A figura cinematográfica: Tarkovsky, o haiku e a necessidade de vida no plano
Uma chuva de Outono no escuro
Não, não foi em minha casa,
Foi da casa do vizinho que veio o barulho do guarda-chuva.
Haiku japonês
A cena que podemos ver em cima pertence a O Sacrifício, de Andrei Tarkovsky e nela conseguimos perceber várias marcas do estilo cinematográfico do realizador soviético: o plano-sequência (só o plano da casa a arder dura mais de 6 minutos), uma encenação que privilegia a profundidade de campo (sendo que há linhas de fuga acentuadas e deslocações das personagens no eixo da profundidade), ângulos de captação das imagens ligeiramente picados (isto permite colar as personagens à sua realidade e condição física) e o travelling lateral, perpendicular à profundidade do ecrã).
Outra característica que aqui vemos bem presente é a presença dos quatro elementos, que existem em todos os filmes do realizador. Este é um dos poucos planos que os unem e colocam em confronto: a terra por onde caminham, as poças de água que há entre ela, o ar (representado com o fumo), e o fogo, que destrói a casa, sublinhamos desde já que a presença destes elementos é um testemunho do tempo real.
No caso do som, tudo foi pós-produzido. Mas aquilo que nós vemos (fogo, movimentos de personagens) é um testemunho do tempo real, e traduzem aquilo que Chion chama da “ideia do ritmo eterno do plano ao serviço da figura cinematográfica”.
Nesta cena há a materialização de uma dupla presença: a dos elementos humanos (sujeitos a toda a mise-en-scène do realizador, que são previstos e encenados) e os elementos naturais que escapam ao seu domínio e controlo (como o fogo que arde a casa) e que, testemunhando o tempo real, traduzem também no plano o irromper da vida (com toda a imprevisibilidade que isso implica).
Vemos também a flauta japonesa e a forma como o protagonista está vestido como elementos que remetem ao fascínio de Tarkovsky pelo Oriente. Esse fascínio passava sobretudo pela poesia tradicional japonesa, o haiku.
O fascínio do Tarkovsky pelos haikus como este residia na ideia que os japoneses traduzem a sua relação com o mundo em apenas três versos. Vemos essa simplicidade com as suas polaroids ou a cena que acabamos de ver.
Para além disso, Tarkovsky vê o haiku como “observação em estado puro”, um tipo de poesia sem alusões simbólicas mas apenas com o essencial do que é visto e sentido pelo poeta. Não se pretende impor nenhuma ideia, mas apenas uma imagem, uma situação muito simples, que subsiste pela sua sensualidade.
Isto permite-nos fazer a ponte com a figura cinematográfica, um conceito do cinema desenvolvido pelo Tarkovsky a partir dos anos 70 e que ele expõe no texto que analisamos, publicado posteriormente no seu livro Esculpir o Tempo. No seu ponto de vista, a figura cinematográfica é o elemento principal do cinema. Tarkovsky defende que ela não é bem uma coisa que existe no tempo, mas que antes assenta numa dominante: o ritmo, que exprime o escoar do tempo no interior do plano. Ritmo esse que pode ser ritmo natural da chuva a cair como os slow motions. E, tal como o haiku, a figura cinematográfica exprime vida. Como? Apelando a essas sensações elementares de que nos fala o Michel Chion (que se referem a toque, a comer, com o dormir…) e que conservam nos filmes de Tarkovsky a força / frescura que tinham na infância – um tema que é, aliás, central na sua obra.
Na infância tudo é mais imediato, não há o mediador do intelecto entre nós e as sensações e Tarkovsky evoca esse estado de puro fruir dos elementos que constituem o mundo. Tarkovsky identificava a verdade através desta simplicidade destas sensações imediatas que estão presentes em todos os seus filmes: desde o sol a bater no poço de água em A Infância de Ivan, à chuva que cai subitamente n’O Espelho à vela em Nostalgia, que está constantemente a apagar-se. E a verdade no cinema alcança-se quando o espectador perceciona aquilo que vê como se tratasse da sua própria experiência.
