Entramos, como na carroça arrastada a custo pelo cavalo, na rota em direção a um buraco negro do qual sabemos que não iremos regressar. Queremos seguir a estrela que desapareceu e foi nessa condição que Béla Tarr, mestre de 58 anos (e reformado) húngaro do cinema contemporâneo, chegou a Lisboa sem disposição para falar sobre o efeito amargo de
O Cavalo de Turim mas, partindo do "bonito conto de fadas romântico" que considera ser
As Harmonias de Werckmeister, trazer consigo desejo de persistência e de eterna revolução sobre o confronto com a vida e o futuro dos filmes deste tempo.
Foi um dos primeiros convidados para a
recém-estreada ronda de sessões pensadas por Haden Guest, diretor do Harvard Film Archive, e pelo cineasta Joaquim Sapinho. O gesto cruza-o, subtilmente, com a liberdade radical da obra de António Reis e ajuda ainda a completar o círculo de interesse crescente em Portugal, originário de várias grandes paixões, sobre a filmografia de Tarr. Foi já muito depois de uma retrospetiva do realizador numa das primeiras edições do festival de cinema de Tróia que, pela primeira vez, um filme seu era estreado comercialmente (o último dos últimos) e era lançado, também pela Midas Filmes, o primeiro volume em DVD da obra. Estão ali os filmes da viragem dos anos 80 para o futuro e da fase da plena maturidade e vitalidade do autor (
Danação, de 1988,
O Tango de Satanás, 1994,
As Harmonias de Werckmeister, 2000, e
O Cavalo de Turim, que em 2011 venceu o Urso de Prata no Festival de Berlim), comummente separados da fúria do realizador enquanto jovem, que quer, transportando a câmara consigo, "lutar contra o sistema" (esse segundo volume de títulos chegará no próximo ano). Lançado recentemente, um magnífico breve
ensaio escrito pelo pensador francês Jacques Rancière, traduzido por Luís Lima para a editora Orfeu Negro, leva-nos agora a descobrir aquele que é o "tempo do depois" em Béla Tarr, um dos conceitos sobre os quais se debruça numa visão de aventureiro sensível que quer superar a linha do horizonte do seu cinema.
"Depois do sexto dia, Deus criou a merda onde estamos", disse Béla Tarr, que se aprontou em esclarecer que "não há apocalipse" n'O Cavalo de Turim - o monstro que acompanhou a corrente amedrontada de filmes escatológicos dos anos mais recentes, de Roland Emmerich a Lars Von Trier - e que reduziu a estrutura dramática ao seu ponto mais elementar: um pai, uma filha e o cavalo com que Nietzsche chorou antes da loucura, em seis dias que os obscurecem por aquilo que Rancière chama de "promessa falhada", ideia que unifica o conjunto de filmes sociais e metafísicos.
A justeza com que, em 30 longos planos-sequência, a câmara de Béla Tarr filma com as formas materiais aquilo que nos aparece como uma ópera leva-nos também a elevá-lo como um dos poucos ascetas da imagem cinematográfica. Mais do que todos os restantes filmes da sua maioridade, preocupados no início com "as alvoradas capitalistas desencantadas" em território corrompido pela promessa do comunismo, O Cavalo de Turim evidencia um domínio total sobre as formas que concretizam o pessimismo necessário do realizador, que começa por recusar o corte e "fazer a montagem no próprio plano". As razões, diz-nos sem aprofundar muito, são pessoais: a montagem é um solitário aborrecimento e assim está mais próximo dos seus mais valiosos parceiros espirituais (como Ágnes Hranitzky, sua companheira, correalizadora e montadora; o romancista László Krasznahorkai, responsável pela escrita do argumento; ou Mihály Víg, compositor).
