domingo, julho 19, 2015

Entrevista a Renzo Rossellini

Sara Matos/Global Imagens

Renzo Rossellini (24 de agosto de 1941), filho mais velho do emblema do cinema neorrealista italiano  Roberto Rossellini, colaborou com o pai em cinema e televisão entre 1959 e 1970, começando por trabalhar como assistente de realização. Durante esse período, foi creditado como Renzo Rossellini Jr - para que não o confundissem com o tio, compositor da banda musical da maioria dos filmes do autor italiano.

Foi realizador, mas destacou-se sobretudo na produção ao fundar a Gaumont Italia e ao financiar e distribuir mais de uma centena de filmes - uma lista que inclui títulos essenciais da história do cinema europeu na segunda metade do século XX, assinados, por exemplo, por Fellini, Antonioni, Truffaut, Fassbinder, Bergman ou por um exilado Tarkovsky.

Esta entrevista, publicada no DN no dia 8 de abril de 2015, foi feita quando Renzo Rossellini esteve em Lisboa para apresentar dez filmes do pai restaurados nos últimos anos.


Com que dificuldades se deparou no processo de restauro dos filmes do seu pai?

A película é um material que se arruína muito facilmente. Como um ser humano, pode morrer e desaparecer. O problema era conservá-la e conservá-la bem. Preocupavam-me sobretudo os cortes que foram feitos durante o período da censura. Saía-se do fascismo, mas na cabeça das pessoas não se gostava dos filmes de Rossellini. E, por isso, havia muitos cortes no momento da distribuição. O meu trabalho foi fazer um restauro fisiológico – fazer com que a película voltasse a ser como era no início. O restauro é dedicado aos jovens, que estudam Cinema, História ou Arte.


Qual foi o filme mais censurado?

O filme do meu pai que teve mais cortes foi O Santo dos Pobrezinhos, sobre S. Francisco. Cortaram 11 minutos. No ano de 1950, no Jubileu do pós-guerra, o retrato de um santo pobre foi mal recebido tanto pela Igreja como pela esquerda comunista, habituada aos filmes sobre a Resistência. Assim, a censura cortou o prólogo de cinco minutos com representações de Giotto e episódios como a aparição de uma prostituta – São Francisco conhece-a e dá-lhe um abraço, como Jesus fez com Madalena. Mas cortaram essa cena.


Quando começou a colaboração com o seu pai?

Comecei a trabalhar com o meu pai na pós-produção de Índia. Depois, colaborei em 1959 em O General Della Rovere como assistente de realização. O produtor que financiou o filme exigia que estreasse no Festival de Veneza. O meu pai decidiu que eu filmaria todas as cenas sem o ator principal, Vittorio De Sica. O dia de rodagem era repartido em cenas e lugares diferentes que nós os dois filmávamos separados, pelo que no final de cada dia acabávamos com bastante material. Em Veneza, o filme venceu o Leão de Ouro e o meu pai disse-me: “como filmaste mais minutos, o prémio é para ti”.


Como aconteceu a transição do cinema para a televisão?

O meu pai descobriu a televisão quando filmava na Índia, em 16mm, aquilo que via. Para poder terminar um documento sem pessoas, vendeu à televisão francesa e, depois, à italiana. No dia que sucedeu a emissão, falando com gente da televisão, foi congratulado por ter tido dois milhões de espectadores – algo extraordinário, visto que naquelas imagens não havia atores nem história. Por seu lado, os filmes com Ingrid Bergman e Anna Magnani recolhiam dezenas de milhares de espectadores. Assim, percebeu e questionou o poder imenso da televisão – como é que algo que chegava a milhões de pessoas podia ser tão mal aproveitado, com concursos e outros programas imbecis? Pensou em fazer algo para fazer da televisão algo de útil aos humanos.


Nos dias de hoje, temos mais meios de difusão de imagens...

Como a Internet...


Qual é o lugar do filme face a esta multiplicidade de meios?

Bem, a mim preocupa-me a pirataria dos filmes na Europa. Os EUA dão mais atenção sobre este grave problema. A Europa deixou de prestar atenção à cultura – já não existe, tal como já não existe cinema. É preciso uma evolução para que os europeus aprendam o que é a cultura. No caso dos norte-americanos, essa evolução deu-se com a criação de uma Constituição. Por aqui, temos uma Europa sem Constituição. Muitos dos filmes do meu pai foram feitos nesta perspectiva. Ele foi o primeiro realizador que, depois da Segunda Grande Guerra, viajou a Berlim. Com Alemanha, Ano Zero fez um filme sobre a piedade e o perdão. Ele pensava que, sem o perdão da Alemanha, não havia possibilidade de uma Europa unida.


Faz-nos falta hoje um cinema reunificador?

Sim, mas acredito que os jovens realizadores apenas olham para si próprios, não olham para o que há em redor. Há sempre um momento em que é preciso ser responsável e dizer “não”.


Também é professor de cinema. De que forma lida com as futuras gerações de realizadores?

