Gus Van Sant, Sean Penn, Dustin Lance Black: a fórmula ideal para um retrato perfeito de um dos líderes políticos mais marcantes e corajosos dos tempos modernos? Partindo da premissa de que a perfeição é inatingível, acho que, caso Harvey Milk estivesse vivo para ver este incrível obra de arte, ficaria, mais do que aprovador, verdadeiramente orgulhoso.
E mais do que motivos teria ele para gostar da sua biopic. Sean Penn dá corpo e alma a Harvey Milk, que conhecemos como o primeiro político (assumidamente) homossexual nos Estados Unidos da América. Se em “21 Gramas”, Penn saiu-se com uma interpretação magistral (como aconteceu também com “I Am Sam” ou em “Mystic River”), em “Milk” o monstro voltou a atacar, cheio de maneirismos e de individualidade, dando a todos uma lição de representação intemporal (daquelas que Kate Winslet bem gosta de dar!). Quanto a Rourke eu não sei (até porque não vi “The Wrestler” ainda), mas é preciso lutar bastante para se superiorizar a este grande senhor. Como se não bastasse, o leque de boas interpretações estende-se a Josh Brolin (“W.”), Emile Hirsch (que, se não soubesse que vinha d’“O Lado Selvagem”, não o reconheceria – demonstra apenas a sua versatilidade enquanto actor), Diego Luna (o mexicano que se escondeu demasiado tempo no armário com filmes parolos como “Dirty Dancing”) e James Franco (“Homem-Aranha”). Caracterizados de forma bastante realista pela equipa do guarda-roupa, tantas importantes figuras com tão complexas personalidades resultariam num projecto meramente ambicioso não fosse a competência que revelaram ter em todo o filme, do início, ao fim.
Frente na corrida para o Óscar de melhor argumento original, a maior revelação vai, pois, para o jovem argumentista / produtor executivo Dustin Lance Black. Sem ser kitsch, “Milk” consegue reunir discursos políticos poderosíssimos (baseados, obviamente, nos próprios que Harvey declarou) e cenas idealizadas que me são memoráveis (o romance entre ele e Scott, apesar de curto, é-nos mostrado de uma forma subtil mas admirável), lançando na atmosfera os indícios trágicos e alegres por que Harvey passou (e por que qualquer um, na sua vida, vai passando).
Agora, voltando-me para a realização. Inútil será escondê-lo: desde que, no passado ano, vi a sua participação em “Paris, Je T’aime”, comecei a acompanhar com grande atenção os projectos do realizador (que vão desde de uma série de curtas-metragens da temática LGBT, “Mala Noche”, “My Own Private Idaho”, “Drug-store Cowboy”, “O Bom Rebelde” e um insensato remake de “Psico” a uma quadrilogia de filmes independentes nada convencionais, contanto com títulos como “Gerry”, “Paranoid Park”, “Last Days” e, claro, o magnífico “Elephant”, vencedor da Palma de Ouro em Cannes). A sensibilidade na filmagem e no enquadramento quase poético das personagens torna-se notória, trazendo para o mundo da sétima arte uma visão por muitos incompreendida, uma perspectiva muito íntima e sentimental susceptível a interpretações diversas, aproximando-se tímida mas brilhantemente do espectador. Para além da difusão deliberada dos prévios registos da comunicação social já existentes com os filmados, marcas pessoais de Van Sant tornam-se visíveis, apesar de uma obra onde o termo “comercial” acaba, de uma forma ou de outra, por se encaixar, neste “Milk”. Exemplos dessas trademarks são, por exemplo, os momentos de câmara subjectiva (que acabam por se dividir em duas vertentes: a que mais se aproxima da expressão, isto é, quando a câmara assume a condição de figurino – como na cena em que Harvey discursa à noite e “vemos” com os olhos de um dos protestantes –, e nas cenas em que é o próprio espectador que se afigura como uma câmara de filmar doméstica a registar os momentos que presencia – por exemplo, quando Harvey e Scott estão no carro e nos