segunda-feira, fevereiro 01, 2010

Anticristo

Se poderíamos, tal como foi já referido, considerar a expectativa como palavra de ordem relativamente a “Anticristo”, não tão facilmente poderemos classificar esta película, que percorreu nações rodeada de grande polémica, imediatamente após a visualização. É, muito provavelmente e ainda que de forma previsível, o principal e consensual efeito que o filme provoca — a sua capacidade transtornadora de nos abalar, confundir e de testar, até onde seria impensável, a nossa sensibilidade e julgamento. Surgindo numa maré de fitas niilistas, que deleitam o mais sádico (e comum?) espectador e que valorizam a gratuidade fácil do masoquismo e da morte, esta particular película (ou, melhor dizendo, o seu impacto) apresenta-se-nos como um anticristo socialmente avassalador e imoral, que alcança o que, desde o início, se propôs a alcançar: o choque, o espanto, o nojo. O provocador resultado não seria, pois, este, caso não existisse precedentemente um minucioso estudo, por parte do cineasta, da actual evolução da humanidade, tal como os códigos normativos que a têm regido durante gerações. Lars Von Trier é um cineasta frustrado que usa a sua obra para cuspir no actor social que é o espectador e perguntar-lhe, vezes sem conta, “porquê?”, denunciando-lhe a pequenez e estupidez que, aparentemente, lhe são característicos. O filme não é, desta forma, apenas anticristo. É misógino, anómico, contra-cultura, anti-tudo. Porém, cometeríamos, na pior das hipóteses, uma grave injustiça se o considerássemos desumano pois, neste caso, encontramo-nos perante um ensaio daquilo que o homem mais tenta recalcar e esquecer: o medo e a sua “pior” (quem decide?) personalidade.

Conjecturados os propósitos a que se propôs atingir o dinamarquês, a prática estende-se ao retrato de duas naturezas: por um lado, temos a normativamente designada pelo N maiúsculo, representada pelo bosque e pelos outros animais que lá habitam e representando o que há de mais recôndito e negro no mundo; por outro, temos, também, a natureza psicológica dos nossos dois protagonistas, um casal que lida, da mais atípica forma, com o luto de um ser humano no seu estado puro. Se, com a ninfomaníaca mulher (inesquecivelmente interpretada por Charlotte Gainsbourg, naquele que acaba por ser o papel da sua carreira), acompanhamos o enlouquecimento consequente de uma culpa e de uma depressão não verbalizados na totalidade, que se associará a uma espiritual, amedrontada e diabólica fusão com a floresta (a “igreja de Satanás”, diz ela), então com o marido psiquiatra vemos um evidente oposto ao simbolizar o racionalismo e a lucidez por vezes exagerada pelos demagogismos psicanalíticos que a sociedade foi formando na tentativa de esconder os seus maiores receios. O choque entre os dois, protagonizado por longas e obscenas sessões de sexo (o atenuar de uma dor maior), não poderia acabar da forma mais horripilante. Repleto de simbolismos históricos e religiosos dignos de investigação e reflexão, a dor, o desespero e o luto apresentam-se como os temas centrais de uma obra tão realista quanto onírica e espiritual (a cena final não o poderia ser mais), obrigando-nos, finalmente, a questionar a tese ontológica fundamental da fita: são os nossos pensamentos que distorcem a realidade ou o contrário?

Aliado a uma narrativa construída de forma magnificente, encontramos, visivelmente, uma técnica que não é, de todo, repreensível. Abandonado, quase por completo, o estilo formal que compunha as obras anteriores, a fotografia é, sem admissão para incertezas, dos pontos maiores do filme, tal como os efeitos especiais (quando absolutamente necessários) e o som (quase diria que a reproduzir as atmosferas perturbadoras a que Lynch nos habituou). Exemplo mais edificativo do que acabo de falar não terei senão com o prólogo que abre o filme, com a belíssima voz de Tuva Semmingsen, mostrando a harmonia perfeita de um cineasta (des)encantado com um mundo altamente cruel. Dedicando-o a Tarkovsky, Von Trier deixa sobrevoar uma sensação de harmonia, de sublime e de luz que poucos outros conseguiram transmitir e seduzir, através do contrastante retrato de uma humanidade perdida num paraíso incerto e inundado nas trevas.

9/10

15 comentários:

  1. Excelente crítica! Mesmo que lhe atribuísses classificação de 1 estrela, ficaria feliz porque o filme havia cumprido o seu objectivo: dividir as pessoas ora pelo fascínio ora pelo nojo.