Quando ensino cinema, digo aos meus alunos que é muito importante observar com olhos de ver e ter uma posição ética sobre o mundo que nos rodeia, sabendo apontar aquilo que é bom e que é mau. Os filmes são meios para expor aquilo que está mal, e também para aprender. Acredito que estamos a viver um momento histórico muito difícil, dominado pelo terrorismo. O terror tem como objetivo dar medo e, se a televisão ajuda a mantê-lo, ganham os terroristas. A única forma de os vencer é não temer e ajudarmos a pensar como nos havemos de opor, com humanidade, contra o terrorismo. São razões sociais, políticas e económicas que criaram esta situação. Há que propor soluções, nem que seja de uma forma utópica - neste sentido, o cinema pode fazer muitíssimo.


quarta-feira, dezembro 18, 2013

As promessas de Béla Tarr num mundo sem profetas

Entramos, como na carroça arrastada a custo pelo cavalo, na rota em direção a um buraco negro do qual sabemos que não iremos regressar. Queremos seguir a estrela que desapareceu e foi nessa condição que Béla Tarr, mestre de 58 anos (e reformado) húngaro do cinema contemporâneo, chegou a Lisboa sem disposição para falar sobre o efeito amargo de O Cavalo de Turim mas, partindo do "bonito conto de fadas romântico" que considera ser As Harmonias de Werckmeister, trazer consigo desejo de persistência e de eterna revolução sobre o confronto com a vida e o futuro dos filmes deste tempo.

Foi um dos primeiros convidados para a recém-estreada ronda de sessões pensadas por Haden Guest, diretor do Harvard Film Archive, e pelo cineasta Joaquim Sapinho. O gesto cruza-o, subtilmente, com a liberdade radical da obra de António Reis e ajuda ainda a completar o círculo de interesse crescente em Portugal, originário de várias grandes paixões, sobre a filmografia de Tarr. Foi já muito depois de uma retrospetiva do realizador numa das primeiras edições do festival de cinema de Tróia que, pela primeira vez, um filme seu era estreado comercialmente (o último dos últimos) e era lançado, também pela Midas Filmes, o primeiro volume em DVD da obra. Estão ali os filmes da viragem dos anos 80 para o futuro e da fase da plena maturidade e vitalidade do autor (Danação, de 1988, O Tango de Satanás, 1994, As Harmonias de Werckmeister, 2000, e O Cavalo de Turim, que em 2011 venceu o Urso de Prata no Festival de Berlim), comummente separados da fúria do realizador enquanto jovem, que quer, transportando a câmara consigo, "lutar contra o sistema" (esse segundo volume de títulos chegará no próximo ano). Lançado recentemente, um magnífico breve ensaio escrito pelo pensador francês Jacques Rancière, traduzido por Luís Lima para a editora Orfeu Negro, leva-nos agora a descobrir aquele que é o "tempo do depois" em Béla Tarr, um dos conceitos sobre os quais se debruça numa visão de aventureiro sensível que quer superar a linha do horizonte do seu cinema.

"Depois do sexto dia, Deus criou a merda onde estamos", disse Béla Tarr, que se aprontou em esclarecer que "não há apocalipse" n'O Cavalo de Turim - o monstro que acompanhou a corrente amedrontada de filmes escatológicos dos anos mais recentes, de Roland Emmerich a Lars Von Trier - e que reduziu a estrutura dramática ao seu ponto mais elementar: um pai, uma filha e o cavalo com que Nietzsche chorou antes da loucura, em seis dias que os obscurecem por aquilo que Rancière chama de "promessa falhada", ideia que unifica o conjunto de filmes sociais e metafísicos.

A justeza com que, em 30 longos planos-sequência, a câmara de Béla Tarr filma com as formas materiais aquilo que nos aparece como uma ópera leva-nos também a elevá-lo como um dos poucos ascetas da imagem cinematográfica. Mais do que todos os restantes filmes da sua maioridade, preocupados no início com "as alvoradas capitalistas desencantadas" em território corrompido pela promessa do comunismo, O Cavalo de Turim evidencia um domínio total sobre as formas que concretizam o pessimismo necessário do realizador, que começa por recusar o corte e "fazer a montagem no próprio plano". As razões, diz-nos sem aprofundar muito, são pessoais: a montagem é um solitário aborrecimento e assim está mais próximo dos seus mais valiosos parceiros espirituais (como Ágnes Hranitzky, sua companheira, correalizadora e montadora; o romancista László Krasznahorkai, responsável pela escrita do argumento; ou Mihály Víg, compositor).

Em profundidade, descobrimos também o tempo cristalizado como agente que participa na construção do ponto de vista do cineasta que, avisa, está mais interessado no "entendimento sobre o mundo" que nasce da relação dos sentimentos com a concretude dos elementos materiais (um prato, uma lamparina, uma anti-Bíblia). Na verdade, e servindo-se do seu próprio realismo, o seu objetivo mais claro é transfigurá-lo num estilo que seja uma provocação, tão derrotada como revoltada, frente aos mistérios essenciais e ao "insustentável peso da vida". Aquilo que chamámos de estilo não pretende resultar da criação de simples planos polidos ou ornamentados mas antes, relembra Rancière, ser essa "maneira absoluta de ver" que Flaubert reivindicava sobre a forma literária. Será por isso que, longe da tarefa do romancista, o cineasta deve ver (ou dar a ver) esse embate único com o universo.

O arranque d'O Cavalo de Turim, que aparece seguido de uma narração em fora de campo, é pleno de relações sensíveis em toda a sua duração: a câmara viaja em travelling entre o homem, a carroça, o cavalo e o caminho que descrevem juntos, na sua impiedosa singularidade e presença, enfrentando uma imensa rajada de pó e folhas, expressão natural dos obstáculos e das dificuldades daquele movimento. Mais do que os elementos do real, é precisamente a escolha dessa matéria que faz descobrir a ficção que há por detrás de cada ponto de vista.

