Vivemos um tempo em que exercer a crítica de cinema parece ser (ou, se calhar, é mesmo) algo que se democratizou em absoluto, especialmente com as possibilidades que a Internet nos ofereceu. Um blogue é, por exemplo, tal como um programa de televisão, de rádio ou um jornal, uma plataforma, cada vez mais digna – e, sem dúvida, a mais acessível –, para escrever uma crítica a um filme visionado. Neste sentido, é importante estar cada vez mais atento ao panorama da crítica em Portugal e refletir, uma vez mais, a sua natureza e os seus objetivos.
Há dois textos que descobri recentemente e que tentam, de modo objetivo, definir o que existe – e, por conseguinte, aquilo que não deve ser. O primeiro deles é o prefácio (Da memória ao cinema em acto) escrito em janeiro de 1978 por Jorge Leitão Ramos para o livro Cinema e Transfiguração, de Eduardo Geada:
“Há várias razões que podem justificar uma recolha de textos escritos em jornais e revistas um pouco ao longo do tempo (1968-1977) (...) A razão, se a quisermos buscar e dela necessitarmos, temos de a ir procurar no mundo um pouco provinciano, um pouco autossatisfeito, um pouco ignorante e um pouco cobarde da crítica de cinema em Portugal nos últimos anos. Só assim se percebe que textos escritos ao longo de dias, anos atrás, possam, ainda hoje, ser diferentes e modernos, no sentido em que essa diferença e essa modernidade não são apenas atributos de uma qualquer exótica singularidade mas contêm em si traços longamente inexplorados até então e pouco mais aprofundados até agora.Antes de tudo, o trabalho de Eduardo Geada recusa ser uma crítica de gosto, uma tarefa de maître d’hotel da burguesia a escolher no cardápio os pratos melhor confecionados, uma crítica culinária, no sentido que Brecht deu ao termo. Em segundo lugar, os seus textos enjeitam situar-se no terreno fechado da cinefilia, esse mundo que remete sempre para si próprio, falando das formas e dos autores como se o que importasse fosse apenas uma coerência interna, um caráter comparativo (Hitchcock versus Wyler ou a montagem de atrações versus plano-sequência) cuja discussão e fundamento se fizesse exclusivamente no interior do próprio cinema. Para Eduardo Geada o cinema é sempre entendido como reflexo dialético do histórico. E é nas esferas do político, do social, do psicanalítico e também da cinefilia que o seu trabalho crítico se desenvolve.Gostaria de acentuar aqui um dos aspetos que me parecem mais importantes desta aproximação do cinema: o seu caráter didático. Com efeito, nos textos do Eduardo nunca importa muito dizer se o filme é bom ou mau (categorias de um maniqueísmo redutor que estão muito longe dos seus objetivos). Ao invés, trata-se de penetrar a textura do filme e de o compreender nas suas várias coordenadas, de o situar quer no interior do cinema, quer no interior de uma determinada estrutura social, quer no seu modo de funcionamento junto do público. Não há, por isso, nos seus textos uma adjetivação fácil, mas um trabalho moroso, fascinante e arriscado de dissecação. E tudo isto numa linguagem que se procura tão clara quanto possível, onde não é bem a “prosa” que interessa (“prosa” que, noutros, chega a ser brilhantista, gongórica, citante e vazia), mas aquilo que, nela, de objetivo se disser.Por outro lado, este trabalho crítico não esconde nunca a sua precariedade, nunca se afirma como violentamente definitivo, nunca ganha as coordenadas de um julgamento inapelável. E isto exatamente porque ele não se fecha num mundo chão e familiar, seguro, mas assume o risco de evoluir, de procurar noutras direções. (...)Num país onde tanta ideologia apressada inundou o quotidiano, onde os critérios de valor se pautam, frequentemente, pelo ideológico, muito pouca gente que fala e escreve acerca de objetos culturais tem a humildade e o rigor de análise que os textos deste livre demonstram. Quando o “julgamento” de um filme (ou de uma canção, ou de um livro, ou de uma peça de teatro...) se baseia tantas vezes no que o filme mostra ou conta ao nível primário de uma leitura apressada da sua história é bom de ver que a aproximação que os textos deste livro fazem é bem diferente. Eles mostram e demonstram que a formação da ideologia ao nível do cinema tem a ver com várias coordenadas (o modo de produção, o local e o tempo desta, o modo de difusão e consumo, as formas e os códigos cinematográficos usados...), e é a partir delas que se procura estabelecer uma aproximação ideológica do cinema em geral e de cada filme em particular.Resta talvez dizer que estes textos nunca são gélidos, impessoais e distantes. É que eles não são produzidos por uma qualquer instância venerada de saber, mas nascem de um prazer pessoal, de uma quase paixão, face ao ecrán, prazer multiplicado na prática analítica da escrita, prazer que, afinal, gera a imensa vontade de saber que os informa. (...)”
O segundo texto nasce quase 25 anos mais tarde e acompanha o surgimento de um novo portal de cinema. Escrito pelos autores de À Pala de Walsh (a saber: Carlos Natálio, João Lameira, Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa), ele pode ser lido aqui.
"This is what criticism does: assesses, categorizes, compares, celebrates, lionizes, and winnows away the chaff. A tally of how we momentarily view cinema’s peak manifestations is an integral part of the dialogue – a part that’s fueled by love, by a desire to exalt. (As Madness used to say: 'Don’t watch that, watch this!') When explication and theorization is done, what do we have besides our transported experiences, our ecstatic exchanges with cinematic tissue?"
ResponderEliminarhttp://www.bfi.org.uk/news-opinion/sight-sound-magazine/features/listomania
Cumps cinéfilos.