A primeira vez que contactei com Wong Kar Wai foi num solitário início de madrugada de Domingo, algures no ano passado, apanhando (quase) por acaso "My Blueberry Nights" na televisão. Decidi não mudar de canal, já que quisera tê-lo ido ver ao cinema sem o ter feito realmente; mas, como acabei por adormecer a meio, concluí na manhã seguinte que não estava com a disposição apropriada para ver Kar Wai (ou o que quer que fosse) nessa noite. Não foi, portanto, um primeiro encontro muito auspicioso, e passariam meses até que a curiosidade me levasse a ver algo dele - no verão, mais concretamente, quando assisti ao seu "2046".
Olhando para trás, apercebi-me de que as impressões em mim suscitadas pelo filme não eram completamente nítidas. Claro, tinha-me rendido a toda a beleza visual de que a película é possuidora; o facto de ter citado vários trechos de diálogos ou voice-overs em conversas onde o realizador era mencionado atesta a forma como me tinha marcado, e reconheci, mal terminada a sua visualização, que estava perante uma obra-prima. Constatei, todavia, ainda que sem conseguir determinar a sua causa, uma certa distância em relação às personagens e à própria história em si. E agora, vistos outros - não todos- filmes dele, e tendo procedido há algumas horas à devida reapreciação de "2046", percebo agora que o porquê de me ter sentido assim foi o ter começado pelo fim.
Pelo fim, porque "2046" é, simultaneamente, o culminar do aperfeiçoamento e refinação de uma técnica que Kar Wai foi utilizando, com variantes, em toda a sua filmografia, e a continuação da história de personagens que encontramos em "In The Mood for Love" ou, mais atrás, cronologicamente falando, em "Days of Being Wild".
Com efeito, "2046" contém aquilo tudo aquilo que nos permite reconhecer a autoria do cineasta chinês relativamente a um filme, desde o emprego do slow-motion (aqui não produzindo, contudo, cenas tão bem orquestradas como as presentes no já mencionado "In The Mood for Love"), ao leitmotiv, quer instrumental, quer cantado em espanhol, como já acontecia no filme de 2000, aos momentos cinematográficos que distinguem os seus argumentos e à detalhada caracterização das personagens que protagonizam as suas histórias. Mas, acima de tudo, a poesia, que brota de cada plano, de cada sequência, autênticas elegias sobre o ser humano: raras vezes a fusão de som e imagem proporcionou resultados tão pungentes e harmoniosos, e nunca iguais àqueles conseguidos em "In The Mood For Love" e "2046" (a meu ver, ambos constituindo o expoente máximo da obra do realizador) pois, influências à parte, Kar Wai é único, e o seu toque pessoal inconfundível.
Tal é visível desde logo em "Days Of Being Wild", na minha opinião o primeiro filme em que o génio do autor começou a despontar verdadeiramente. Nele visitamos Hong Kong nos anos 60 e conhecemos pela primeira vez a impetuosa e emocionalmente descontrolada Lulu (ou Mimi), sobre quem, em "2046", se diz o seguinte: "She didn't mind sad endings. The male lead could change as long as she was the leading lady". Nada teria captado melhor a essência da personagem, na verdade - e, generalizando, nada serviria de descrição mais adequada à trajectória das personagens criadas pelo realizador asiático. Constantemente desencontradas, separadas por motivos exteriores como a imposição do dever conjugal ou da fidelidade a laços de sangue, por motivos interiores como a dissonância de expectativas e sentimentos que vão alimentando, sempre em busca de ventura mas continuamente atormentadas pela frustração derivada da não prossecução das perspectivas da felicidade por elas ambicionada, tornam-se seres errantes, em geral presos a um passado de que não se orgulham e resignados a um futuro de igual auto-descontentamento, pessoas cujas relações que estabelecem com outrem nunca se revelam longas o suficiente para as fazer emergir da solidão por vezes angustiante que perpassa as suas vidas - como nos mostra o breve encontro entre o polícia e a femme fatale em "Chungking Express".