O maravilhamento sobre esta sequência decorre, também por isso, da pujança e perfecionismo do realizador na composição do espaço e do enquadramento. Na verdade, Tarr é um homem que raramente gosta de ser contrariado em rodagem - o francês Jean-Marc Lamoure, que teve o privilégio de registar de perto as filmagens do seu filme-testamento, apresentou este ano no Doclisboa com Tarr Béla, I Used to Be a Filmmaker um testemunho da ética de trabalho do húngaro. Diz-nos, a dado momento, que o cinema é como "um sistema feudal" onde se reúnem "animais de espécies diferentes", esclarecendo assim que "na arte não há democracia".

Desta crença advirá toda a organização acometida n'O Cavalo de Turim, onde se construiu de raiz uma casa, o estábulo e o poço - a fé no artificio leva-nos a pensar no palco de uma peça de teatro ou nas complexas operações do cinema de Hollywood. Lamoure chega a registar, num enquadramento distante pronto a desconstruir a ilusão da imagem, o impressionante momento em que todo o plano de abertura é filmado: um helicóptero aligeira-se perto do chão para fazer levantar o pó e as folhas e a velha carroça é seguida por uma câmara enorme, apoiada numa espécie de grua conduzida.


É este também o peso da máquina-cinema em relação com a qual o Estado é indiferente. É uma das razões pelas quais nos devemos sentir solidários com a demanda revoltada de Béla Tarr, que se opôs com veemência à reforma presente da gestão estatal do cinema húngaro protagonizada pelo produtor vindo dos blockbusters norte-americanos Andrew Vajna. "O cinema húngaro está a morrer", avisou o realizador em entrevista ao Ípsilon no ano passado, "as estruturas foram desmanteladas e o novo modelo quer decalcar o método hollywoodiano".

A questão da nacionalidade, no entanto, ninguém a tira: não obstante o corte com um país que o atraiçoou (a escola de cinema que hoje dirige foi fundada na Croácia), Béla Tarr, sem orgulho mas sem pesar, diz: "Sou húngaro." É com o peso da própria História que atenta nas paisagens pobres mas "muito, muito humanas" dos trilhos do interior do país que servem de espaço secreto para os ambientes do seu cinema. O autor desde cedo viu o percurso do presente ser interrompido pelas forças do poder que o superam - o desejo de vir a estudar Filosofia, por exemplo, não foi concedido como castigo pelo facto de ter denunciado, com 16 anos, uma câmara de 8mm e uma enorme vitalidade juvenil, o modo de vida do operariado do país e daí a câmara surgiu como instrumento indispensável da própria relação com as pessoas. Perdeu-se, na evolução dos seus filmes, a ânsia da compreensão sobre o espectro político e começou a vencer uma cosmovisão ainda mais fundamental e universal.

Jacques Rancière aponta Almanaque de Outono (1984) como um ponto de viragem na . sua carreira, à qual se acrescenta a adaptação para televisão de Macbeth (1982), que filmou em apenas dois planos. As cores radicalmente artificiais e antinaturalistas da longa-metragem (o azul e a trovoada) virão a ser desconsideradas mais tarde na invenção "de uma gama de cinzentos suficientemente rica" com a qual Tarr decidirá pintar os restantes títulos, considerando ainda a película como eterno material de trabalho, opondo-a recentemente ao digital ("não digam que são 'filmes', chamem-lhe outra coisa").

Neste território e a partir desta linha de tons, começa a delinear-se o lado eminentemente pictórico que atravessa o cinema de Béla Tarr. Como com Caravaggio, o desenho da luz dura nos filmes, que definem com clareza as zonas de luz e de sombra, é em si um artifício que exprime dados realistas ao fazer revelar a densidade absoluta dos corpos das pessoas que filma, movimentados e posicionados por uma força que nada empresta às técnicas naturalistas convencionais. A figura do pai em O Cavalo de Turim assume, a certa altura, a imagem da Lamentação do Cristo Morto de Andrea Mantegna e mesmo a sua refeição com a filha conduzem-nos a Os Comedores de Batatas de Van Gogh, raccords que Tarr assumiu na sua visita a Lisboa: "Quis colocar tudo aquilo de que gosto."


"Tudo" é sobretudo aquilo que toma parte na reflexão sobre o destino do homem, visto aqui em toda a sua absurda circularidade: "Adquirir, degradar, adquirir, degradar", repete a personagem do bêbedo, contornando as palavras como a roda da carroça e a ordem da rotina familiar que não cessa de, como no mito do Sísifo, continuar a deixar cair a rocha até ao fundo da montanha. O próprio desejo da duração dentro do plano perpetua este inalterável sentimento de eterno retomo que experimentamos com estranho terror, mas deixa também antever as fantásticas alterações do real através do movimento entre o olhar, os corpos e luz que os banha.

A primeira sequência d'As Harmonias de Werckmeister, que filma num bar um grupo de bêbedos que representam o movimento dos planetas e o fenómeno do eclipse sob o comando do protagonista-vidente sobre o qual ronda esta fábula, abre-nos a porta para uma "uma composição desses cristais de tempo onde concentra a pressão cósmica" - como em qualquer outra cena sua, em Tarr o sensível sobrepõe-se como valor superlativo ao visível e ao empreendimento narrativo tradicional. Disso não decorre uma espécie oca de formalismo mas um reajustamento do real que serve as ânsias interiores do corpo humano que o ocupa um princípio ético, sem dúvida, que marcou o modo de pensar as imagens "do outro lado" do cinema quando pensamos, por exemplo, na obra de Gus Van Sant na viragem do milénio.

