O cineasta austríaco Michael Haneke é um prodígio mundial da sétima arte. Não havendo dúvidas para tal, ainda que a agradabilidade do seu cinema seja, obviamente, relativa, provam-no autenticadas e críveis cerimónias, festivais e críticos, que reconheceram a sua última obra(-prima) como um dos melhores filmes do ano. Não é só, na minha perspectiva, o melhor, como também consegue subir para onde se encontram os grandes filmes produzidos nos tempos passados.
Razões não faltam para comprovar a qualidade da Palma de Ouro de Haneke. Se o realizador ganha em termos de experiência de vida e história pessoal, após as suas formações em matérias de tentativa de compreensão da condição humana como é caso da Filosofia, este também se pode, e não haja quaisquer hesitações neste ponto, vangloriar-se de ter desenvolvido uma filmografia algo consistente, debruçada sobre o lado mais negro e recôndito do ser humano moderno, portanto, uma linha de obras inesquecíveis e dotadas de uma grande qualidade e poder. Há, contudo, algo que nelas se une: o fascínio pela perspectivação subjectiva da morte, seja ela vista como a salvação (“O Sétimo Continente”), como uma inevitabilidade (“O Laço Branco”), como tabu (“Caché: Nada a Esconder”) ou, simples e sordidamente, como uma «brincadeira perigosa» (“Funny Games / U.S.”; “A Pianista”; “Benny’s Video”). E, apesar da forma como é toda ela abordada, seja pela via do terror psicológico ou do simples mas cru ensaio dramático, o autor mantém continuamente um estilo, formal e de linha narrativa, que o pode definir como inédito e como um modelo, a seguir, claro está, para os interessados jovens realizadores que com ele se identifiquem na totalidade. Não se cedendo a imagens contemporâneas de uma violência que transcende o próprio equilíbrio e estabilidade humana, mas criticando-as ferozmente expondo-as em segundo plano (como em televisões, etc.), Haneke filma com uma simplicidade, elegância e pureza inigualáveis, valorizando tanto os parados enquadramentos como os clássicos de movimento. Dotado, também, e tal como se orgulha de admitir, de um distinto realismo Nas suas pacientes imagens, o seu lado interventivo é demonstrado na perfeição, ao colocar o espectador na história e ao obrigá-lo decifrar imagens (como os vídeos, os programas de televisão ou o último plano em “Caché”), símbolos (como a praia em “O Sétimo Continente”) e diálogos. Há toda uma sátira e crítica implícita bem representativos do austríaco, que não se cansa de o demonstrar ao longo da sua carreira, escondendo-se e não se escondendo, num inevitável paradoxo. É o espectador que terá que sair da passividade e anonimato da sua condição e interpretar cada filme com calma, enquadrando-o nos tempos vividos, e é, também, obrigação do realizador tornar tudo quanto possa inteligível para que a mensagem bem seja passada. “O Laço Branco” é, pois, o culminar de toda essa dinâmica e crítica reflexiva que, embora retrate uma realidade que se nos parece distante, se mantém corrente, pela actualidade dos temas e universalidade das questões lá colocadas.
