A estreia da mais recente longa-metragem do escritor, cineasta e artista plástico polaco Lech Majewski em Portugal não deixa de trazer consigo a memória de um outro filme que nos é mais próximo. Falamos dos Painés de São Vicente de Fora pintados por Nuno Gonçalves (entre 1470 e 1480) e revisitados, há três anos atrás, por uma Visão Poética de Manoel de Oliveira. Quando, então, apresentou no Festival de Veneza a sua aplaudida curta-metragem, o realizador português reforçou a ideia de que não estávamos perante um documentário mas, antes, uma interpretação inspirada “pela crise atual e pela crescente desumanização que se espalha pela Europa e pelo Mundo.”
É isto, em síntese, o que podemos também encontrar em O Moinho e a Cruz: um novo olhar sobre a contemporaneidade através do passado ou, concretamente, através de um... quadro. A pintura é nada menos que uma das obras-primas de Pieter Bruegel, “o Velho”, O Transporte da Cruz (de 1564). E é inspirado no quadro e na monografia do crítico de arte Michael Francis Gibson The Mill and the Cross (de 1996 e que empresta o título ao filme) que Majewski se aventurou a dar vida às personagens da pintura.
O resultado é curioso e traz consigo algo de sedutor e de hipnótico. Auxiliado pelas potencialidades do digital, o realizador polaco cria uma fotografia (co-assinada por si) e mise-en-scène profundamente artificiais e estilizadas, de modo a adequarem-se às qualidades do óleo de Bruegel. E é decompondo o quadro em vários pormenores que seguimos a jornada de algumas das figuras da pintura, entre eles, curiosamente, o próprio Bruegel (interpretado pelo lendário ator holandês Rutger Hauer).
Autor de obras que davam especial incidência sobre os camponeses, os loucos e a religião, a figura do pintor em O Moinho e a Cruz parece refletir uma meditação total (e, por isso, também ambiciosa) sobre a relação do homem com a vida e a morte. Isto porque, ao acompanharmos a progressiva composição do quadro final (como se Bruegel fosse um mero ilustrador da realidade que se move diante de si), assistimos também à criação dos diversos significados da obra.
Eis então apresentada uma das fragilidades do filme: há uma vontade de pedagogia na análise e desconstrução do quadro de Bruegel, por vezes de tal modo posta em evidência que acaba por se destituir parte do mistério de O Transporte da Cruz. Um dos mais fortes exemplos do fulgor didático do filme é a cena em que Bruegel explica alguns dos elementos do quadro: o moinho no alto do rochedo (que estaria a julgar a ação em terra), aquilo que seriam o círculo e a árvore da morte ou a suposta presença do autor na pintura.
Apesar disto, e também por causa disto, a evolução da composição do quadro final coloca-nos no fascinante terreno da criação artística, transversal à pintura e ao próprio cinema. É, pois, a partir da montagem que Majewski parece querer construir, com vários pormenores da realidade, uma espécie de quadro maior. Tal como, convém relembrar, o cineasta Andrei Tarkovsky o fez com uma das suas obras maiores, Andrei Rublev (em 1966), sobre o pintor de ícones russo.
Embora não tenha conseguido ir mais além do conceito, isto é, do seu gesto de recriação de um quadro (sentimos que estamos mais próximos da instalação do que devíamos), O Moinho e a Cruz devolve ao cinema a sua condição de arte do belo e, sobretudo, de arte do quadro.
Este texto foi publicado no Diário de Notícias a 30 de junho de 2012.
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