segunda-feira, março 08, 2010

"E esse homem sou eu..."


Portanto, eu tinha um problema: justificar a vida em face da inverosimilhança da morte. E nunca mais até hoje eu soube inventar outro. De que poderia falar na conferência? Nada mais há na vida do que beber até ao fim o vinho da iluminação e renascer outra vez. Riqueza ou miséria, ciência, glória, vexame, e a política e até a arte para tantos artistas, conhecimento do homem no corpo e no espírito – quantos modos de esquecer ou de não saber ainda o pequeno problema fundamental. Mas o que é extraordinário e me exaspera é que eu próprio tenha precisado de uma vida inteira para o saber. E quantas vezes agora o esqueço? O mais forte em nós é esta voz mineral, de fósseis, de pedras, de esquecimento. Ela germina no homem e faz-lhe pedras de tudo. Assim, quando procuro em mim a face original da minha presença no mundo, o que descubro não é o alarme da evidência, o prodígio angustioso da minha condição: o que descubro quase sempre é a indiferença bruta de uma coisa entre coisas. Eis-me aqui escrevendo pela noite fora, devastado de Inverno. Eis-me procurando a verdade primitiva de mim, verdade não contaminada ainda da indiferença. Mas onde esse sobressalto de um homem jogado à vida no acaso infinitesimal do universo? Se meu pai não tivesse conhecido minha mãe; se há cem anos, há mil anos, há milhares e milhares de anos um certo homem não tivesse conhecido certa mulher; se… Nesta cadeia de biliões e biliões de acasos, eis que um homem surge à face da Terra, elo perdido entre a infinidade de elos, de encruzilhadas – e esse homem sou eu…

E todavia, agora que me descubro vivo, agora que me penso, me sinto, me projecto nesta noite de vento, de estrelas, agora que me sei desde uma distância infinita, me reconheço não limitado por nada mas presente a mim próprio como se fosse o próprio mundo que sou eu, agora nada entendo da minha contingência. Como pensar que «eu poderia não existir»? Quando digo «eu», já estou vivo… Como entender que esta iluminação que sou eu, esta evidência axiomática que é a minha presença a mim próprio, esta fulguração sem princípio que é eu estar sendo, como entender que pudesse «não existir»? Como pensar que é nada? A minha vida é eterna porque é só a presença dela a si própria, é a sua evidente necessidade, é ser eu, EU, esta brutal iluminação de mim e do mundo, puro acto de me ver em mim, este SER que irradia desde o seu mais longínquo jacto de aparição, este SER-SER que me fascina e às vezes me angustia de terror… E todavia eu sei que «isto» nasceu para o silêncio sem fim…
 
Reler um ou outro excerto de Aparição, da autoria de Vergílio Ferreira, é como se estivesse a lê-lo pela primeira e inédita vez. Reflectindo sobre a identidade, a existência, a vida e a morte, o luto, a realidade, a percepção e o significado de nos "sabermos", pode-se dizer que a abismal importância  do livro permanece actual – a sua universalidade e intemporalidade é, há que o admitir, incontestável. Sem dúvida: uma das maiores obras da “nossa” literatura, da arte de toda a humanidade.

3 comentários:

  1. «E todavia eu sei que «isto» nasceu para o silêncio sem fim…»

    Excelente excerto de Aparição.

    ResponderEliminar
  2. Olá!

    De facto é uma boa ideia processa-los… mas gastaria imenso dinheiro e depois o processo arrastaria se por anos e anos… e tempo é dinheiro!

    Mas obrigado pela sugestão.


    Beijinhos e porta-te mal!! ;)

    ResponderEliminar
  3. Tiago, obrigado. É um excerto absolutamente fascinante.

    adolescente gay, de nada.

    Abraços

    ResponderEliminar