Em profundidade, descobrimos também o tempo cristalizado como agente que participa na construção do ponto de vista do cineasta que, avisa, está mais interessado no "entendimento sobre o mundo" que nasce da relação dos sentimentos com a concretude dos elementos materiais (um prato, uma lamparina, uma anti-Bíblia). Na verdade, e servindo-se do seu próprio realismo, o seu objetivo mais claro é transfigurá-lo num estilo que seja uma provocação, tão derrotada como revoltada, frente aos mistérios essenciais e ao "insustentável peso da vida". Aquilo que chamámos de estilo não pretende resultar da criação de simples planos polidos ou ornamentados mas antes, relembra Rancière, ser essa "maneira absoluta de ver" que Flaubert reivindicava sobre a forma literária. Será por isso que, longe da tarefa do romancista, o cineasta deve ver (ou dar a ver) esse embate único com o universo.
O arranque d'O Cavalo de Turim, que aparece seguido de uma narração em fora de campo, é pleno de relações sensíveis em toda a sua duração: a câmara viaja em
travelling entre o homem, a carroça, o cavalo e o caminho que descrevem juntos, na sua impiedosa singularidade e presença, enfrentando uma imensa rajada de pó e folhas, expressão natural dos obstáculos e das dificuldades daquele movimento. Mais do que os elementos do real, é precisamente a escolha dessa matéria que faz descobrir a ficção que há por detrás de cada ponto de vista.
O maravilhamento sobre esta sequência decorre, também por isso, da pujança e perfecionismo do realizador na composição do espaço e do enquadramento. Na verdade, Tarr é um homem que raramente gosta de ser contrariado em rodagem - o francês Jean-Marc Lamoure, que teve o privilégio de registar de perto as filmagens do seu filme-testamento, apresentou este ano no Doclisboa com Tarr Béla, I Used to Be a Filmmaker um testemunho da ética de trabalho do húngaro. Diz-nos, a dado momento, que o cinema é como "um sistema feudal" onde se reúnem "animais de espécies diferentes", esclarecendo assim que "na arte não há democracia".
Desta crença advirá toda a organização acometida n'O Cavalo de Turim, onde se construiu de raiz uma casa, o estábulo e o poço - a fé no artificio leva-nos a pensar no palco de uma peça de teatro ou nas complexas operações do cinema de Hollywood. Lamoure chega a registar, num enquadramento distante pronto a desconstruir a ilusão da imagem, o impressionante momento em que todo o plano de abertura é filmado: um helicóptero aligeira-se perto do chão para fazer levantar o pó e as folhas e a velha carroça é seguida por uma câmara enorme, apoiada numa espécie de grua conduzida.
É este também o peso da máquina-cinema em relação com a qual o Estado é indiferente. É uma das razões pelas quais nos devemos sentir solidários com a demanda revoltada de Béla Tarr, que se opôs com veemência à reforma presente da gestão estatal do cinema húngaro protagonizada pelo produtor vindo dos
blockbusters norte-americanos Andrew Vajna. "O cinema húngaro está a morrer", avisou o realizador
em entrevista ao Ípsilon no ano passado, "as estruturas foram desmanteladas e o novo modelo quer decalcar o método hollywoodiano".
A questão da nacionalidade, no entanto, ninguém a tira: não obstante o corte com um país que o atraiçoou (a escola de cinema que hoje dirige foi fundada na Croácia), Béla Tarr, sem orgulho mas sem pesar, diz: "Sou húngaro." É com o peso da própria História que atenta nas paisagens pobres mas "muito, muito humanas" dos trilhos do interior do país que servem de espaço secreto para os ambientes do seu cinema. O autor desde cedo viu o percurso do presente ser interrompido pelas forças do poder que o superam - o desejo de vir a estudar Filosofia, por exemplo, não foi concedido como castigo pelo facto de ter denunciado, com 16 anos, uma câmara de 8mm e uma enorme vitalidade juvenil, o modo de vida do operariado do país e daí a câmara surgiu como instrumento indispensável da própria relação com as pessoas. Perdeu-se, na evolução dos seus filmes, a ânsia da compreensão sobre o espectro político e começou a vencer uma cosmovisão ainda mais fundamental e universal.