Para Tarkovsky a figura cinematográfica caracteriza-se pela sua integridade e indivisibilidade. Segundo ele, a figura só pode ser concebida enquanto um todo. No seu texto sobre a figura cinematográfica, o realizador ilustra esta ideia com Ginevra de Benci, de Leonardo da Vinci, e que nos interessa por dois factores: a faculdade do artista examinar o interior do objeto mantendo-se de fora e a particularidade desta figura ser apreendida na sua dualidade antagonista, uma vez que, segundo o realizador, ela nos atrai e repele ao mesmo tempo. Para ele, a figura cinematográfica deve ter esse poder, de nos deixar nessa imprecisão. Para ele, a verdadeira arte é aquela que suscita naquele a contempla sentimentos contraditórios.
A força do impacto inicial que exerce sobre nós a imagem dessa Ginevra reside precisamente na impossibilidade de preferir uma impressão instantânea a uma outra, quer dizer, a impossibilidade de conseguir um equilíbrio em relação à figura que estamos a contemplar. Tal como haiku, abre-se a possibilidade de uma relação com o infinito.
Posto isto: para Tarkovsky a realidade no cinema existe através da perceção das sensações imediatas (que o espectador assimila como se tratasse da sua própria experiências) e da perceção da duração do plano, do fluxo temporal.
Em que é que isto se traduz? Segundo o realizador, a perceção do tempo no plano passa pela sensação de que aquilo que vemos no interior do plano não é meramente visual, e que a presença da verdade no plano é qualquer coisa que permite que saiamos dele de encontro à vida. Há entre o plano e a vida esta relação, que acabamos de ver materializada no excerto. E a vida irrompe no interior do plano através da presença do fogo, da forma como o fumo se propaga…, mas ao mesmo tempo o espectador como que abandona o plano em direção a ela (vida) ao encarar aquilo que viu quase como a sua experiência pessoal.
O cinema é a única experiência em que o tempo é dado como percepção
Jean-Louis Schefer
Para tentar perceber de que forma é vivido o tempo no cinema, poderíamos invocar o caso da literatura, que estabelece com ele uma relação bastante diferente, como veremos, mas que pode ainda assim ser um bom ponto de partida: na literatura, como o tempo é dado muitas vezes por meio da afirmação: dizem-nos que algo aconteceu no dia anterior, "há dois anos", que "demorou uma tarde" a suceder, e a simples constatação disso mesmo basta para que aceitemos a autenticidade desses acontecimentos (da sua duração, ou do tempo que separa a narração do momento que ela se propõe narrar).
No cinema, a questão é diferente. Basta lembrarmo-nos do caso de The Red Shoes, de Michael Powell, que nos apresenta, perto do seu início, uma elipse que consiste em colocar uma legenda, sem que na imagem haja qualquer corte, indicando que de um momento para o outro passaram quarenta e cinco minutos: como os rostos e as posições corporais das personagens se mantêm, e nada no décor em que estão inseridas sofre qualquer tipo de alteração, é-nos difícil aceitar que, na realidade do filme, se passaram de facto os quarenta e cinco minutos de que fala a legenda. Podemos, portanto, dizer que no cinema se verifica esta insuficiência da afirmação, e toda a relação com o tempo tem de ser, como tal, repensada, pois o que importa não é tanto a constatação de que algo aconteceu, e de que demorou x ou y horas, mas fazer com que o espectador sinta que um dado acontecimento teve essa duração: como é que, no cinema, sugerimos as palavras "amanhã", "ontem", "há umas horas"?