Apresentado por inteiro e sem contaminação da subjetividade do herói, a dança dos bêbedos demonstra essa "circulação dos afetos" que domina O Cavalo de Turim e dá um salto para uma medida maior do que o próprio filme, o cósmico focalizado no mundano, que também sentimos em toda a sua gravidade pela composição expressiva da música que preenche o plano. Mihály Víg, que procura desde Almanaque de Outono o "silêncio essencial" no cinema tarriano, é responsável por tecer através dos sons e repetições minimais parte desta textura sensível, antecedendo a experiência de tal modo que a banda sonora de rodagem são as suas melodias que, na pungente expressão da sua dor, pontuam o ritmo e a coreografia câmara-luz-corpos. Reagimos sobre os corpos cansados e bêbedos que, por seu lado, se deixam representar por corpos cansados e bêbedos; no fundo, aquilo a que o autor chama de "personalidades", onde o ator se toma personagem porque experiência algo que lhe acontece no momento, que lhe é familiar e plenamente concebível.

Na mesma medida, o tempo, que poderíamos casar com a demanda espiritualizada de Tarkovsky, não existe em si nos filmes de Béla Tarr, mas apenas na relação direta com as restantes texturas sensíveis, protagonizando a malha da estrutura dramática da obra. Da narrativa de László Krasznahorkai, Jacques Rancière escreve que Tarr extrai "do guião, gerador de potência, situações que duram", e também rompe "com a circularidade do guião para devolver todas as suas forças às linhas rectas, às linhas positivas de fuga em frente, na perseguição de uma sombra, em torno das quais este encerra a sua lógica niilista".

Embora possamos ver esta sequência, bem como a restante estrutura deste conto filmado (onde a chegada de uma baleia gigante e de um príncipe levam à fatal divisão e autodestruição de uma comunidade), como um deslocamento do real rumo ao fantástico, o cineasta não cessa de asseverar a ausência da alegoria. Tratam-se de episódios humanos, que são ao mesmo tempo momentos sensíveis, que se propõem a afetar a experiência do espectador, que é sempre o primeiro olho. Esta certeza, aliás muito clara, determina aquilo que Tarr antecipa e oculta com os enquadramentos que transforma, preocupado em medir as intensidades que jogam em cena (com a sequência de gestos, palavras e relações) para nos deixar em desarme.

A indiferença espectatorial não pode morar no cinema quando reconhecemos o desejo de destruição, apelado pelo príncipe, ou de monstruosidade e divindade, com a presença da baleia (elemento contraditório, que pode também estar na raiz do mal qual Moby Dick). A paralisadora sequência do saque no hospital, que choca a inocência do protagonista que entretanto acabará por enlouquecer, parece atrair a ideia de que o esforço de lutarmos contra o tempo (o vazio do quotidiano) é inútil: com a chegada ao indefeso nu que surge com as costelas salientes como uma múmia, escorre a verdade de que é impraticável (não apenas intolerável) fazer ainda mais mal.


Talvez à luz de todos os esforços que encontramos no cinema de Tarr, Jacques Rancière escreve que este levantamento popular, que compara no início a cadência e indiferença dos passos e rostos dos homens à saída de um metro à hora de ponta, "terá sido isto: um movimento em frente, um crescendo e um lento movimento de recolha, em que a multidão se dispersa silenciosamente em indivíduos, sem que nenhum grito se tenha feito ouvir, nenhuma paixão se tenha expressado." Trata-se de uma reação desiludida à promessa que sobrevoou pela comunidade e que confessa: nunca escaparemos à ditadura do tempo.

Como acontece com o sentimento sebastianista ou católico, os filmes de Béla Tarr escrevem-se sobre o espectro da espera de profetas, messias, visionários que consigam fazer acreditar numa mudança e concluem-se com a revelação da burla, da idiotia e da loucura. O vazio hospeda-se na profundidade de campo, eternizando as suas personagens no "tempo do depois", aquele que "não é o tempo uniforme e soturno daqueles que já não acreditam em nada" (como variadas vezes O Cavalo de Turim foi exposto), mas "o tempo dos acontecimentos materiais puros aos quais se opõe a crença enquanto a vida a carregar".

Pai e filha, na condição final de comedores de batatas, fazem perceber que as histórias serão sempre as mesmas e que o fim do mundo e a morte são apenas a paisagem por onde caminhamos, entre o vento e a miséria, esforçados pela manhã por vir. No seu silêncio "está ainda a raiva intacta do cineasta contra aqueles que dão aos homens e aos cavalos uma vida humilhada". Mas é preciso comer, é preciso continuar a participar no quotidiano até que a morte se imponha e é preciso continuar a acreditar no futuro do cinema, ou "não estaria a perder o tempo com 15 alunos". Afinal, aquele que seria o testamento é antes uma cerimónia, que reserva na alma o poder de nos agredir para enfim provocar a esperança, seu maior motor, dizendo que "o círculo fechado está sempre aberto". Assim o cinema responde à vida, por si suficiente para nos enfraquecer.

