quinta-feira, abril 24, 2008

"Ensaio sobre a Lucidez", José Saramago

Continuação da história apresentada no excelente "Ensaio Sobre a Cegueira", "Ensaio Sobre a Lucidez" procura agora explorar novos detalhes da história, bem como outras personagens. Mas... terá ele mantido o brilhantismo do anterior?

Quatro anos se passaram desde o surto de cegueira branca que assolou o país e que fez com que a sua população ficasse, durante semanas, invisual. As pessoas, não tendo encontrado uma explicação para o facto insólito, fizeram como que um pacto de silêncio não formalizado – como vemos na página 175, “Tem razão, pacto em sentido formal não houve, interveio o primeiro-ministro, mas todos pensámos, sem que para isso tivesse sido necessário pôr-nos de acordo e escrevê-lo num papel, que a terrível provação por que havíamos passado deveria, para a saúde do nosso espírito, ser considerada como um pesadelo abominável” – acerca do assunto e continuaram com as suas vidas.
Assolada por um temporal em pleno dia de eleições, a capital vê as suas urnas quase vazias até a meio do dia, quando o tempo começa a melhorar. Contados os votos, a esmagadora maioria – 70% – está em branco e, por isso, convocam-se novas eleições, cujos resultados – ainda mais catastróficos – levam a que o governo lhe declare Estado de Sítio.
A primeira parte do livro é centrada no Ministério em poder, nas suas tácticas e estratégias por si utilizadas face à nova “cegueira”, que desta vez tem a forma de votos brancos. A segunda parte centra-se nas consequências provocadas por uma carta enviada ao governo por um dos protagonistas da prequela.

Contrariamente ao que acontecia com Ensaio Sobre a Cegueira, aqui não encontramos nenhuma personagem que, desde os primeiros desenvolvimentos da narrativa, se perfile como principal. Em vez disso, a obra oferece-nos um enredo que se divide, como já mencionado, em duas partes.
A primeira, referente aos dez capítulos iniciais, essencialmente interessada em mostrar-nos o lado dos políticos, a quem dá o destaque de personagens principais. A segunda, protagonizada por um comissário, um inspector e um agente de segunda classe, e que nos mostra a investigação por eles realizada – após o governo ter recebido uma carta escrita por um dos protagonistas do livro anterior, o primeiro cego, que apontava a mulher do médico como eventual suspeita do surto de votos brancos que assolou as últimas eleições na capital, pelo facto de, há quatro anos, não ter cegado – com o objectivo de averiguar as causas da elevada taxa de votos em branco.
Alguns acontecimentos são protagonizados por uma outra personagem, o presidente da câmara municipal, através de cujos olhos presenciamos o momento da explosão da bomba no metro.

Se, no Ensaio Sobre a Cegueira, existia um enredo que, acompanhando a árdua jornada de um grupo de cegos liderado pela única pessoa a não cegar, nos mostrava a mutação a que o Homem se submetia, a sua perda de identidade, de humanidade, que o levavam a cometer actos de profunda crueldade e barbaridade, mas também de solidariedade e camaradagem, aqui encontramos uma nova intriga e novas reflexões acerca da condição humana.
Nos capítulos dedicados aos políticos, o tema que, na generalidade, os caracteriza, é a corrupção. Corrupção política – através dos discursos preparados para os ministros – e corrupção dos valores – que leva os ministros a cometer decisões hediondas, como a implantação da bomba no metro que resulta em dezenas de vítimas, para ludibriar o país.

Nos capítulos protagonizados pelo presidente da câmara, somos sobretudo levados a reflectir sobre a forma como agimos em relação aos que se encontram à nossa volta, como neste excerto: «É interessante como levamos todos os dias da vida a despedir-nos, dizendo e ouvindo dizer até amanhã e, fatalmente, em um desses dias, o que foi o último para alguém, ou já não está aquele a quem o dissemos, ou já não estamos nós que o tínhamos dito».
Já aqueles em que a acção se centra no comissário e seus subordinados, os temas são a ética – que leva o comissário a recusar-se a criar provas que incriminem, de alguma forma, a mulher do médico – e, novamente, a corrupção – quando o ministro do interior, servindo-se do seu cargo superior em relação ao comissário, procura a todo o custo provar a culpabilidade de um inocente.
Concluindo, os temas que predominam neste livro são a corrupção, a ética e os valores humanos. No primeiro, chocavam-nos as descrições terrivelmente realistas dos actos cometidos pelas personagens, bem como dos ambientes, cada vez mais degradados, que as rodeavam; aqui, choca-nos a frieza com que um ministro ordena a implantação de um dispositivo que causará a morte de dezenas de cidadãos e, horas depois, atribui a culpa aos supostos inimigos, os cabecilhas dos brancosos, ou a forma como um homem denuncia uma mulher – por um crime que ela nem cometera –, a quem, anos antes, devera a sobrevivência.