Deleuze, no seu "Imagem-Tempo", constrói uma comparação entre aquilo que ele considera ser a imagem-movimento e a imagem-tempo direta, baseando-se na forma como é sentida a passagem do tempo nestes dois momentos do cinema: a imagem movimento associada ao cinema clássico, e a imagem-tempo direta associada ao cinema moderno, e que teve em Resnais, Visconti ou Tarkovsky alguns dos seus primeiros exemplos. Ora, diz-nos ele que a imagem-movimento só pode dar do tempo uma representação indireta, inferindo-o o espectador do espaço, tornando-o decorrente da ação e fazendo-o depender do movimento, ao passo que a imagem-tempo direta, por outro lado, subverte esta relação entre o tempo e o movimento: o tempo não depende já do movimento, mas o contrário - e em vez de termos uma representação indireta do tempo dada pelo movimento, temos uma anulação da relação de submissão do tempo ao movimento que liberta o tempo de qualquer encadeamento e o apresenta como anterior a qualquer ação: o cinema rompe então com as amarras da representação indireta do tempo quando concretiza esta ideia de que o tempo, além de independente do movimento, o precede necessariamente.
Esta ideia de anterioridade, de precedência do tempo relativamente ao movimento é trabalhada por Deleuze na desconstrução da evidência de que tudo no cinema é presente, "necessariamente presente". Lembra-nos ele de que não há presente sem influência do passado nem ânsia de um futuro, e que, como tal, cada presente coexiste então com um passado a que sucedeu e um futuro que forçosamente antecipa: cabe ao cinema apreender esse passado e esse futuro que se entreveem, que coexistem, na imagem presente, passar ao interior do filme o que está antes e depois dele para sair dessa cadeia de presentes que, segundo Godard, só existe nos maus filmes. No caso da cena d'O Sacrifício, de Tarkovsky, perto do final do filme, em que o protagonista se prepara para pegar fogo à casa, podemos verificar a presença de um passado (o momento em que vemos as cadeiras e o lençol) de convivência com esses objetos, de um futuro (a terceira guerra mundial, que, para ser evitada, reclama o sacrifício da casa da personagem principal; ou um futuro, mais imediato, que será o do incêndio que consumirá a casa, e que se adivinha no momento em que o lençol começa a arder) e de um presente (o momento em que ele se aproxima do lençol com a caixa de fósforos).
Assim, a imagem-tempo direto põe em prática a ideia, exposta pelos apologistas do cinema direto, de incluir, de apresentar o antes e o depois na imagem cinematográfica, no plano. Os travellings presentes na citada cena d'O Sacrifício, ou os travellings de Resnais em O Último Ano em Marienbad traduzem não um movimento físico da câmara no espaço, mas uma deslocação no tempo: em Marienbad estamos constantemente no passado, enquanto percorremos os corredores atapetados do palácio; no filme de Tarkovsky, como referimos, são indissociáveis as ideias de passado, presente e futuro, e a sua coexistência no plano. Tudo isto lembra a noção proustiana segundo a qual o espaço que as pessoas - e as coisas - ocupam no tempo é incrivelmente maior, mais importante, do que aquele que efetivamente ocupam no espaço. Em Proust viu a a literatura o primeiro gesto, a primeira tentativa, de se fixar o tempo no papel; no cinema esse gesto teve o seu análogo em Tarkovsky, para quem captar a verdade de uma personagem, de uma paisagem, era traduzi-las naquilo através do qual o cinema toca de mais perto a realidade: o registo do tempo. A busca cinematográfica, para o realizador russo, é assim uma busca por essas naturezas-mortas em movimento (expresssão de Michel Chion no texto, "A Casa Onde Chove"), tal como o protagonista de Em Busca do Tempo Perdido de Proust caminhava entre as suas memórias, busca em que o passado e o futuro estão presentes no plano, e materializam a transição, em Tarkovsky, entre a imagem-movimento e a imagem-tempo direta. "O tempo num plano deve escoar-se independentemente e, se se pode dizer, da sua própria vontade", dizia o realizador, e Deleuze esclarecia que era só "nesta condição que o plano ultrapassa a imagem-movimento, e a montagem, e a representação indireta do tempo, para comunicar ambos numa imagem-tempo direta, um determinando a forma ou antes a força do tempo na imagem, o outro as relações de tempo ou de força na sucessão das imagens (Deleuze: "A Imagem-Tempo").