Mas nem tudo é tristeza e taciturnidade em Wong Kar Wai. Faye Wong encarna, curiosamente, duas das personagens mais vivazes a passar pelos seus filmes - a descontraída e irreverente Faye, em "Chungking Express", e a adorável apaixonada Jing-wen em "2046", possuidora de uma inocência e castidade de que as outras personagens (nomeadamente a de Tony Leung e a de Ziyi Zhang) se encontram desapossadas, entregando-se à luxúria como meio de estabelecer um contacto - de qualquer forma - entre si. Não incluo Bai Ling nesta pequena lista porque é evidente que a sua forma leviana de olhar a vida é só uma tentativa de se furtar a encará-la realmente.
São personagens, em suma, com um poderoso desejo de sentir - e o cineasta, conhecedor do género humano e dos seus paradoxos, explora habilmente as consequências várias da contradição ou confirmação dessa vontade, criando à volta disso um círculo de experiências e situações que, mais do que nos darem a conhecer melhor as personagens fictícias que passam no ecrã, nos fazem reflectir sobre nós, que estamos em frente a ele a assistir. Sim, os seus filmes são, em essência, histórias de amor - e embora eu pense que não faz muito sentido falar do homem esquecendo esse sentimento, talvez o mais multifacetado que ele tem possibilidades de experimentar e, igualmente, o que lhe é de mais difícil compreensão, não posso deixar de reconhecer que isto poderá tornar o seu público-alvo muito restrito, levando porventura a uma injusta e redutora categorização do artista chinês. O que é uma pena, pois a forma como a distância entre os protagonistas de "In The Mood For Love" e os seus cônjuges é estabelecida, nunca sendo mostrada ao espectador as faces destes últimos, ou o íncrivel sentido de unidade e transcendência existente em toda a sua obra, materializado em "2046" (recheado de referências a outros filmes do realizador, desde o resgate de personagens anteriormente apresentadas à recorrência de temas que ambientaram as películas anteriores, ou o evocar de pequenos momentos emblemáticos, como o instante em que a personagem de Tony Cheung descalça uma personagem feminina, numa situação semelhante a algo presenciado em "Chungking Express" denotam uma mente criadora dotada de génio verdadeiro.
Continuar a conhecer mais aprofundadamente o seu trabalho vai ser para mim um prazer que antecipo com agrado; deixo-vos com um convite a conhecê-lo também, juntamente com a frase que "abre" o "2046": "All memories are traces of tears". Porque, citando certa rubrica radiofónica, se calhar vale a pena pensar nisto.
Olhando para trás, apercebi-me de que as impressões em mim suscitadas pelo filme não eram completamente nítidas. Claro, tinha-me rendido a toda a beleza visual de que a película é possuidora; o facto de ter citado vários trechos de diálogos ou voice-overs em conversas onde o realizador era mencionado atesta a forma como me tinha marcado, e reconheci, mal terminada a sua visualização, que estava perante uma obra-prima. Constatei, todavia, ainda que sem conseguir determinar a sua causa, uma certa distância em relação às personagens e à própria história em si. E agora, vistos outros - não todos- filmes dele, e tendo procedido há algumas horas à devida reapreciação de "2046", percebo agora que o porquê de me ter sentido assim foi o ter começado pelo fim.
Pelo fim, porque "2046" é, simultaneamente, o culminar do aperfeiçoamento e refinação de uma técnica que Kar Wai foi utilizando, com variantes, em toda a sua filmografia, e a continuação da história de personagens que encontramos em "In The Mood for Love" ou, mais atrás, cronologicamente falando, em "Days of Being Wild".
Com efeito, "2046" contém aquilo tudo aquilo que nos permite reconhecer a autoria do cineasta chinês relativamente a um filme, desde o emprego do slow-motion (aqui não produzindo, contudo, cenas tão bem orquestradas como as presentes no já mencionado "In The Mood for Love"), ao leitmotiv, quer instrumental, quer cantado em espanhol, como já acontecia no filme de 2000, aos momentos cinematográficos que distinguem os seus argumentos e à detalhada caracterização das personagens que protagonizam as suas histórias. Mas, acima de tudo, a poesia, que brota de cada plano, de cada sequência, autênticas elegias sobre o ser humano: raras vezes a fusão de som e imagem proporcionou resultados tão pungentes e harmoniosos, e nunca iguais àqueles conseguidos em "In The Mood For Love" e "2046" (a meu ver, ambos constituindo o expoente máximo da obra do realizador) pois, influências à parte, Kar Wai é único, e o seu toque pessoal inconfundível.