sorriem e lançam caretas –, como é bem perceptível em “Paranoid Park”, nas cenas em que skatam as pessoas). Vemos, de novo, o prazer que o autor tem em filmar as personagens por detrás (se viram, deverão saber já que “Elephant” é um exemplo edificativo do que falei), como nalgumas cenas em que o político discursa se comprovou ou, já que é uma cena mais elucidativa deste facto, quando uma criança caminha em direcção a Harvey e lhe entrega um folheto de propaganda eleitoral de Dan White, e mesmo em filmá-las, quando em grupo, de forma circulatória (o que expressa uma metáfora sobre as minorias sociais que constituem, na maior parte das vezes, apenas elites – em “Elephant” era o grupo escolar de estudantes homossexuais que discutia assuntos muito particulares sobre a comunidade LGBT, em “Milk” era o grupo político de liberais homossexuais que lutava pela igualdade de direitos perante a lei). São, portanto, bastante as comparações positivas que se fazem a este aparentemente simples realizado “Milk”, o que só evidencia a genialidade de Gus Van Sant, com uma nomeação merecida este ano para o Óscar de melhor realizador, que trouxe à Academia, este ano, um olhar cinematográfico mais indie, para além de Danny Boyle com “Quem Quer Ser Bilionário?”, em menor escala, claro está.
Em jeito de breve referência, é de salientar a sofisticada e inovadora banda sonora de Danny Elfman, que parece ter recuperado a forma, levando-nos uma sinfonia magistral de sons, que, apesar de inicialmente desconexos, se coadunam de forma extraordinária, influenciado pelas batidas do jazz e do violino. Se pusermos as colaborações de Hues Corporation, Sly & The Family Stone, ou de Sopwith Camel num disco de vinil, temos um sucesso dos anos 70. Para os interessados: a música do trailer, apesar das diversas harmonias vocais presentes no filme, é obra do excelente Thomas Newman, da banda-sonora “Anjos na América” que, curiosamente, também aborda a temática LGBT.
Curiosa é a pertinência dos problemas abordados Se substituíssem Milk por Obama (os símbolos modernos da não discriminação) ficaria convencido: o sentido de esperança é o que no filme prevalece. Apesar de, nos dias de hoje, os problemas serem ligeiramente diferentes (basta vermos os noticiários portugueses para percebermos que o casamento entre pessoas do mesmo sexo são as prerrogativas desejadas), o filme veio para marcar a sociedade (não fosse servir de exemplo para um discurso político de José Sócrates, por exemplo). “Milk” transmite poderosas mensagens e ainda consciencializa a população, reeducando-a nesta biografia que acaba por ser, feitas as contas, um verdadeiro retrato à emancipação de uma minoria que decide não se conformar e lutar pela justiça, liberdade e igualdade social a que tem direito.
9/10
Parabéns, está fantástico a estrutura e caracterização da crítica, portentosa capacidade escrita, mas isso eu já sabia ;)
ResponderEliminarAbraço
Bom texto! Adorei o filme! E aquela Anita Bryant -> rrr. Abraço!
ResponderEliminar@ Pipocas e Outras Tretas - 16/02/2009
Sim, excelente crítica. Sean Penn tem uma transfiguração impressionante, um dos melhores papéis de que tenho memória.
ResponderEliminarRoberto F. A. Simões
CINEROAD
@ Pipocas e Outras Tretas - 16/02/2009
Ainda fiquei com mais vontade de ver o filme depois de ler a crítica :) Não dúvido nem por um segundo do desempenho excelente de Sean Penn e começo a ficar chateada de não ter ido ver logo contigo!
ResponderEliminarBeijinhos cinematográficos
@ Pipocas e Outras Tretas - 16/02/2009
Eu acho que Van Sant é bom nos filmes independentes, mas se perde em grandes produções. Estou ansioso para ver o filme, já que a crítica postada aqui dá a entender que ele manteve na grande produção a qualidade dos filmes independentes.
ResponderEliminar@ Pipocas e Outras Tretas - 17/02/2009