações, “Nas Nuvens” é a crítica social da actualidade que se perde num guião típico, “UP – Altamente!” é a respeitada execução da Pixar que se clonou e fugiu da categoria a que pertence (melhor filme de animação), “Estado de Guerra” é o gelado voyeur de um país frágil pela guerra no Iraque, “Um Homem Sério” é o resultado desequilibrado de dois irmãos que sabem que poderiam ter feito mais. Há a triste certeza de que “Distrito 9” (a docureflexão original e inédita de uma humanidade cruel e discriminatória) e “Uma Outra Educação” (a simples mas cativante história que versa a jornada de uma estudante dos anos 60 dividida entre duas escolhas sociais) não vingarão. Resta-nos “Um Sonho Possível” (que aguardo com o entusiasmo característico de alguém a morrer) e “Sacanas sem Lei”. E este, sim, é cinema puro, inteligente, no seu estado vertiginoso e ávido. Ainda que naturalmente pretensioso na sua aura de marketing, a qualidade da obra (na narrativa, montagem, interpretações, fotografia) e talento de Tarantino fazem-me acreditar o justíssimo vencedor seria este – algo que não acontecerá, infelizmente. Sempre posso estar errado (gostava, desta vez, que sim), mas a mega-produção de James Cameron tem demasiados fãs para que a Academia os desiluda. Lá se encontra a função social de que vos falei. Gostava, por fim, de ver Colin Firth e Michael Haneke a discursar – ganharia a noite se os visse no meu televisor.

Não vos minto, contudo: penso que será o sonho de qualquer um de nós, que gostasse de enveredar pelos caminhos suicidas do cinema, subir as escadas daquele palco e receber, nas mãos, a estatueta. O peso desta, nesse momento, estará de tal forma agigantado que nos aperceberíamos, aí, que os Óscares ainda vão sobrevivendo, apesar de todas as suas contradições e desequilíbrios. Continuam a ser o momento que leva o meu coração a acelerar-se quando ouço o “and the Oscar goes to”. Cada vez mais tem chorado e desiludido, mas essa é outra história.

9 comentários:

  1. Que texto magnífico... Assombroso, estou sem palavras. Adorei mesmo.
    Não há o que acrescentar, está tudo dito.

    Da TVI a Avatar, falas em tudo.

    E bem, muitíssimo bem.

    Abraço!

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  2. nem mais. Sacanas sem Lei ao poder. Só é pena é que os Óscares se pareçam cada vez mais com o MTV Movie Awards.

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  3. É claro o domínio de The Hurt Locker. Concordo em grande parte com o que dizes, as usual.

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  4. Concordo em tudo. Mais uma vez grande texto Flávio.

    Abraço

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  5. Jackie Brown, já te disse que penso que exageras ;) Mas muito obrigado!

    san(T)os, vai parecendo cada vez mais uma verdade.

    Isa, <3 :P

    Tiago, sim, é claro.

    AlexSupertramp, muito obrigado.

    Abraços!

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  6. O Cinema puro que falas dos Sacanas foi o grande injustiçado dos òscares!

    Nada de surpresas...

    Abraço
    Cinema as my World

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  7. Quanto ao oscar, a Cerimônia foi bastante chatinha e morna, sem sal.

    Visto que os filmes deste ano nem todos foram empolgantes, fato.
    Sandra Bullock melhor atriz? Era a mais fraquinha das indicadas, sinceramente. Até Carey Mulligan por Educação estava melhor que ela! Lamentável, como sempre as premiações são estranhas – lembra de Reese Whiterspoon ter tirado o Oscar de Felicity Huffman por Transamerica? Julia Roberts ter tirado o Oscar das mãos de Ellen Burtyn por Requiem para um sonho? como sempre, filmes comerciais imperam mais – vide as atuações. Fato!

    Guerra ao terror é bom, sim…mas, Bartados Iglorios que deveria imperar nas premiações…só levou o oscar de coadjuvante? Sem comentários.

    Jeff Bridges merecia há anos, esse sim valeu a pena! foi bonito de ver. Gostei das premiações técnicas de Avatar, mas merecia melhor som e mixagem também! Boa a premiação de filme estrangeiro, apesar do páreo duro este ano nessa categoria. Essa sim teve filmes densos e interessantes!

    Taylor Lautner e Kristen Stewart estavam agradáveis na apresentação dos filmes de terror – o que Lua nova também fazia nas cenas juntos com os filmes de terror? Achei estranho também, visto que o filme não é macabro, mas acho que o critério de seleção dos filmes era mais por ter elementos do horror(vampiros, lobisomens, etc). Vai entender mesmo, rs.

    Bela homenagem a John Hughes, momento ápice da Cerimônia e tenho dito!

    Eu acho que a trilha sonora deveria ter sido por James Horner, Avatar ou mesmo o de Hans Zimmer que fez um belo trabalho no Sherlock Holmes – mas, você vai me condenar, mas eu preferia mesmo é que a trilha de Alexandre Desplat por Lua Nova tivesse sido vencedora, já escutou? recomendo! Sério, o score é lindo e intenso.

    Bom, que venha o próximo Oscar!

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  8. Cristiano, fizeste uma excelente análise da cerimónia, concordo com quase tudo. Quanto à banda sonora, odiei a de Avatar (James Horner fez um péssimo trabalho, e ele é um bom compositor), e aprecio bastante o trabalho de Hans Zimmer. Quando a Lua Nova, Desplat é a única coisa que se salva do filme. Gosto mesmo muito - há uma faixa chamada "The Meadow" que adoro.

    Um abraço!

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