A feature film is twenty-four lies per second — quem o disse foi Michael Haneke, numa saída anti-Godard (“la photographie c'est la vérité, et le cinema c'est vingt-quatre fois la vérité par seconde”), sobre o cinema em geral e, como consequência directa e assumida, sobre o seu próprio cinema. A sétima arte é a mentira menos escrupulosa de todas, (algo que bem é explorado com filmes como “Brincadeiras Perigosas”, dele, ou “Expiação”, de Joe Wright), por transmitir, intensamente, uma irrealidade intersubjectiva que não se preocupa em deter o espectador na sua ilusão tranquilizada. Perante a ficção, o fascínio e a fuga da banalidade e perante a procura do sadismo, da violência gratuita, do prazer mórbido e desumano da tortura, o cineasta “mente” tendo em mira o homem comum, feliz na sua ignorância e gosto perverso do horror. Será o facto de sermos espectadores de uma cena de violência e torturas físicas numa sala de cinema ou sentados confortavelmente no sofá a vê-la numa televisão quase tão condenável ao facto de sermos, por outro lado, agentes activos num acto de pura crueldade e impiedade? Para a isto responder, Haneke é concreto e objectivo, como, aliás, é toda a sua filmografia, crendo veemente e positivamente que sim, que inundado de material audiovisual cru e maldoso o homem contemporâneo se torna elemento de uma massa colectiva acrítica e imoral.
Para mostrar, contudo, a inexistência de rigidez deste comportamento desnaturado do ser humano e para, ao mesmo tempo, de alguma forma estranha e altruísta, desresponsabilizá-lo e mostrar que, feitas as contas, subsistem a bondade e (a apreensão da falta de) o bom senso, Haneke realiza “Benny’s Video”, criando um adolescente ocidental como tantos outros, com a particularidade de este ver continuada e primorosamente uma cassete de vídeo que mostra um vídeo, filmado por si, da matança de um porco. O seu quarto equipado de televisores, leitores de vídeo e câmaras de filmar torna-se o antro de um voyeurismo extremo — Benny filma-se recorrentemente e vê a sua imagem reflectida no ecrã preferindo a representação secundária à verdadeira (haverá uma?) —, um quarto que para o jovem passam histórias de sangue, acção e adrenalina alugadas no Blockbuster mais próximo, até o local se tornar palco de um homicídio, passando a realidade e a dureza da Morte a ecoar nas suas paredes e nas da mente dele. É Benny que, num puro acto de acometido experimentalismo e curiosidade clínica, assassina uma rapariga mais ou menos da sua idade, sentindo o culminar de todo o poder de uma arma, de um assassino, de uma vítima, da supressão vertiginosa da Vida. O assassínio que, claramente, não o seria não fosse a influência determinante e trágica dos filmes e programas televisivos tumultuosos (quantos casos mortais e trágicos, anualmente, não passamos a conhecer que advêm disto mesmo?), provocará um evidente arco de mudança na personalidade de Benny e nas suas atitudes. O tédio, tema central nos filmes de Haneke, é terminado, oficialmente: se n’O Sétimo Continente (crítica), a desencantada família se suicida por reconhecer a insignificância e o tédio da vida, em Benny’s Video, o seu valor e efemeridade, tal como o poder orgásmico de tirá-la a alguém, põem termo ao fastio de subsistir entre os muros urbanos. Benny (ou, diremos para nós, a adolescência) está traumatizado, não o sabe e nem as suas capacidades resilientes próprias do ser humano poderão ultrapassar o sucedido. A violência prazerosa usada para criticar toda a restante na sociedade será tão perturbante quanto um dos filmes preferidos de Haneke (“Salo ou os 120 de Sodoma”, de Pier Paolo Pasolini). Tudo isto, incluindo a forma de lidar dos pais do adolescente, transmite um inegável realismo (passe-se o paradoxo, conforme analisámos), que torna esta obra de arte fundamental e necessariamente importante.
O argumento (não tão contemplativo como o posterior e espontâneo “Elephant” (crítica), de Gus Van Sant, que se esforço para atingir a verdade, e que trata a influência de novos meios como o computador e os jogos violentos), é reflectido também no carácter formal da realização: os longos e parados planos remeter-nos-ão para o tal prazer sádico de espiar alguém de que falámos, algo que Haneke tão bem tratou com o seu “Caché - Nada a Esconder” (crítica). O austríaco vive, do princípio ao fim, fascinado pela vídeo-realidade, penumbra de toda a sua precedente carreira e que o preparou para um dos mais duros ensaios sobre a instrumentalização das atitudes, em todas as suas componentes, em função do televisor, agente socializador que se tem, verdadeira e preocupantemente, imposto no mundo moderno.
8/10
Deve ser interessante, se bem que o tema é depois tratado em FUNNY GAMES.
ResponderEliminarTalvez por isso não me seja tão apelativo.
Cumps.
Roberto Simões
CINEROAD - A Estrada do Cinema
A qualidade das tuas críticas deixa-me sempre surpreendentemente rendido. Muito bem escrita. O filme nunca o vi, mas a sua temática parece, de facto, agradar-me.
ResponderEliminarParabéns pela mudança. Pelos vistos, para melhor.
ResponderEliminarAprecio essencialmente o banner, já que o The Dreamers exerce um fascínio muito estranho sobre mim.
Outra coisa que te queria dizer - como as tuas críticas estão a mudar também! É uma diferença assombrosa entre a qualidade do que escreves agora e do que escrevias há uns meses.
Basicamente era só isto, já que do Haneke só vi o La Pianiste e o Caché.
:)
Roberto, confesso que gosto tanto de Benny's Video como de Funny Games, mas por razões diferentes. Há temas iguais que são tratados, mas este aqui explora a realidade da adolescência, que o torna, à sua forma, singular. É um filme, como disse, necessário. Por isso aconselho-te vivamente.
ResponderEliminarTiago, muito obrigado pelas tuas palavras! O filme vai agradar-te pela certa ;)
Back Room, bem-vindo a'O Sétimo Continente! Agradeço-te muito a gentileza das tuas palavras. O banner transmite a imagem desse filme, que me diz muito também. Não deixes de voltar ;)
Abraços!