Este texto foi publicado no suplemento QI, do Diário de Notícias, no dia 14 de dezembro de 2013.

sexta-feira, novembro 29, 2013

Adèle

Ver este rosto – o que é que ele me diz?, como aconteceu colocar-se a câmara ali, naquele instante em que Adèle decide (com o penteado, aquela luz) devolver, como se a examinasse com tardia curiosidade infantil, um olhar que posa encantamento, hipnose e fantasia de marinheiro e sereia? A lição que Kechiche-Adèle-Seydoux nos dão: para que o copo de cinema transborde com vida é preciso ir para além de pensamentos separados de mise-en-scène (posição da câmara, distâncias, enquadramento sobre determinado espaço e personagem) e então criar um fluxo e uma relação de perfeita adaptação... com o invisível (as emoções e o mundo interior daquela pessoa). A Vida de Adèle segue logo esta premissa mantendo o filme num tom de naturalismo que nos chega e é confortável, quente, luminoso. O que importa é a superação da própria imitação da vida: não basta chorar, é preciso que Adèle, na fase da violação da virgindade adolescente sobre o mundo, coma um chocolate enquanto chora; não basta comer, é preciso que Adèle deixe o molho sujar-lhe a boca – tudo para que tudo (a)pareça de tal modo familiar que nos deixemos aprisionar naquele sistema de fusão entre olhar (o de Kechiche) e ação (o das personagens, tratadas com um respeito esmagador). Dá-me impressão que o primeiro capítulo (a escola, a família e a descoberta são espaços de magníficos detalhes) se impõe sobre o segundo (o desmoronar melodramático, que apressa o fim da relação e que parece confundir as missões de imitação da vida versus tratar o destino desta personagem). Mas trata-se de um filme que quer mais esquecer o cinema para o entregar a um humanismo elevado (o grande plano, que domina, é um olhar satélite sobre o corpo da mulher, que o cobre, por vezes por inteiro como no caso da cena em cima ilustrada) e a um objetivo de procura do “belo” naquilo que há de mais profundamente mundano – a nossa paixão, ou as dúvidas, nascem disto.

terça-feira, setembro 24, 2013

A dança dos fantasmas no corredor da morte



Como uma premonição, ou então como grave constatação de que a noite nos espera e que o futuro será sempre uma incerteza, Gus Van Sant abre a sua obra-prima com o anoitecer melancólico de um céu verde e que obceca; do fora de campo ouvimos sons de uma bola que bate, gritos e risos. Ficamos no final com uma pequena luz do lampião que se desune do negrume do céu – assim terminará a nossa experiência de Elephant, não importa o número de vezes da revisita, pois ficaremos apenas com uma ponta desdobrada sobre uma tragédia maior que nos cobre e que não podemos decifrar. Uma década após ter recebido a Palma de Ouro e prémio de melhor realizador na edição de 2003 do Festival de Cannes, importa perceber os seus ecos no presente e celebrar as feridas profundas que este filme de dimensão meteórica ainda inflige no nosso espírito.

A ideia de rodar um projeto num liceu norte-americano surgiu num momento muito específico na linha da carreira de Gus Van Sant, na sucessão dos acontecimentos que ocupavam o pensamento dos norte-americanos e no contexto cinematográfico vivido no início deste século. Estamos de facto perante uma sombra de uma tragédia – foi a 20 de abril de 1999 que Eric e Dylan, dois estudantes de Columbine (no Colorado), irromperam pelo liceu e assassinaram a tiro 12 colegas e um professor, acabando por ferir 21 pessoas e, enfim, cometer suicídio. O massacre aterrorizou e confundiu o coração dos Estados Unidos, como se tivesse ocorrido uma espécie de contradição social, os norte-americanos olharam-se para o espelho e para a sua cultura das armas, políticas de educação e até influência dos videojogos. Dois anos depois, com o 11 de Setembro, os olhos regressaram para os inimigos estrangeiros esquecendo porventura como o “there’s no place like home” tinha sido pervertido a um estado até então ainda não concebido.

Em 2002, Michael Moore seria alvo de ataque com Bowling for Columbine, filme onde desenhou um ponto de vista firme e violento sobre a obsessão pelas armas e pela história do terror num país aprisionado pelo ideal de proteção. Um ano passado explodiu Elephant, filme que se cruza com Michael Moore e se ajusta no extremo oposto na linha do espectro. Se os dedos estavam apontados para um certo facilitismo desequilibrado com que Moore se debruçava sobre as questões basilares da cultura norte-americana que outorgou a existência do massacre, com Gus Van Sant a história era outra – o filme surgiu para muitos como uma deambulação irresponsável pelos acontecimentos de um tiroteio, sem dar respostas ao “porquê” infinito que martela o filme até o seu fim.

Ao mesmo tempo, olhou com determinação para os mecanismos de manipulação mediática do pensamento: há um momento agitante em que os assassinos do filme, dois rapazes chamados Alex e Eric, veem na televisão um documentário que incide, no tempo do plano, sobre as técnicas da propaganda nazi e os realizadores que trabalharam ao serviço de Hitler (eis o gesto estético do poder político). Por cima da televisão, fora de casa, vemos uma carrinha que chega para entregar as armas de fogo que utilizarão para mais tarde apagar a vida às pessoas do liceu. Descortina-se assim a dimensão moral da história do mal de Gus Van Sant porque afinal o que predomina em Elephant não será tanto a incriminada carência de ponto de vista (necessária nos dispositivos da televisão, por exemplo) mas antes o afastamento da resposta, o culto da dúvida e do mistério e o aparecimento de uma nova sensibilidade humanista com que a sua câmara ilumina as personagens que confrontarão a morte.


O filme, afinal, nasce do próprio questionamento – o título é emprestado da curta-metragem homónima produzida por Danny Boyle e com a qual o realizador inglês Alan Clarke perseguiu, num estilo minimalista concentrado no poder do travelling (que também serviu de base formal para Gus Van Sant), o assassinato de 18 pessoas na Irlanda do Norte sobre as quais nada sabemos. A expressão vem do escritor de Belfast Bernard MacLaverty que, num livro para crianças em 1978, falou num “elephant in the room” – o problema com o qual convivemos mas nada fazemos. O que moveu, no entanto, o realizador norte-americano foi antes uma parábola budista que fala num grupo de cegos que examinam partes de um elefante sem contudo ter a noção do todo – como o problema maior reservado no seu filme, onde todo o mundo cabe sem termos disso a percepção do absoluto.