Mas será “Ensaio Sobre a Lucidez” uma sequela no verdadeiro sentido da palavra? As possíveis respostas a esta questão são várias e, claro, dependentes de cada leitor.
Alguns dirão que não, dado que nos primeiros dez capítulos não encontramos mais que menções – na maior parte das vezes, vagas – aos acontecimentos narrados em Ensaio Sobre a Cegueira e que, por esse motivo, boa parte do livro tem poucas relações – evidentes – com o enredo do anterior.
Outros, contudo, responderão que sim, que o livro é uma continuação pois, apesar de na primeira dezena de capítulos a acção não continuar seguindo as mesmas personagens da prequela, a verdade é que estas voltam e que, mesmo sob a forma de personagens secundárias, têm, a certa altura, um grande impacto nos acontecimentos, como de resto nos é anunciado pelo narrador – «Se esta discussão não tivesse acontecido, se o manifesto presidencial e os papéis volantes tivessem, por desnecessários, terminado no livro a sua breve vida, a história que estamos a contar seria, daqui para diante, bastante diferente». Além disso, a sua ausência é compensada pelos interrogatórios, que nos proporcionam informações sobre o que se passou com elas ao longo dos quatro anos que se passaram, bem como sobre o presente.
Assim, podemos concluir que Ensaio Sobre a Lucidez, apesar de centrar a acção noutras personagens, não negligencia as que protagonizaram o romance antecedente, nem tampouco o seu enredo; dá-lhes, aliás, continuação.

Falando agora da escrita, nesta obra encontramos características que tornam as criações de Saramago algo, pode dizer-se, singular.
Com isto falo, claro, das frases – por vezes, excessivamente – longas, que negligenciam regularmente as regras de pontuação; as reflexões acerca da condição humana e do Homem, muitas vezes conotadas com um certo sarcasmo também típico de Saramago; os diálogos cujas falas se apresentam intercaladas por vírgulas, violando, por isso, o sistema que predomina na maioria dos romances.
De notar que esta última característica, o facto de as falas das personagens estarem separadas por uma simples vírgula, é decisiva para a construção dos diálogos, que desta forma beneficiam de uma maior fluidez, como vemos no seguinte exemplo: «Olho para si e não lhe vejo cara de assassina, Não sou uma assassina, Matou um homem, Não era um homem, senhor comissário, era um percevejo».

Os motivos que me levaram a gostar bastante deste livro prendem-se, sobretudo, à escrita do autor – que, ao contrário de muitos, é um valioso suporte à narrativa –, às reflexões acerca do ser, do Homem, à história em si, que nos mostra uma capital abandonada pelos governantes, um Ministério reinado por corruptos e um grupo de personagens de convicções fortes por quem acabamos por torcer, mais cedo ou mais tarde.
Apesar disso, não posso deixar de apontar dois aspectos negativos. O primeiro relaciona-se com o facto de não nos ser dada nenhuma explicação para as causas da cegueira branca do anterior, nem acerca dos votos em branco. O segundo, que impede que Ensaio Sobre a Lucidez ascenda ao brilhantismo de Ensaio Sobre a Cegueira, é o facto de, como grande parte do livro é centrada em políticos e nas reuniões entre si e de, depois, sermos apresentados a outros protagonistas – personagens completamente novas à história –, o livro não provoca no leitor o mesmo envolvimento com a história e as personagens, algo que era atingido com mestria no anterior.
É, contudo, um óptimo livro, que em muito supera as leituras a que as massas comodamente se habituam e que, pessoalmente, recomendaria a todos os que gostaram do Ensaio Sobre a Cegueira.

1 comentário:

  1. Gostei bastante deste livro. Quanto a mim, Saramago não tem bons livros, ou sou muito bons ou obras-primas.

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