quarta-feira, agosto 08, 2012

A Última Vez que vi Macau (1/6):
Uma outra forma de ver Macau


Desligam-se as luzes da sala de cinema e abre o filme. Entre as sombras, alguém caminha, como um fantasma, em passos sedutores e definitivos, em nossa direção. Irrompe a luz e a música do piano. É Cindy Scrash, à frente de tigres ameaçadores, que nos interpela olhando sem pudor e começa a cantar. O número musical, que nos remete à interpretação de Jane Russel no Macau (1952) de Josef von Sternberg, é decisivo. Já não nos encontramos na sala de cinema, mas num local longínquo, secreto e extraordinário: a Macau de João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata.

Foi isto que os espectadores, tornados exploradores, puderam ontem descobrir no Festival de Locarno, que decorre na Suíça até o próximo sábado, dia 11. É lá onde a dupla de realizadores está representada na competição: os dois a assinar A Última Vez que vi Macau (competição internacional de longas-metragens) e João Rui a apresentar o seu primeiro filme “a solo”, O Que Arde Cura, que integra em Locarno a secção Pardi di Domani (que se propõe a apresentar os cineastas do futuro).

Parece também ter vindo do futuro esta primeira longa-metragem realizada pelas mãos de João Pedro e João Rui. É um filme “de viagem”, quase de diário de bordo, pelas ruas de Macau por onde caminhou e cresceu João Rui, que acompanhou nos anos 70 o pai, oficial da Marinha que lá prestou serviço. Mas A Última Vez que vi Macau, que parece percorrer todo o espectro de géneros da ficção, assume-se como tudo. Menos um documentário.

Foi, quase ironicamente, como um documentário que o filme nasceu. A proposta que seguiu para o Instituto do Cinema e Audiovisual esteve enquadrada no concurso de subsídios para documentários, ancorada “nas histórias que o João Rui contava da sua infância passada no território”, diz-nos João Pedro. Tal como grande parte do público deste filme, a viagem a Macau foi inédita. E as suas impressões embatem com o mito em torno dela. O projeto de documentário não esquecia assim aquilo que João Pedro também conhecia da Ásia, “através da pintura, da literatura e do cinema, fundamentalmente do cinema clássico americano”.


Bastou a primeira viagem para que, depressa, a dupla de realizadores se apercebesse de que não valeria a pena “fazer mais um documentário sobre Macau”, como refere João Rui. “Queríamos pensar aquele território como um espaço para possíveis ficções”, diz ele – mas, naturalmente, “contaminadas” pelas suas “memórias pessoais”, conclui João Pedro.

Apesar das 150 horas de material filmado e três viagens feitas durante três anos e da micro-equipa, esta dificuldade foi compensada com um enormíssimo grau de liberdade, apenas comparável àquele que o filme nos oferece enquanto espectadores. O olhar sobre Macau distancia-se do deslumbrado “antes e depois”, o da infância de João Rui e o presente. E é acompanhado por uma ficção noir que o número musical antevê. Aqui, viajamos com a “personagem” João Rui que regressa, com a João Pedro, a Macau, depois de ter recebido um e-mail angustiado de Candy Darling, que lhe diz que “coisas estranhas e assustadoras” se estão a passar...

As referências cinéfilas estão lá: não só as do film noir (e de que Macau de Sternberg é bom exemplo), com assassinos e femme fatale, como também as do próprio cinema da dupla: Candy Darling / Cindy Scrash é a protagonista de Morrer como um Homem; o sapato e a sereia de Alvorada Vermelha (“curta” assinada pelos dois em 2011) voltam a surgir aqui...

Como se fossem pistas para um caminho que nos conduz, afinal, a um regresso às nossas brincadeiras de infância, à “nossa” Macau. “Essa Macau pode ser em qualquer lugar. É o nosso território pessoal”, diz-nos João Rui. A sua conta com “histórias de piratas, sociedades secretas, detetives, ruelas escuras...” Mas João Rui, como João Pedro ou o espectador, já não é uma criança.

O realismo proposto por ambos é sinal disso mesmo: embora convocado, estamos longe do escapismo de Hollywood. Um olhar realista que não esquece Macau como um território de mudanças, rodeado de mitos. Tal como o nosso passado. “As memórias são ficções”, relembra João Rui que, com este filme, ao lado de João Pedro, fez História.

Esta é a primeira de seis publicações que dedico a um dos filmes do ano: A Última Vez que vi Macau, a mais recente longa-metragem assinada por João Pedro Rodrigues e João Rui Guerra da Mata e compete esta semana no Festival de Locarno. Este artigo foi publicado originalmente no Diário de Notícias a 7 de agosto de 2011. A entrevista que serviu de base ao texto encontra-se publicado na íntegra no blogue Sessões Contínuas, aqui.

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