Esta aventura foi reservada para uma ideia de telefilme, como aliás é o filme de Clarke, que fez com que Gus Van Sant pedisse ao canal de cabo norte-americano HBO para produzir Elephant (uma estratégia que hoje se torna cada vez menos incomum, vejamos o exemplo de Steven Soderbergh e o seu recente Por Detrás do Candelabro, rejeitado pelos grandes estúdios e filmado praticamente com as mesmas condições através de financiamento deste canal). Os caminhos de Gus Van Sant tornavam-se cada vez mais inexplicáveis – estamos, afinal, perante um autor que, após ter realizado em 1999 O Bom Rebelde, filme de grande êxito popular que batalhou pelo Óscar de melhor filme, decidiu metamorfosear-se longe do mainstream e em direção àquilo que do outro lado do oceano se considera reservado a pequenos nichos de público. Na verdade, as possibilidades de laços e diálogos entre filmes da sua carreira são mais do que os pontos que os separam – desde o princípio dos anos 80, das suas curtas experimentais, que Gus Van Sant tem trabalhado prementemente uma renovação formal que não se esclarece, à procura no entanto das mesmas imagens.

A mais forte delas será a estrada – de onde saímos a preto e branco de Mala Noche (82), adormecemos em A Caminho de Idaho, nos despedimos em O Bom Rebelde e arrancamos em Gerry para seguirmos enfim os labirintos do fantasma de Kurt Cobain em Last Days – Últimos Dias (2005) ou os corredores da escola em Elephant. Gus Van Sant descobriu-os na Adams High School, escola pública em Portland (Oregon), cidade onde nasceu, cresceu e observou de muito perto as pessoas que viriam a formar o seu futuro. Esta escola inaugurada em 1969 acabaria por ser demolida em 2007, ano em que o realizador lança Paranoid Park (que podemos ver como um compêndio sensível sobre a sua visão do universo adolescente).

Foi aqui que a equipa do filme dirigiu dezenas de rapazes e raparigas jovens para recriar a atmosfera de um dia típico de liceu norte-americano. A decisão de Gus Van Sant partiu em seguir o mesmo fluxo de Gerry, dedicado a Béla Tarr, e montar uma cosmovisão sobre a juventude, verdadeira protagonista do filme. Tal como O Tango de Satanás (monumento que Tarr estreou em 1994), que é estruturado ao sabor de um tango (seis passos para a frente, seis para trás), o movimento de Elephant faz-se também com doze personagens apresentadas em cartões diferentes. Nada, aparentemente, representam – o filme parte do princípio ético de que um grupo ou comunidade, como Gus Van Sant filma até o seu último título Terra Prometida (2012), deve ser visto em toda a sua especificidade, captando então todas as suas promessas e contradições.

Ao mesmo tempo, aparecem-nos como sinais de estereótipos – reconhecemos as três raparigas que coscuvilham e se maltratam dos banais college movies que preenchem as tardes de fim-de-semana das nossas televisões, reconhecemos o tipo popular, a miúda feia que prefere a biblioteca e que é troçada pelas colegas, etc., e este gesto de criação tem em si um movimento que comporta o cómico e o trágico, o popular e o tecido mais profundo de uma só existência. O sentido de justeza do ponto de vista não persegue um tipo de naturalismo vulgar, antes a verdade de cada corpo. É por isto que Gus Van Sant aposta na integração documental do real com a criação de um eu-ficcionado (muitos atores interpretam personagens homónimas) e recoloca a câmara ao nível do olhar de cada pessoa, perseguindo-a como um espião ou então como um voyeur fascinado pelas determinações da sua vida (neste sentido, Elias, o fotógrafo, é uma espécie de alter-ego de Gus Van Sant – com a sua câmara habituada aos rostos dos desconhecidos ele acaba por paralisar a morte antes do seu próprio desaparecimento).


Como na pintura de René Magritte La reproduction interdite, o nosso espelho é o nosso próprio desencontro – e daqueles alunos acedemos às suas caminhadas pelos corredores da morte de costas voltadas, insensíveis à presença do espectador que, por sua vez, se angustia com a impotência da sua posição (não, nunca poderemos salvar aqueles que morrem eternamente no grande ecrã). O olhar de Gus Van Sant é, à maneira de Pasolini, “subjetivo indireto livre”, transformando as formas de imagem e de som de acordo com a percepção (individual, subjetiva) de cada personagem. Assim cria os momentos mais vibrantemente poéticos do filme, situando-se como uma entidade fantasmática que assombra o destino, os caminhos que se cruzam em direção a um fim trágico coletivo.

Tudo faz parte de uma ordem invisível, que pertence ao acaso, elegantemente decidida pelos jogos de repetições e de baralhamentos (e manipulação) de tempos que compõem Elephant como um musical do cosmos. É comum o sentimento constante de dejá-vu que percorre a nossa experiência e, ao mesmo tempo, também a sensação de nada vimos e percebemos – como é que um simples momento de um colega (Elias) que fotografa o que para si posa (John) e que se cruza com uma rapariga que corre na altura em que a campainha da escola se faz notar (Michelle) cria tantas ramificações em direção ao futuro e a eternos retornos? Na montagem, da qual Gus Van Sant foi o responsável, o tempo não só é controlado dentro do plano como se despedaça e multiplica com uma vontade que ultrapassa as fronteiras do documentário e da ficção – mais do que tudo, o que se busca é a luz que imana daquelas pessoas, filmando-lhes a aura, acariciando as suas vidas e despedindo-se do seu presente.