Tal é visível desde logo em "Days Of Being Wild", na minha opinião o primeiro filme em que o génio do autor começou a despontar verdadeiramente. Nele visitamos Hong Kong nos anos 60 e conhecemos pela primeira vez a impetuosa e emocionalmente descontrolada Lulu (ou Mimi), sobre quem, em "2046", se diz o seguinte: "She didn't mind sad endings. The male lead could change as long as she was the leading lady". Nada teria captado melhor a essência da personagem, na verdade - e, generalizando, nada serviria de descrição mais adequada à trajectória das personagens criadas pelo realizador asiático. Constantemente desencontradas, separadas por motivos exteriores como a imposição do dever conjugal ou da fidelidade a laços de sangue, por motivos interiores como a dissonância de expectativas e sentimentos que vão alimentando, sempre em busca de ventura mas continuamente atormentadas pela frustração derivada da não prossecução das perspectivas da felicidade por elas ambicionada, tornam-se seres errantes, em geral presos a um passado de que não se orgulham e resignados a um futuro de igual auto-descontentamento, pessoas cujas relações que estabelecem com outrem nunca se revelam longas o suficiente para as fazer emergir da solidão por vezes angustiante que perpassa as suas vidas - como nos mostra o breve encontro entre o polícia e a femme fatale em "Chungking Express".
Mas nem tudo é tristeza e taciturnidade em Wong Kar Wai. Faye Wong encarna, curiosamente, duas das personagens mais vivazes a passar pelos seus filmes - a descontraída e irreverente Faye, em "Chungking Express", e a adorável apaixonada Jing-wen em "2046", possuidora de uma inocência e castidade de que as outras personagens (nomeadamente a de Tony Leung e a de Ziyi Zhang) se encontram desapossadas, entregando-se à luxúria como meio de estabelecer um contacto - de qualquer forma - entre si. Não incluo Bai Ling nesta pequena lista porque é evidente que a sua forma leviana de olhar a vida é só uma tentativa de se furtar a encará-la realmente.
São personagens, em suma, com um poderoso desejo de sentir - e o cineasta, conhecedor do género humano e dos seus paradoxos, explora habilmente as consequências várias da contradição ou confirmação dessa vontade, criando à volta disso um círculo de experiências e situações que, mais do que nos darem a conhecer melhor as personagens fictícias que passam no ecrã, nos fazem reflectir sobre nós, que estamos em frente a ele a assistir. Sim, os seus filmes são, em essência, histórias de amor - e embora eu pense que não faz muito sentido falar do homem esquecendo esse sentimento, talvez o mais multifacetado que ele tem possibilidades de experimentar e, igualmente, o que lhe é de mais difícil compreensão, não posso deixar de reconhecer que isto poderá tornar o seu público-alvo muito restrito, levando porventura a uma injusta e redutora categorização do artista chinês. O que é uma pena, pois a forma como a distância entre os protagonistas de "In The Mood For Love" e os seus cônjuges é estabelecida, nunca sendo mostrada ao espectador as faces destes últimos, ou o íncrivel sentido de unidade e transcendência existente em toda a sua obra, materializado em "2046" (recheado de referências a outros filmes do realizador, desde o resgate de personagens anteriormente apresentadas à recorrência de temas que ambientaram as películas anteriores, ou o evocar de pequenos momentos emblemáticos, como o instante em que a personagem de Tony Cheung descalça uma personagem feminina, numa situação semelhante a algo presenciado em "Chungking Express" denotam uma mente criadora dotada de génio verdadeiro.
Continuar a conhecer mais aprofundadamente o seu trabalho vai ser para mim um prazer que antecipo com agrado; deixo-vos com um convite a conhecê-lo também, juntamente com a frase que "abre" o "2046": "All memories are traces of tears". Porque, citando certa rubrica radiofónica, se calhar vale a pena pensar nisto.
Excelente artigo sobre Kar Wai. Já o li duas vezes.
ResponderEliminarCada vez me apercebo mais como tenho que ver e conhecer a obra do poeta como um todo. Porque a sua obra dialoga entre si e só pelo todo poderei entender melhor cada uma das partes.
Talvez aí entenda melhor a beleza e profundidade de 2046, por exemplo.
Cumps.
Roberto Simões
» CINEROAD - A Estrada do Cinema «
Excelente texto mesmo! Parabéns - acabaste religiosamente, foi? Qualquer dia vais para a Renascença trabalhar!
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