Ora, nesta película caminhamos numa aldeia, alemã e protestante, como tantas outras europeias nas vésperas do início da primeira Grande Guerra, com gentes representadas pela humildade das condições com que sobrevivem e pelo espectro do catolicismo, que se assume como uma entidade inquestionável e por demais autoritária. E em redor desse autoritarismo seguimos a trama que envolvem os seus habitantes, desde do Barão, do pastor, do médico e do professor da aldeia (que se assume como o protagonista da nossa trama, narrando-o, como que por medo, numa imparcialidade temível) à parteira, ao gerente e aos camponeses. E, convém não esquecer, o grupo liderado pelas crianças e adolescentes que figuram uma oposição tão inocente como rebelde, marco pelo artificial laço branco. Os eventos trágicos a que se propõe o filme narrar e que coaduna todas as personagens enunciadas, não poderiam ser mais perturbadores, comprovando que os problemas banalizados na contemporânea comunicação arrastaram-se por tempos e tempos, demonstrando a gravidade destes. Falamos, nomeadamente, dos abusos sexuais a menores, ou, em menor grau, das infidelidades extra-maritais. A universidade dos temas é, obviamente, bem evidente: desde a morte, como já referi, como a vingança, a irreligiosidade das acções humanas que vêm a demonstrar, pela via da contradição de crenças e discursos, as constantes dissonâncias cognitivas das atitudes do homem, a culpa e, acima de tudo, como tema-síntese, a maldade humana. Assim é que Haneke examina e aponta o dedo a uma falseada ética que é por demais reprovável. Estão dispostos, pois, dos pólos tremendamente opostos: a criança, enchida de ingenuidade e engano como de pureza e questionamento; o adulto, contaminado, pecador, determinado a impingir no primeiro pólo as normalizações de uma sociedade decadente, prestes a entrar, anos depois, no nazismo, uma das mais horríveis políticas de sempre. E, perguntamo-nos nós, seria tão diferente assim a realidade de, por exemplo, Portugal, no início do passado século? Em que, após uma conjuntura sociopolítica favorável, uma primeira república distorcida de confusões cedeu a um estado autoritário, entrando na era do Estado Novo? A resposta, efectivamente negativa, é facilmente justificável se analisarmos o contexto de uma Europa enfraquecida após a Segunda Guerra Mundial.
A espectacularidade d’O Laço Branco não se rende só às linhas da narrativa e da realização. O filme é, na sua totalidade, um deleite visual a que escapa às grandes produções hollywoodescas, com possibilidades de encantarem as massas com inconjecturáveis e dispendiosos efeitos especiais (estou a lembrar-me, assim e agora de repente…, de um produto bem edificativo disso mesmo). Auxiliado a um propício guarda-roupa de época, em que as cores estão propositada e inteligentemente configuradas, a fotografia complementa tudo o que aqui já foi debitado. De um belíssimo preto e branco, limpo, e com uma luz divinal nalgumas sequências, elementos tais como a neve são expostos com uma clarividência que atinge, só pela contemplação directa e simples, o que há de verdadeiramente onírico e transcendente num mundo contaminado pelos pecadores.
Por fim, há que compreender os avisos constantes relativos a esta excelente película. Não é nada fácil digerir “O Laço Branco”. Pode, inclusive, como a mim deixou, provocar uma grande perturbação. Mas, ao mesmo tempo, e cedendo a uma irresistível tentação, é extremamente estimulante reflectir sobre ele. Haneke triunfa mais uma vez, com o seu melhor filme, um perfeito e negro ensaio sobre a condição humana, que peca apenas pela sua pouca duração.
10/10
É dos realizadores que conheço que tem uma das filmografias mais consistentes de sempre. A sua câmara é tão clínica e limpa, contrastando com os seus argumentos críticos e atordoantes. É um grande realizador! Este O Laço Branco é seguramente uma das suas melhores obras, talvez a melhor até, embora eu e por razões pessoais, me sinta mais ligado a A Pianista.
ResponderEliminarQuero ver esse filme! e espero ver esta sexta feira, acho muito interessante!!! Quando for ao cinema, ja comento novamente e faço alguma critica :)
ResponderEliminaro filme é uma totalidade de prespectivas e conceitos, a neutralidade da narrativa contrasta com o cinema a que me venho a habituar (um casal que acaba feliz no fim) ahah
ResponderEliminargostei muito do preto e do branco, a primeira vez que vejo um filme assim no cinema se não estou em erro, e olha, afinal não é o maior orçamento da história que faz o melhor filme do ano!
inspirou-me, quando tiver uma câmara na minha mão vou fazer ficção científica deste género, uma coisa assim muito blade runner, "um deleite" para todos os sentidos, inclusive o estremecer que o filme nos impingia com as pancadas secas e surdas
gostei muito da tua opinioum