Harry Savides, diretor de fotografia que morreu em 2012 e a quem Sofia Coppola lhe dedicou a última colaboração (Bling Ring, também vislumbre de uma adolescência e presente), parece trabalhar a luz de acordo uma demanda muito misteriosa de cobrir para depois iluminar (as janelas que atravessam os corredores assim o permitem), o mesmo acontecendo com as cores (na cena em que conhecemos Benny, o salvador que irá ser depois morto, comovem-nos os elementos da sua presença de anjo caído: o amarelo da T-Shirt, o azul que encharca o corredor, o negro da pele...), e com os travellings tão suaves de steadycam, que flutuam sobre as personagens como um fantasma e que criam uma ideia de fluxo que participa numa grande dança do horror.

A ideia é emprestada do génio de Stanley Kubrick por quem Gus Van Sant é apaixonado. O deslize e a assombração vêm de Shining, como aliás remete imediatamente a primeira cena da viagem de carro do pai e do filho (para a primeira do filme de 1980). Ao mesmo tempo, a mudança de ponto de vista acontece sem quebrar uma linha de espaço e tempo que se casam, vide a cena da Aliança Hetero-Gay onde se pergunta como é que um homossexual se pode distinguir de um heterossexual: a câmara filma em 180 graus entre este, esta, aquele e aquela, sem determinar uma orientação mas desenhando a possibilidade da superação da diferença no caminho dirigido à magia do afecto. Há de facto a estima humanista pelos cruzamentos – filma-se um beijo simples, confinado numa sala de estilo soviético e num plano desolador, entre John e Acadia como se o fim do mundo estivesse demasiado próximo (tal como se dá o primeiro beijo envergonhado dos assassinos que se unem antes do seu próprio final).

Ao mesmo tempo, a emancipação fantasmática da câmara faz flirt com o documentário e permite-nos perder as personagens para as reencontrar depois de outras passagens por outras (na cena da cantina, por exemplo, em que nos despedimos momentaneamente das raparigas para seguir os cozinheiros que escapam para fumar um charro), dizendo-nos contudo que este é um filme longe de um registo realista. O modo como Gus Van Sant, aliado a Leslie Shatz (designer de som), trabalha o filme do outro lado do visível abre-nos às outras pontas do elefante. Como diria Godard sobre o travelling, o som é também uma questão de moral – tudo é construído em filigranas evitando a solução naturalista de recriação de atmosferas e adaptando-se ao espírito da cena dominada pela personagem. No travelling em que acompanhamos o fotógrafo pela escola adentro até a sua sala de trabalho, os sons em redor compõem-se com conjugação com música de improviso para se “apagarem” no cumprimento de uma colega, jogando entre o alienamento e a consciência do real.

É também frequente ouvirmos as vozes entubadas e sentirmo-nos numa espécie de túnel que hipnotiza, com a atenção concentrada frequentemente naquele que ouve e recebe e não naquele que comunica (que se fica muitas vezes pelo fora de campo, como é a presença dos adultos neste filme). Gus Van Sant casa o adeus melancólico das sequências com Beethoven com a electrónica de Frances White, ou então a frieza do tiroteio com a leveza enfeitiçadora da água, do choro das portas que abrem e fecham ou dos pássaros-fantasma que irrompem o plano, desenhando uma mise-en-scène do fora de campo dominada pela precisão e por uma caminhada que é uma aventura entre o real e a consciência.


Até o fim do filme veremos uma única vez um elefante – está desenhado no quarto de Alex perto do piano onde toca a Sonata ao Luar, passa por nós despercebido e leva-nos a um estado de fascínio por aquele que, vivendo como todos os outros colegas, acabará por tirar a vida ao outro. Há uma vontade de morte que predomina em Elephant – a vida quer-se experimentar como um videojogo, e é curioso que no computador se jogue GerryCount, onde vemos os dois Gerry do filme anterior de Gus Van Sant a serem perpetuamente assassinados e renascidos no deserto vazio. Ao mesmo tempo é neste jogo que confrontamos o horror inalterável do cinema: estamos perante uma ilusão da caverna cristalizada e encontramos a possibilidade de uma redenção – se a vida é tão difícil (e tragicamente leve) por que não escapamos da morte? (Porque é preciso o cinema para recuperar a vida.)

“O mais importante: diverte-te”, diz-se antes da partida para o matadouro, na qual saboreamos o tempo de uma serenidade calada que pesa e assusta, a mesma da primeira viagem, onde o pai, bêbedo, leva o filho à escola à espera de uma breve aproximação entre ambos (“vamos caçar”, sugere envergonhadamente o pai, tentando seduzi-lo com as especificidades das armas). No final do filme regressam as pinturas com o tempo e as nuvens que passam, a noite que desaparece e dá lugar a novas viagens – sentimos falta daqueles que perdemos cedo demais na composição derradeira daqueles jardins, corredores e salas, sentimos falta dos gritos e da bola que bate, do cão que salta. Sentimos falta da música.

Este texto foi publicado no suplemento QI, do Diário de Notícias, no dia 21 de setembro de 2013.

segunda-feira, abril 01, 2013

Onde estás, Gus Van Sant?


Podiam vir do mesmo filme mas não – este campo / contra-campo faz-se entre dois filmes: o primeiro, Paranoid Park, o segundo, Promised Land (ou Terra Prometida), que se estreou em Portugal há poucos dias. O primeiro rejeita, com uma força ferozmente adolescente, a presença do adulto (lembram-se dos pais “cortados” do enquadramento?); o segundo debruça-se sobre os labirintos de uma comunidade envelhecida pelo peso do trabalho no campo, vendo aqueles que “estão por vir como adultos” com um olhar complacente, carregado de um discurso muito político que nos parece dizer: “temos de tomar as melhores decisões porque... eles são o futuro.” 