Toda a arte precisa de montagem, pois toda ela necessita de um elemento estrutural e de ligação das diferentes partes num só. Porém, para Andrei Tarkovsky a especificidade constituinte da figura cinematográfica está no interior do plano e não na montagem como é comum se afirmar. Essa especificidade cria-se na rodagem apenas, não se constrói na montagem. O papel desta no cinema é de outra ordem: unir planos repletos de tempo.
Portanto, Tarkovsky liberta a montagem de um conjunto de funções que o chamado “cinema de montagem” lhe propôs, encarando esta como Mostragem, segundo o conceito de Robert Lapoujade.
Tarkovsky opõe-se ao “cinema de montagem” no sentido em que defende que a figura está precisamente na ausência de linguagem ou de símbolos, codificações essas que esse “cinema de montagem” impõe. Tarkovsky afirma que o talento de um realizador pode ser avaliado num só plano, na maneira em que ele cria o fluxo temporal dentro desse mesmo plano.
A montagem, portanto, é a variante ideal da colagem dos planos. De entre as infinitas possibilidades de estruturação do filme, é a que melhor conecta o fluxo temporal existente em cada plano. Assim o trabalho da montagem é de encontrar essa variante, como se o filme já estivesse montado e fosse o nosso trabalho descobrir essa variante ideal, como se o material falasse e dissesse como deve ser organizado.
Tarkovsky ilustra esta noção com o processo de montagem de O Espelho, onde havia várias possibilidades de montagem final e não se conseguia encontrar a ideal, como se o filme num todo não funcionasse, as cenas não se relacionavam. Gradualmente encontraram essa forma, o material ganhou vida e o filme nasceu. Para tal é preciso sentir o material de encontrar a melhor forma que as imagens se relacionam.
Este caso exemplifica a ideia de montagem como reveladora do sentido implícito do plano, sentido esse que vem da rodagem. O Espelho tem 200 planos, um filme da mesma duração teria normalmente 500. Portanto não é a dimensão dos planos que determina a duração mas sim o grau de tensão temporal que segue o seu curso em cada um.
Assim, a colagem não determina o ritmo, é no melhor dos casos um índice de estilo, se o realizador souber em cada plano criar um fluxo temporal correto. É o tempo do plano que determina a montagem, é o seu fluxo temporal que dita se pode ser conectado com o seguinte. Tarkovsky afirma mesmo que o tempo real não se encaixa com o tempo convencional da mesma forma que não se pode encaixar tubos de canalização com diâmetros diferentes devido à pressão de tempo em cada plano. Ou seja, a montagem é um meio de juntar planos tendo em conta a pressão de tempo de cada um. Isso determina o ritmo do filme.
A perceção do tempo dentro do plano torna o filme algo mais, para além das intenções do autor, vive a sua própria vida. Muta-se e transforma-se na sua relação com o espectador.
Por esta razão Tarkovsky opõe-se ao “cinema de montagem” que dá ao espectador adivinhas e símbolos para decifrar e impõe sobre este a sua atitude perante os acontecimentos. Aqui já não existe essa relação anteriormente descrita de mutação no contacto entre o filme e o espectador e o ritmo é uma mera sequência métrica de pedaços.
Por exemplo, na sequência de Logo Tcgoudskoie em Alexandre Nevski, Eisenstein procura transmitir o dinamismo interior do combate graças à sucessão de planos curtos (por vezes excessivamente curtos). No entanto isto cria uma sensação de artificialismo por que os planos estão desprovidos de autenticidade temporal: são estáticos e anémicos. É evidente uma contradição entre o interior do plano que não estava pensado temporalmente com as colagens mecânicas que não tiveram em conta esses planos.
Portanto, não havendo um cuidado de criação de fluxo temporal no plano, não são mecanismos de montagem que irão dar à sequência um fluir do tempo correto.
