O aviso está feito: “procurem abrigo”, aproxima-se uma tempestade apocalítica e, depois dela, nada vai ser igual. Perante esta premissa, poderemos facilmente recordar o enormíssimo fenómeno de bilheteiras que foi, há três anos, o filme-desastre 2012 de Roland Emmerich e, em consequência, associar a segunda longa-metragem de Jeff Nichols com as teorias escatológicas em torno do próximo dia 21 de dezembro.
É melhor que nos desenganemos. Procurem Abrigo (título original: Take Shelter), filme independente norte-americano que venceu no ano passado o Grande Prémio da Semana da Crítica em Cannes, recusa-se a participar nesta corrente de delírio sobre o fim do mundo e tentar compreender, pelo contrário, as nossas raízes. Falamos da família, naturalmente, com todas as suas particularidades comuns (não é certamente por acaso que Nichols nos quer dar a ver os esforços do casal em oferecer à filha surda os melhores cuidados possíveis). E é em torno dela que o protagonista Curtis LaForche, interpretado por um assombrado Michael Shannon, se dedica em absoluto para a proteger. De quê? Na verdade, de duas crenças que entram em oposição entre si: da tempestade que julga estar a caminho (que põe em risco a sua vida e a da mulher e filha) e das visões que tem sobre a mesma e que pensa terem uma origem meramente patológica (possivelmente uma esquizofrenia herdada da mãe). E enquanto decorre o conflito um abrigo é construído perante o olhar reprovador dos que o rodeiam…
Em que havemos, por isso, de acreditar? Nas visões de Curtis ou na sua doença? É talvez esta a dúvida que Jeff Nichols opera ao longo do desenvolvimento do filme. Como? Ora sugerindo o seu angustiado ponto de vista ora exteriorizando-se dele, filmando a incompreensão da pequena comunidade norte-americana em que vive e a da mulher (Jessica Chastain, que surge com uma presença luminosa).
Uma dúvida que nunca acaba realmente por ser respondida (a tempestade tem relação direta com as suas aparentes alucinações?) e que permanece ao longo de um fluxo de imagens que demonstram um sentido de ritmo (recorrendo raras vezes à elipse, as coisas parecem-nos decorrer tal como estão, de facto, a acontecer) e de mise-en-scène apuradas. Vide, sobre esta última, as cenas de cozinha, em que a câmara parece estar lá como o cão – uma presença que não é anónima mas habitual. Até um certo ponto, a imagem tem um poder revelador (ao estar, por vezes, no campo da “objetividade” contaminada pela subjetividade do protagonista) mas também, quem sabe principalmente, transformador: o real não é nada mais que esta matéria exterior que, sendo vista por um conjunto incerto de perceções, pode ser entendida a qualquer momento como um palco para o fim.
No limite, e tal como a tradução do título em português sugere (Procurem Abrigo), estamos diante de um medo que acaba por ser unificador: quem não receia enlouquecer e perder a memória? Quem não tem medo de perder aqueles que nos são queridos? Sobre esse medo, Jeff Nichols responde: em situações-limite é preciso que nos juntemos. Não nos admira, pois, que o poster oficial do filme nos mostre, muito simplesmente, o pai, a mãe e a filha abraçados sob um assustador bando de pássaros.
Numa entrevista para o portal de cinema independente Indiewire, o realizador desabafa: na viragem para os 30 anos de idade “tinha acabado de casar e feito o meu primeiro filme”, Histórias de Caçadeira (2007). “Tinha finalmente algo que podia perder”. E essa ansiedade, aliada ao facto de George W. Bush ser então presidente, de a economia mundial ter entrado em crise, “de haver guerras por toda a parte e de tempestades a destruir as cidades”, contribuiu para o discurso que alimenta esta longa-metragem: não podemos deixar “perder a força de manter tudo unido”.
Procurem Abrigo estreia hoje nas salas de cinema portuguesas (Lisboa e Vila Nova de Gaia).
Procurem Abrigo estreia hoje nas salas de cinema portuguesas (Lisboa e Vila Nova de Gaia).
(Este texto adapta o artigo "Quando o medo chega, em quem podemos acreditar?" publicado no Diário de Notícias - 16 de maio de 2012)
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