Eis a síntese, dita, em impressionante comoção, por Carey Mulligan: “We're not bad people. We just come from a bad place.” Sim — não somos pessoas más, somos pessoas vindas de um lugar mau, este que habitamos e não podemos escapar — e por isso somos pessoas solitárias, também. Este aparente paradoxo (o facto de ser português… não me torna português) descortina esta característica que Michael Fassbender imprime na sua personagem: até um certo ponto estamos diante de uma personagem que é, no limite, um estrangeiro (do quotidiano, de um modo de viver regido pelas convenções…). E é porventura essa particularidade que torna especialmente desarmante a segunda longa-metragem do inglês Steve McQueen: Vergonha (ou Shame), que estreou oficialmente na 68.ª edição do Festival de Veneza e foi lançado ontem entre nós.
Filme sobre solidão, portanto impulsionado por corpos desamparados e anónimos. A evidência do desejo de os corpos se encontrarem faz-se num momento decisivo, expandido para tempo real, da performance da supracitada Carey Mulligan, que reconfigura Liza Minelli, humanizando-a ao cantar New York, New York (tema original do trabalho homónimo de Martin Scorsese em 1977). É precisamente a grave melancolia da interpretação que nos coloca lá, naquele momento: Nova Iorque, cidade-rainha da solidão coletiva, aquela que esmaga o indivíduo com a multidão. Sobreviver a essa aniquilação significa, fundamentalmente, termos que nos relacionar com o outro (com tudo o que isso implica).
A questão não podia ser mais contemporânea. Face à correria do tempo da globalização e da busca do sucesso (melhor dizendo: do conforto) não há tempo para a lentidão (que é o que nos falta), mas para o fugidio e para o vislumbre de algo que não podemos agarrar na totalidade. Assim surge o sexo, ação central em Vergonha (aliás, a origem do termo é curiosa: McQueen afirmou que a palavra era a mais utilizada pelos ninfomaníacos entrevistados na investigação de material para o argumento, co-escrito com Abi Morgan — que, por sua vez, mostrou falta de destreza com o guião de A Dama de Ferro). Aqui, o sexo é um perturbante meio de tentativa de esquecimento e fuga a qualquer coisa. E qual essa coisa da qual tenta ininterruptamente escapar Brandon (Fassbender)?
Confesso que me recuso a aceitar a ninfomania como justificação e fim em si mesmos — não. A necessidade, visceralmente sincera, do relacionamento estritamente físico tenta responder a algo de mais profundo que é muito simplesmente: como viver escapando à vida? Ou, por outras palavras, a forma de fugir, por momentos, do quotidiano que se leva e que se entende como estupidamente absurdo é uma: regressar àquilo que conservamos de animal (de Neandertal, como Brandon diz, a brincar com a sua rara distintiva) e viver segundo esse impulso de satisfação biológica.
Assim, o sexo (como necessidade básica) é satisfeito à margem de qualquer desejo de relação de intimidade. Naquele que é talvez o plano mais extraordinário do filme (o plano da conversa antes de Brandon e a sua colega de trabalho Marianne, interpretada por Nicole Beharie, começarem a jantar no restaurante onde se encontram), o debate impõe-se com fascinante fluidez: serão os relacionamentos amorosos indicativos de que acreditamos na coexistência entre os seres humanos (posição de Marianne) ou um simples artifício que está prestes a ser exposto em toda a sua incoerência (posição de Brandon)? A questão significa algo de muito importante para os dois — porque o amor é um dos fatores que constituem a normalidade de se ser humano e, perante essa evidência cultural, nenhum dos dois quer ser excluído da soma de que são feitos as relações de intimidade (ama-se e é-se amado).
É também esse plano do jantar que põe em evidência uma série de dispositivos formais de que se serve o realizador Steve McQueen (que é originário, como se sabe, das artes plásticas). Falo por exemplo da equilibrada alternância entre os planos abertos e geralmente fixos com os planos muito aproximados e em movimento. E falo por exemplo do plano-sequência. No do jantar, a duração real da cena resultará em dois efeitos muito curiosos. O primeiro: na desconstrução das personagens a partir dos seus diálogos e atitudes: Brandon e Marianne são ao princípio movidos por códigos muito estritos que depois descarrilam (sem perderem o controlo) para as suas convicções pessoais. O segundo: na recolocação das personagens num espaço que não nos parece natural: o facto da personagem-parasita do empregado de mesa interromper a discussão de Brandon e Marianne com questões triviais e patéticas (“já decidiram o que vão beber?”, etc.) relembra-nos o que inevitavelmente os rodeia (o “bad place” que é a sociedade). Enfim, a utilização do plano-sequência com conversas (que se repete momentos depois, com um longo travelling até o metro subterrâneo) não é novo para McQueen. Já o tínhamos visto no precedente Fome (Hunger), a Câmara de Ouro de 2008, que é também outra tour-de-force de Michael Fassbender — nesse plano, um magríssimo Fassbender (que encarnava Bobby Sands) conversava com um padre sobre as suas radicais intensões.
E por falar em corpo. Tomado objeto de estudo, o corpo de Fassbender passa da postura autossacrificial à de procura da satisfação mais libidinosa — sem que isso implique a erotização do homem. É, aliás, a fotografia raramente quente e frequentemente “metálica” (nunca um metro foi assim filmado) do filme (responsabilidade de Sean Bobbitt) que intensifica, por um lado, a negação do erotismo e, por outro, a autenticidade daqueles corpos, que se tornam verdadeiramente mais humanos. Vide o exemplo da transformação de Carey Mulligan: a primeira sequência em que Sissy nos é apresentada é apanhada de surpresa a tomar banho (numa atitude desprovida de qualquer tipo de sedução e de à-vontade frente ao seu irmão) e numa das últimas encontra-se literalmente marcada pela sua tentativa de suicídio).
Como se saídos do pensamento de Camus (face ao absurdo da vida, Brandon personifica a ideia de homem revoltado, enquanto Sissy a de contínua desistente), os irmãos de Steve McQueen unem-se por uma atração que vai muito para além do sexo. A sedução pelo abismo é, portanto, aquilo que transfigura o núcleo duro de Vergonha e a partir de dois planos muito simples mas que ficarão cravados na minha memória para sempre: primeiro: os pés de Sissy no limiar da plataforma do metro, como se quisessem cair nos carris, segundo: o riso enlouquecido de Brandon quando provoca o namorado de uma rapariga que tinha acabado de seduzir. Há qualquer coisa de verdadeiramente sobre-humano nestas atitudes e que desafiam a nossa compreensão daquilo que somos e que significamos. Sem dar respostas, Vergonha (que foi considerado por alguma crítica uma obra de excessivo moralismo) apenas… olha. E Fassbender olha para nós, a dado momento, no limiar do prazer e do desespero — não à procura de uma remissão (não há nada a expiar), mas de compreensão. Porque, no limite, partilhamos todos a mesma matéria.
Gostei muito do texto; já vi Shame descrito como um Taxi Driver para o séc. XXI, o que me parece interessante.
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Obrigado. É uma comparação sem dúvida curiosa, mas com fundamento.
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