Jacques Rancière aponta Almanaque de Outono (1984) como um ponto de viragem na . sua carreira, à qual se acrescenta a adaptação para televisão de Macbeth (1982), que filmou em apenas dois planos. As cores radicalmente artificiais e antinaturalistas da longa-metragem (o azul e a trovoada) virão a ser desconsideradas mais tarde na invenção "de uma gama de cinzentos suficientemente rica" com a qual Tarr decidirá pintar os restantes títulos, considerando ainda a película como eterno material de trabalho, opondo-a recentemente ao digital ("não digam que são 'filmes', chamem-lhe outra coisa").
Neste território e a partir desta linha de tons, começa a delinear-se o lado eminentemente pictórico que atravessa o cinema de Béla Tarr. Como com Caravaggio, o desenho da luz dura nos filmes, que definem com clareza as zonas de luz e de sombra, é em si um artifício que exprime dados realistas ao fazer revelar a densidade absoluta dos corpos das pessoas que filma, movimentados e posicionados por uma força que nada empresta às técnicas naturalistas convencionais. A figura do pai em O Cavalo de Turim assume, a certa altura, a imagem da Lamentação do Cristo Morto de Andrea Mantegna e mesmo a sua refeição com a filha conduzem-nos a Os Comedores de Batatas de Van Gogh, raccords que Tarr assumiu na sua visita a Lisboa: "Quis colocar tudo aquilo de que gosto."
"Tudo" é sobretudo aquilo que toma parte na reflexão sobre o destino do homem, visto aqui em toda a sua absurda circularidade: "Adquirir, degradar, adquirir, degradar", repete a personagem do bêbedo, contornando as palavras como a roda da carroça e a ordem da rotina familiar que não cessa de, como no mito do Sísifo, continuar a deixar cair a rocha até ao fundo da montanha. O próprio desejo da duração dentro do plano perpetua este inalterável sentimento de eterno retomo que experimentamos com estranho terror, mas deixa também antever as fantásticas alterações do real através do movimento entre o olhar, os corpos e luz que os banha.
A primeira sequência d'As Harmonias de Werckmeister, que filma num bar um grupo de bêbedos que representam o movimento dos planetas e o fenómeno do eclipse sob o comando do protagonista-vidente sobre o qual ronda esta fábula, abre-nos a porta para uma "uma composição desses cristais de tempo onde concentra a pressão cósmica" - como em qualquer outra cena sua, em Tarr o sensível sobrepõe-se como valor superlativo ao visível e ao empreendimento narrativo tradicional. Disso não decorre uma espécie oca de formalismo mas um reajustamento do real que serve as ânsias interiores do corpo humano que o ocupa um princípio ético, sem dúvida, que marcou o modo de pensar as imagens "do outro lado" do cinema quando pensamos, por exemplo, na obra de Gus Van Sant na viragem do milénio.
Apresentado por inteiro e sem contaminação da subjetividade do herói, a dança dos bêbedos demonstra essa "circulação dos afetos" que domina O Cavalo de Turim e dá um salto para uma medida maior do que o próprio filme, o cósmico focalizado no mundano, que também sentimos em toda a sua gravidade pela composição expressiva da música que preenche o plano. Mihály Víg, que procura desde Almanaque de Outono o "silêncio essencial" no cinema tarriano, é responsável por tecer através dos sons e repetições minimais parte desta textura sensível, antecedendo a experiência de tal modo que a banda sonora de rodagem são as suas melodias que, na pungente expressão da sua dor, pontuam o ritmo e a coreografia câmara-luz-corpos. Reagimos sobre os corpos cansados e bêbedos que, por seu lado, se deixam representar por corpos cansados e bêbedos; no fundo, aquilo a que o autor chama de "personalidades", onde o ator se toma personagem porque experiência algo que lhe acontece no momento, que lhe é familiar e plenamente concebível.