Esta procura do fluir do tempo é criada de forma orgânica e correspondente à sensação de vida do realizador. O ritmo do plano é como a palavra adequada na literatura, essa palavra obstrui o ritmo do texto da mesma forma que a má relação entre os planos.
Pressupondo que um realizador domina estas noções, ele poderá ou não criar um contacto com o espectador, daí a noção de “o meu público” para cada realizador. Ou seja, um autor tem de encontrar uma forma de montagem que é sua e única o que torna o contacto com o público específico. Se a montagem é preparada para um desenho rítmico específico, pode-se colar pedaços desiguais do ponto de vista temporal (o que conduziria supostamente a uma perda de ritmo). Ou seja, Tarkovsky diz que imaginando a tensão temporal de planos como um ribeiro, um rio ou uma queda de água, pode-se criar um desenho rítmico único que se transforma na perceção interna do autor.
Isto é provado pelo facto que autores como Bergman, Bresson ou Fellini criam desenhos rítmicos e estilos de montagem únicos, isto porque contradizem a regra do fluxo temporal, sem ao mesmo tempo ser “cinema de montagem”.
Aqui a montagem é então o poder de criar um desenho rítmico único, que se tornará uma forma de manifestação na perceção do tempo do autor, a essência da figura cinematográfica consiste nisso mesmo, em passar por uma observação a perceção da realidade do autor.
Entende-se esta noção de Tarkovsky da montagem não como uma perícia a dominar mas como uma forma de expressão pessoal. Para ele é saber o que se quer dizer através da poética do cinema, pois tudo o resto pode-se aprender, exceto refletir. Daí a impossibilidade de se aprender a ser artista ou de se assimilar regras de montagem: cada cineasta descobre-as por si com novas.
Por isso esta corrente de pensamento enquadra-se no equivalente do modernismo no cinema.
Já Fernando Pessoa, em O livro do Desassossego diz que "A ruína dos ideais clássicos fez de todos artistas possíveis, e portanto maus artistas. Quando o critério da arte era a construção sólida, a observância cuidada de regras, poucos podiam tentar ser artistas, e grande parte desses são muito bons. Mas quando a arte passou a ser tida como expressão de sentimentos, cada qual podia ser artista, porque todos têm sentimentos". Este defendia que se entendermos a arte como um conjunto de regras a aprender podemos efetivamente chamar o grupo de indivíduos que as dominam de artistas, mas quando se passou a definir arte como expressão de sentimentos (o modernismo do início do séc. XX) então ninguém pode ser destacado como artista. Encontramos esta noção em Tarkovsky, sendo que ele não defende esta arte como um conjunto de regras de montagem, movendo o eixo para a expressão pessoal, e para toda a ambiguidade de definição de artista que demarca o modernismo, ele corrobora esta impossibilidade de Pessoa e constituiu um marco desta corrente artística no cinema.
Este eixo de expressão pessoal na montagem decorre de uma noção de fluxo temporal que o plano precisa. Esta correlação nos planos que constrói a autenticidade da obra.
Tarkovsky, tal como Proust, tentou eternizar o “tempo perdido”.
É esta eternização do tempo perdido a que Tarkovsky chamou de figura cinematográfica. A figura cinematográfica de Tarkovsky só existe no tempo. O seu elemento dominante é o “ritmo que o passar do tempo exprime no interior do plano”, ritmo com várias velocidades, a agitação microtemporal duma chuva com deslocações vastas e lentas expressas através da câmara.
Para Tarkovsky, contrariamente a Eisenstein onde tempo passa graças à montagem de cada plano separadamente, no qual o conteúdo interior dos planos não regista qualquer processo temporal, apresenta apenas colagens puramente mecânicas; o tempo passa no filme não graças às colagens, mas apesar delas, a montagem serve apenas para organizar a estrutura do filme, é apenas “uma forma de juntar os pedaços tendo em consideração a pressão do tempo que está presente em cada um deles”, o que o leva a definir esta figura cinematográfica como “escultura que usa o tempo como material”.