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  2. O meu primeiro comentário aqui no 'Sétimo Continente'. :)

    Antes deixa-me felicitar-te pelo bonito blogue que aqui tens e dizer que os conteúdos estão cada vez melhores. Parabéns! :)

    Em relação ao 'Anticristo', infelizmente ainda não posso ler a tua crítica. Vi apenas a nota. Fui vê-lo à antestreia mas devido a imensos problemas na exibição tive que ir embora. Resta saber quando o vou ver agora. Espero que em breve.

    Abraço.

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  3. Anticristo gosta-se ou não se gosta.
    Divide opiniões e a crítica, fico contente por teres gostado; Partilhamos da mesma opinião...

    Não é um filme fácil de se digerir e muito menos um feel good movie, aqui Trier tenta mostrar algo do mais humano possível!

    Abraço
    http://nekascw.blogspot.com/

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  4. vamos ver se vejo este amanhã, aguçastes-me o apetite!

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  5. Poxa, adorei o seu blog cara. Quer fazer uma parceria? meu blog é sobre cinema, dá uma olhada depois:

    http://cineclube01.blogspot.com/

    Se topar manda um comentário dizendo que aceita a proposta. Abrs!

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  6. Tiago, obrigado! O que dizes é, perfeitamente, verdade. Von Trier é arrojado e extremo e ou nos identificamos com os seus filmes ou os repugnamos por completo.

    Fernando, bem-vindo a'O Sétimo Continente! Muito obrigado e fico muito contente por teres gostado do nosso espaço. Pois, já soube que essa exibição da antestreia não correu lá muito bem, Costas o disse. Quando vires o Anticristo, não deixes de cá vir ler e ver se, efectivamente, estamos de acordo. Quando - e se - teceres uma crítica, lerei com atenção ;)

    Nekas, este é TUDO menos um feel good movie! Von Trier mostra a desumanidade intrínseca na humanidade. Contradição terminológica apenas aparente, claro. ;)

    Victor, obrigado ;)

    Pedro, não te esqueças agora de dizeres o que, então, achaste, ok?

    CINECLUBE01, tudo bem. Passarei por lá. Obrigado.

    Abraços a todos!

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  7. Excelsa crítica, os meus sinceros parabéns. A tua capacidade de escrita é arrebatadora.

    Quanto ao filme, eu já o tenho para ver há muuuuito tempo.
    Porém, bastou aquela introdução para me "tirar o apetite". Vê-lo-ei, sem dúvida, mas estou mesmo muito apreensivo...

    Abraço ;)

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  8. Uff... não vou ter coragem para ir ver o filme ao cinema. Lars von Trier mexe muito comigo, com as minhas emoções. Prefiro esperar pelo DVD e vê-lo em casa, a sério.

    Pelo que conheço do realizador e pelo que leio - o filme tem inspirado magníficas críticas; disso, é a tua o perfeito exemplo - a obra vai virar-me o estômago do avesso. Pode ser que não. Mas fá-lo-á, muito provavelmente.

    E como prefiro cinema em casa, vou esperar, com uma expectativa esquisita.

    Cumps.
    Roberto Simões
    CINEROAD - A Estrada do Cinema

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  9. Jackie Brown, muito obrigado pelo elogio. Não sei se gostarás, sendo-te sincero. Não é de fácil agradabilidade e é um filme muito gráfico e perturbador. Dá-lhe, contudo, uma oportunidade e tenta interpretar a mensagem que transcende toda a violência e todo o nojo. Será uma reflexão que valerá bem a pena, acredita ;)

    Roberto, compreendo na perfeição as tuas palavras! Mas, atendendo aos teus gostos, sei que adorarás o filme, ainda para mais a vê-lo no conforto e quietude que só uma casa pode dar. Fico muito ansioso pela tua visualização :) Já agora, agradeço também as palavras simpáticas :)

    Abraços!

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  10. Oi, a parceria é de link, como vc tem ali no "Paragens Obrigatórias" no seu Blog. Coloquei o link do seu no meu, pode ver lá. Assim os leitores podem navegar pelos blogs parceiros! Faça o mesmo com o meu link.

    Abrs amigo!

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  11. CINECLUBE01, tudo bem. Farei o mesmo.

    Abraços!

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  12. Eu vi este filme e ainda estou chocado!

    Parabéns pela construção do texto!

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  13. Cristiano, esse é, de facto, o efeito principal, pelo menos inicial, do filme - o choque e a surpresa. Obrigado ;)

    Abraço

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  14. outro .

    (n estou claramente a ler nada, só a passear por aqui e a ver o que tens aconselhado. vou subscrever e passar a ler tudo o que se seguir. *)

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