Deu início na passada sexta-feira (dia 26 de outubro), com O Rio Sagrado (1951) de Jean Renoir, o ciclo de cinema Ao Encontro De..., na Escola Superior de Teatro e Cinema (Lisboa) organizado pelo Rúben Gonçalves e por mim. Um espaço público de descoberta e reflexão de filmes estrangeiros e portugueses que tem expressão neste canal de Youtube (onde serão publicadas as filmagens das apresentações e discussão dos filmes) e neste blogue (onde estarão os nossos comentários e vídeos, bem como os dos espectadores). A propósito de O Rio Sagrado escrevi este texto que foi divulgado nas folhas de sala entregues aos espectadores:
Descobri
O Rio Sagrado numa aula de Teoria da
Montagem – descobria então aquele que é um milagre de filme; “milagre” no
princípio, que nos dá as boas-vindas a um território (a Índia) onde me parece
que a vida é celebrada como uma passagem para outro início (outra Índia);
“milagre” no fim, que reforça a ideia de eterno retorno com um nascimento.
Lembro-me (porque escrevi no caderno de notas) que tive medo de intervir na
aula, sob a pena de destruir algo, potencialmente bigger than life, que estava diante de mim. No momento em que
escrevo estas palavras continuo com esse medo e, também, ainda assombrado.
João
Bénard da Costa, no seu texto sobre O Rio
Sagrado, redisse que era “o mais belo filme do mundo” – convicção que
acompanhou com um ligeiro espanto: se é o mais belo por que razão não o vemos
citado como um dos mais importantes Renoirs? Se não fôssemos descrentes na
arbitrariedade da enciclopédia 1001
Filmes para ver antes de Morrer morreríamos descansados por não termos
visto O Rio Sagrado (que não consta
na lista). Um filme que, afinal, não teme a morte – e é obrigatório, dizemos
nós, para se ver vivo!
Quando,
em 2012, (re)vemos este filme as suas imagens parecem-nos levar a um referente
desconhecido, como se a memória recordasse bem as personagens e o discurso
patentes no filme do Renoir. Por fim descobrimos o raccord: afinal foi Terrence Malick quem, no ano passado, nos fez
descobrir um novo mundo chamado A Árvore
da Vida. Lá encontrámos a figura da mãe, omnipresente, as dores do
crescimento, essenciais em ambos os filmes, a angústia sobre o mistério da
morte, também ela central, e o modo de conduzir a nossa espiritualidade. As
fundações dos grandes temas que Malick trata na sua destemida odisseia tinham
já sido tocadas havia então 60 anos.
O Rio Sagrado,
que nos sugere também a imagem de uma grande árvore (“a árvore da vida” que,
quando surge de vez a vez, domina a força de todo o enquadramento e nos obriga
a pensar na questão da fusão de tempos – passado, presente e futuro), segue
estas questões com agilidade (e notável serenidade).
Renoir
concentra, contudo, a voz interior do filme numa – na protagonista, a Harriet
do futuro, que conduz, sempre em off e
até ao fim, o fio da narrativa num discurso que percorre, primeiro, um lado
eminentemente realista e documental – ligados aos rituais religiosos e ao
quotidiano da Índia, ignorando os estereótipos dos “elefantes, lanceiros e
tigres”, como o próprio Renoir refere na sua apresentação do filme, e filmando
(através da bela fotografia do sobrinho do cineasta) a vida que há no Oriente e
que é percepcionada pelos olhos de um “viajante” do Ocidente. Depois, a voz de
Harriet toca também a poesia (os versos simples que tão sincera e ingenuamente
dedica ao Capitão John por quem está apaixonada) e, também, a fábula (a
história dentro da história que nos faz aceder à cerimónia nupcial: mágica e
primitiva, já que nos leva à origem da tradição).
O rio tem uma
poderosa força simbólica (Bénard da Costa referia a sua feminilidade para descobrir
como este era porventura o filme mais “feminino” de Renoir) mas parece-nos que
é de igual modo uma imagem altamente sugestiva pelo seu lado unificador. Como a
vida, o rio também existe através das suas atribulações ou, dito
de outra forma, através das suas ondas – o equilíbrio daquela família inglesa
faz-se não pela total estabilidade mas pelo crescimento, necessariamente
agitado, de cada personagem. É certo que Renoir se foca no desenvolvimento de
Harriet que, ao procurar dar sentido à crescente desordem do seu universo, se
depara com a realidade dos acontecimentos (será que em 2012 alguém, com a
informação instantânea da Internet, sente a violência destas descobertas?).
Ao mesmo tempo, parece-nos
que todas as personagens deste filme
vivem constantemente um dilema entre viver num ideal da felicidade e uma
realidade incerta que é, porventura, dolorosa – Valerie, a dado momento,
desabafa: “it was like something in a dream. Now you've made it real. I didn't want to be real”. Do mesmo modo, numa
das cenas mais fascinantes do filme, Harriet confronta-se inevitavelmente com
absurdo da realidade logo após a morte do irmão: afinal, o Bogey morreu e estou
diante de um prato de comida? Ao mesmo tempo e contrariamente, Mr. John faz uma
confissão radical mas absolutamente consciente: “we should celebrate that a child died a child. That one escaped. We lock them in our schools, we teach them our stupid taboos, we catch them in our wars, we massacre the innocents. The world is for children. The real world.”
Assim
o rio continua – como a vida. Num círculo sem “end”, mas “endless”. Depois
da morte, um nascimento; depois de uma desilusão, as cartas que são esquecidas
nas escadas... E tudo isto convive simultaneamente,
isto é, em fusão. Foi, talvez, a
lição mais preciosa que tirei da aula em que vi pela primeira vez O Rio: o filme, que integra (e não separa) corpo
e espírito, Ocidente e Oriente, vida e morte, prova-nos que o cinema, tal como
a nossa existência, pode ser, ao mesmo tempo, claro e indeciso. Obscuro e
luminoso.
É um dos mais admiráveis filmes do Renoir. Ainda me lembro do Bénard da Costa o ter apresentado com uma belíssima introdução há uns anos na RTP2.
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