sexta-feira, julho 27, 2012

Rise



Os primeiros planos da primeiríssima cena do último capítulo da trilogia Nolan carregam consigo, hoje, uma força tão horrível quanto fascinante. São, de certo modo, imagens tornadas “intensas” (lembramo-nos da designação do teórico brasileiro Fernão Pessoa Ramos). Muito simplesmente porque nos sentimos a cair diante imagens que testemunham a experiência das vítimas do atentado terrorista no estado do Colorado e que resultou na morte de 12 pessoas na sessão da meia-noite da passada quinta-feira de O Cavaleiro das Trevas Renasce

A associação ao massacre, certamente inevitável, reacende algumas discussões – entre eles, o debate sobre o controlo de armas nos EUA e o mais conservador da influência do cinema sobre o real (o crítico de cinema Peter Bradshaw, do Guardian, reflete bem sobre o assunto aqui) –, e vem marcar a história da trilogia de uma forma apenas comparável à morte de Heath Ledger pouco tempo antes de ter estreado O Cavaleiro das Trevas (e cuja interpretação viria a ser reconhecida com um Óscar póstumo). 

Não estamos a falar de malabarismos negros de marketing – mas de realidade. Foi, aliás, este caminho que “salvou” Batman das tristes reminiscências de Joel Schmacher e o distinguiu da construção fantástica de Tim Burton. Uma injeção de realidade que, curiosamente, vem de um homem que tem lidado com sonhos (A Origem, 2010) ou magia (O Terceiro Passo, 2006); um homem que recusa determinantemente o 3D e que tende a diminuir os efeitos especiais em cada plano; alguém que, por outro lado, fala para o real com um cinema cada vez mais afastado dos seus primeiros trabalhos e completamente entregue ao mainstream

Um mainstream que é, apesar de tudo, evidentemente de primeira classe. Como se reinventado, há aqui um escapismo que, sim, oferece ao espectador uma fuga do seu banco da sala de cinema. Como Joseph Bevan o relembra na sua interessantíssima retrospetiva do realizador (Escape Artist publicado na edição deste mês da Sight & Sound), Slajov Žižek aponta O Cavaleiro das Trevas como a expressão da “indesejabilidade da verdade” pelo espectador. No entanto, não conseguimos deixar de sentir que há neste escapismo algo que fala para o seu local de origem. 

Esse local de origem para onde Christopher Nolan nos devolve é um mundo derrotado pelo fantasma da crise financeira representada pela queda no gráfico da Bolsa, um mundo assustado pela implacabilidade do terrorismo. Mas também, e talvez sobretudo, revoltado. Senão, como viver? “O homem revoltado” que Camus idealizou é progressivamente manifestado em reação a tudo isto e mesmo à tendência das medidas de austeridade impostas por certas políticas. 

Nesse sentido, Nolan oferece-nos o filme da “revolta” por excelência: daí que seja tão adequado o termo Rises do título original (à partida aparentemente desinspirado), e que o português perde. A ideia de renascer das cinzas parece limitado – existe uma ascensão que é tornada ideia invisível mas presente em todo o filme. Desde logo, aliás, pela banda musical de Hans Zimmer, que se ajusta a gritos de guerra ou cânticos de encorajamento da gente comum (que ganham significado dramático numa das cenas tardias do filme). Música que acompanha uma montagem, frenética e emocionada, que já nos é habitual na carreira de Nolan e que aposta na condensação das suas cenas acreditando no poder de dedução do público. E se o filme nos parece incidir sobre uma certa postura de revolução também, por causa disto, se torna “o” filme popular. 

O discurso do filme – que passa por retirar aos ricos as suas posses, por destituir o poder do indivíduo e entregá-lo ao povo – tem contornos ideologicamente próximos de uma ideia do Comunismo e que não pertencem ao herói do filme (Batman). Mas ao vilão (Bane). Eis a reviravolta conservadora, se quisermos reacionária, de Christopher Nolan, que se revela cada vez mais seduzido pelo poder. Um discurso que, é certo, é abraçado por quem o quiser. Não nos é imposta uma ideologia, mas dois caminhos, a dado momento de modo gelidamente imparcial. 

Se, à partida, Bane nos pareceria um estimulante anti-herói e novo Messias, logo percebemos que Nolan o maquiaveliza para não nos restarem dúvidas de que é com Batman que devemos ficar. Tal como fez com o lunático, mas por vezes incrivelmente lúcido, Joker, o de Ledger. É aqui que reside a confusão: o que nos quer dizer Nolan? E onde a sua voz? Sentimos que há na convenção do blockbuster uma fuga para onde Nolan nos quer levar – mas que nunca consegue, plenamente, atingir esse seu objetivo. 

É certo que há momentos que nos ficarão cravados: o ataque à Bolsa por Bane é extraordinário no esplendor do quadro do Horror; a escalada metafórica por Christian Bale pelo “poço” acima é de tal forma penetrante como se sentíssemos que somos nós que reclamamos por esperança. Momentos que fogem, contudo, a uma linha dramática eficaz mas que desilude pelo seu exercício de infeliz auto-citação. Há ganchos emprestados do anterior O Cavaleiro das Trevas: a bomba e o dispositivo da sua detonação lembram a inteligente e perturbante cena dos navios do segundo filme; o falso amor pelo povo de Bane lembra a loucura de Joker. Acreditamos por isto que O Cavaleiro das Trevas ganha muito mais ao lado desta sua conclusão. Como se não fosse suficiente, há reviravoltas banais (as duas finais) ao nível da mais básica das soluções de Os Vingadores

À luz disto, não deixamos de sentir que estamos perante uma mera variação bem executada da mesma fórmula (os elementos estão lá: do domínio de um jogo cerebral entre homens à representação noir das mulheres) e que Nolan poderia fazer muitas mais, como um sonho dentro de um sonho dentro de um sonho. Para nossa felicidade, estamos perante um último capítulo, repleto de alegres resoluções, que sente, ele mesmo, a necessidade de dizer que o restava. 

E o que restava? Que não vale a pena esperar por Jesus-Batman-Cristo e que o mundo, esse sítio “simples” e “miserável” (como nos diz Nolan em O Terceiro Passo), está entregue aos seus habitantes. E que a esperança é apenas um motor para sair – ascender – da condição de espectador dessa miséria.

3 comentários:

  1. Fantástica leitura, Flávio. Como de costume, partilho da tua opinião sobre o Christopher Nolan, para mim, o "melhor dos mainstreamers" neste momento, juntamente com o Darren Aronofsky.

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  2. Boa crítica. Espelha, a meu ver, tudo aquilo que 'The Dark Knight Rises' é, que não é mais que uma conclusão, embora débil e francamente deficiente no argumento, aceitável. O que não deixa de ser uma pena, ainda assim, se há coisa que Nolan tinha feito até hoje foram sempre filmes com argumentos sólidos e inteligentes, pelo menos num contexto mais mainstream.

    Cumprimentos,
    Jorge Teixeira
    Caminho Largo

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