Na mesma medida, o tempo, que poderíamos casar com a demanda espiritualizada de Tarkovsky, não existe em si nos filmes de Béla Tarr, mas apenas na relação direta com as restantes texturas sensíveis, protagonizando a malha da estrutura dramática da obra. Da narrativa de László Krasznahorkai, Jacques Rancière escreve que Tarr extrai "do guião, gerador de potência, situações que duram", e também rompe "com a circularidade do guião para devolver todas as suas forças às linhas rectas, às linhas positivas de fuga em frente, na perseguição de uma sombra, em torno das quais este encerra a sua lógica niilista".
Embora possamos ver esta sequência, bem como a restante estrutura deste conto filmado (onde a chegada de uma baleia gigante e de um príncipe levam à fatal divisão e autodestruição de uma comunidade), como um deslocamento do real rumo ao fantástico, o cineasta não cessa de asseverar a ausência da alegoria. Tratam-se de episódios humanos, que são ao mesmo tempo momentos sensíveis, que se propõem a afetar a experiência do espectador, que é sempre o primeiro olho. Esta certeza, aliás muito clara, determina aquilo que Tarr antecipa e oculta com os enquadramentos que transforma, preocupado em medir as intensidades que jogam em cena (com a sequência de gestos, palavras e relações) para nos deixar em desarme.
A indiferença espectatorial não pode morar no cinema quando reconhecemos o desejo de destruição, apelado pelo príncipe, ou de monstruosidade e divindade, com a presença da baleia (elemento contraditório, que pode também estar na raiz do mal qual Moby Dick).
A paralisadora sequência do saque no hospital, que choca a inocência do protagonista que entretanto acabará por enlouquecer, parece atrair a ideia de que o esforço de lutarmos contra o tempo (o vazio do quotidiano) é inútil: com a chegada ao indefeso nu que surge com as costelas salientes como uma múmia, escorre a verdade de que é impraticável (não apenas intolerável) fazer
ainda mais mal.
Talvez à luz de todos os esforços que encontramos no cinema de Tarr, Jacques Rancière escreve que este levantamento popular, que compara no início a cadência e indiferença dos passos e rostos dos homens à saída de um metro à hora de ponta, "terá sido isto: um movimento em frente, um crescendo e um lento movimento de recolha, em que a multidão se dispersa silenciosamente em indivíduos, sem que nenhum grito se tenha feito ouvir, nenhuma paixão se tenha expressado." Trata-se de uma reação desiludida à promessa que sobrevoou pela comunidade e que confessa: nunca escaparemos à ditadura do tempo.
Como acontece com o sentimento sebastianista ou católico, os filmes de Béla Tarr escrevem-se sobre o espectro da espera de profetas, messias, visionários que consigam fazer acreditar numa mudança e concluem-se com a revelação da burla, da idiotia e da loucura. O vazio hospeda-se na profundidade de campo, eternizando as suas personagens no "tempo do depois", aquele que "não é o tempo uniforme e soturno daqueles que já não acreditam em nada" (como variadas vezes O Cavalo de Turim foi exposto), mas "o tempo dos acontecimentos materiais puros aos quais se opõe a crença enquanto a vida a carregar".
Pai e filha, na condição final de comedores de batatas, fazem perceber que as histórias serão sempre as mesmas e que o fim do mundo e a morte são apenas a paisagem por onde caminhamos, entre o vento e a miséria, esforçados pela manhã por vir. No seu silêncio "está ainda a raiva intacta do cineasta contra aqueles que dão aos homens e aos cavalos uma vida humilhada". Mas é preciso comer, é preciso continuar a participar no quotidiano até que a morte se imponha e é preciso continuar a acreditar no futuro do cinema, ou "não estaria a perder o tempo com 15 alunos". Afinal, aquele que seria o testamento é antes uma cerimónia, que reserva na alma o poder de nos agredir para enfim provocar a esperança, seu maior motor, dizendo que "o círculo fechado está sempre aberto". Assim o cinema responde à vida, por si suficiente para nos enfraquecer.
Este texto foi publicado no suplemento QI, do Diário de Notícias, no dia 14 de dezembro de 2013.