Gus Van Sant atira-se ao projeto de Matt Damon (que não dirigiu por questões de agenda) sem querer comprometer os valores neoclássicos que Terra Prometida quer recuperar (através de um argumento e produção trancadíssimos) – e, ainda assim, tenta exibir-se pela forma como se nos quisesse provar que ainda é o realizador deste filme. O resultado? Um objeto quase desprovido de personalidade que no entanto me cativa pelo sentido de comunidade e, por conseguinte, pela pulsão humanista que aqui transpira. 

A realização agarra-se aos atores (refiro-me em especial a Matt Damon e à sua colega Frances McDormand) com fundamentada fé: quer dizer, Terra Prometida subsiste da intensidade da sua presença. E aqui reside o enigma do filme e, talvez, de todos os filmes de Gus Van Sant que não consigo deixar de amar – o modo luminoso como ele filma as pessoas, posicionando-se de frente ao seu olhar, procurando alguma espécie de revelação e encontrar dentro dele alguma coisa que nos leve para o infinito. 

Terra Prometida quer ser mais do que apenas isto (“apenas isto” levou-o a criar Elephant, que em 2013 comemora o 10.º aniversário), conduzindo-nos, aqui sim de forma desajeitada, às enfadonhas dinâmicas de Matt Damon e John Krasinski (também argumentistas) ou de Damon / Rosemarie DeWitt, entre os quais nunca sentimos o esboço de uma relação de amor, antes um encargo narrativo que deve ser ilustrado pela realização... E mesmo Hal Holbrook parece servir mecanicamente o drama como a “voz da sabedoria e da ponderação” (como, curiosamente, O Bom Rebelde...) E tudo isto é triste – entre todos eles existe alguém chamado Gus Van Sant como nome menor. Dele teremos mais, é essa a nossa felicidade.

terça-feira, fevereiro 19, 2013

Das trevas para as trevas

É tempo de rever A Rede Social – já chegou aquela altura em que a televisão portuguesa o reduziu, com todos os seus delicados intervalos e gosto de programação, como “um filme de sábado à tarde” (foi na SIC, no passado dia 16). Confesso o meu desapontamento quando estreou por cá, ao lado de uma estranha euforia, precisamente alastrada no Facebook, que andava de mão dada com a felicidade de termos um filme – ainda para mais “controverso” (Mark Zuckerberg expressou o descontentamento com o facto de dramatizarem a própria vida) – sobre as origens míticas da rede que prende o planeta do outro lado do ecrã. Enfim, nada nos impede de “corrigir”, mais tarde, as nossas percepções sobre um determinado objeto – foi o que precisamente aconteceu comigo com este filme que, de qualquer modo, chegou seguramente fora do seu tempo (algumas reações mornas davam conta de um filme asséptico, apenas sobre nerds). 

A Rede Social não só me parece como um dos melhores que David Fincher nos deu como, sobretudo, como um desses objetos que nos lançam para o abismo da virtualidade do nosso real. Quer isto dizer que funciona perfeitamente como um espelho do mundo das trevas “deste lado” dos espectadores – “das trevas para as trevas”, exatamente como Cormac McCarthy escreveu em Nas Trevas Exteriores (Outer Dark). No mesmo livro, uma personagem feminina diz que “não há uma alma neste mundo que não seja um estranho pra mim” – eis a evidência trágica, escrita há quase 50 anos atrás, que nos leva diretamente para o universo de A Rede Social, universo de triste solidão (a do protagonista) e de dois desejos muito humanos e que pouco ou nada terão a ver com computadores: de nos sentirmos próximos do outro e de consagrarmos, com toda a nossa sede de poder, uma identidade (a nossa). A partir da construção de uma timeline (a nossa linha da vida que existe “daquele lado” do ecrã), dos nossos gestos virtuais (o like, uma partilha, um estado de relacionamento) que vão definindo o nosso próprio mundo. Como nos mostrou Fincher, hoje não somos mais que um algoritmo escrito temporariamente num vidro.

David Fincher, afinal, quebra-nos em dois desde logo na cena da abertura: o medo dos silêncios, o vertigo para o qual os diálogos, mas sobretudo a montagem, nos atira, os diálogos que são debitados – eis o computador (o protagonista) e eis a pessoa que ele não é (nunca será) e com que ele anseia compreender e ficar (a rapariga, Rooney Mara, que abandonamos, mais tarde e pela última vez, numa imagem em que termina de costas – também nós queremos estar com ela, como se fosse o sinal final da realidade-realidade-realidade que escoa neste filme). Parece-me igualmente brilhante o confronto climático, nos escritórios do Facebook, entre Eduardo e Mark – onde se configura uma batalha entre os últimos sinais de uma amizade, e assim de uma humanidade, e a barbaridade tão calculável, precisa e implacável do dinheiro (o mesmo, afinal, tentou Soderbergh filmar em Magic Mike). 

Ao longo do filme, “a rede social” é percebida na teia de peões (de personagens) de um jogo maior – jogo de computador, como Rooney Mara diz. Aquelas personagens vivem até ao fim na euforia de se encontrarem “do outro lado”. Que é como quem diz: no desejo de se encontrarem para fazer share / partilha de algo essencial ao Facebook e à nossa vida. A solidão, precisamente.