Assim, a “figura cinematográfica” não é assimilável a qualquer elemento de natureza técnica, plano, montagem, imagem – “um verdadeiro filme, com o tempo corretamente fixado na película, sai dos limites do plano e vive no tempo como o tempo vive em si, o artista vive a verdade através da figura da realidade.”
A dominante soberana da figura cinematográfica é o ritmo que exprime a passagem do tempo no interior do plano, assim sendo, quando Tarkovsky recorre à utilização de slow motion, quando em O Espelho acompanha aquele menino de costas que corre por entre os lençóis estendidos, a noção de tempo é elevada de forma a envolver o espectador na cena.
Sentimos que aquele momento foi congelado (eternizado). Ao filmar a cena em câmara lenta não se quer necessariamente sublinhar um determinado pensamento. Quer-se apenas exprimir o estado de alma (mood) daquela sequência sem recorrer ao acting dos atores, isto se a cena tiver interação de personagens. Quando os aspectos técnicos não se sobrepõem à naturalidade do que é filmado, então pode dizer-se que o propósito da sequência foi conseguido e de que o tempo existe em si.
A câmara exageradamente lenta de Lars Von Trier, não a 90 frames por segundo mas a 1000 frames por segundo, tenta aproximar-se de Tarkovsky, na medida em que também ele pretende expressar emoções que não são exteriorizáveis através do diálogo ou de determinados movimentos de câmara. Há diversos exemplos onde Trier cita Tarkovsky, por exemplo em Melancolia e Anticristo onde encontramos objectos a cair em slow-motion, objectos estes que vimos anteriormente em O Espelho, ou a casa a arder no campo que é interpretado como o fim do mundo em O Sacrifício e que pode ser comparado ao fim do mundo apresentado em Melancolia com os seus movimentos de planetas em câmara lenta ao som de música clássica – sequência esta também análoga à de Solaris de Tarkovsky.
Estas sequências fílmicas, tanto em Tarkovsky como em Trier, podem aproximar-se da pintura e cada plano pode funcionar como contemplação de um tempo distinto. Por exemplo, em Tarkovsky, a encenação em profundidade (cenários em profundidade destacados na composição da imagem por linhas de fuga acentuadas, deslocações das personagens no eixo da profundidade, comparações entre o primeiro plano e o plano de fundo) é uma constante, do primeiro ao seu último filme. Relembremos em Stalker, o plano dos três homens vistos de costas que caminham indefinidamente com um ponto de fuga algures no horizonte. Embora os temas sejam de outros contextos impossível não pensarmos em Turner com o seu sempre presente “ponto de fuga” em cada quadro, e viajando para o final do século XIX, com Casper Friedrich e os seus Stages of Life in The Passages of Time.
Em Trier, mais recentemente em Melancolia, cada plano dos dez minutos iniciais, atira-nos para quadros do Hiperrealismo ou mesmo de alguns Surrealistas, por exemplo, as Gares de Delvaux. Aqui há a presença de uma atmosfera mais fria, de um mood gelado, que suspende o tempo.
Trier provavelmente encontrou o tempo mas sabemos que Tarkovsky tem razão na sua busca infindável. Não será por acaso que ele escolhe como título de um dos seus livros, Esculpir o Tempo.
Trabalho de recensão escrita sobre os textos "De la figure cinematographique", de Andrei Tarkovsky (disponível aqui), e "Sur l'esthetique de Tarkovsky", de Michel Chion (disponível aqui), realizado por Flávio Gonçalves, Isabel Pestana, Rúben Gonçalves e Rui Esperança no âmbito da unidade curricular Estética no Cinema II, lecionada por José Bogalheiro, da Escola Superior de Teatro e Cinema.
Flávio, para quando um texto sobre o Béla Tarr e o seu último filme "O Cavalo de Turim"? :)
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