terça-feira, setembro 24, 2013

A dança dos fantasmas no corredor da morte



Como uma premonição, ou então como grave constatação de que a noite nos espera e que o futuro será sempre uma incerteza, Gus Van Sant abre a sua obra-prima com o anoitecer melancólico de um céu verde e que obceca; do fora de campo ouvimos sons de uma bola que bate, gritos e risos. Ficamos no final com uma pequena luz do lampião que se desune do negrume do céu – assim terminará a nossa experiência de Elephant, não importa o número de vezes da revisita, pois ficaremos apenas com uma ponta desdobrada sobre uma tragédia maior que nos cobre e que não podemos decifrar. Uma década após ter recebido a Palma de Ouro e prémio de melhor realizador na edição de 2003 do Festival de Cannes, importa perceber os seus ecos no presente e celebrar as feridas profundas que este filme de dimensão meteórica ainda inflige no nosso espírito.

A ideia de rodar um projeto num liceu norte-americano surgiu num momento muito específico na linha da carreira de Gus Van Sant, na sucessão dos acontecimentos que ocupavam o pensamento dos norte-americanos e no contexto cinematográfico vivido no início deste século. Estamos de facto perante uma sombra de uma tragédia – foi a 20 de abril de 1999 que Eric e Dylan, dois estudantes de Columbine (no Colorado), irromperam pelo liceu e assassinaram a tiro 12 colegas e um professor, acabando por ferir 21 pessoas e, enfim, cometer suicídio. O massacre aterrorizou e confundiu o coração dos Estados Unidos, como se tivesse ocorrido uma espécie de contradição social, os norte-americanos olharam-se para o espelho e para a sua cultura das armas, políticas de educação e até influência dos videojogos. Dois anos depois, com o 11 de Setembro, os olhos regressaram para os inimigos estrangeiros esquecendo porventura como o “there’s no place like home” tinha sido pervertido a um estado até então ainda não concebido.

Em 2002, Michael Moore seria alvo de ataque com Bowling for Columbine, filme onde desenhou um ponto de vista firme e violento sobre a obsessão pelas armas e pela história do terror num país aprisionado pelo ideal de proteção. Um ano passado explodiu Elephant, filme que se cruza com Michael Moore e se ajusta no extremo oposto na linha do espectro. Se os dedos estavam apontados para um certo facilitismo desequilibrado com que Moore se debruçava sobre as questões basilares da cultura norte-americana que outorgou a existência do massacre, com Gus Van Sant a história era outra – o filme surgiu para muitos como uma deambulação irresponsável pelos acontecimentos de um tiroteio, sem dar respostas ao “porquê” infinito que martela o filme até o seu fim.

Ao mesmo tempo, olhou com determinação para os mecanismos de manipulação mediática do pensamento: há um momento agitante em que os assassinos do filme, dois rapazes chamados Alex e Eric, veem na televisão um documentário que incide, no tempo do plano, sobre as técnicas da propaganda nazi e os realizadores que trabalharam ao serviço de Hitler (eis o gesto estético do poder político). Por cima da televisão, fora de casa, vemos uma carrinha que chega para entregar as armas de fogo que utilizarão para mais tarde apagar a vida às pessoas do liceu. Descortina-se assim a dimensão moral da história do mal de Gus Van Sant porque afinal o que predomina em Elephant não será tanto a incriminada carência de ponto de vista (necessária nos dispositivos da televisão, por exemplo) mas antes o afastamento da resposta, o culto da dúvida e do mistério e o aparecimento de uma nova sensibilidade humanista com que a sua câmara ilumina as personagens que confrontarão a morte.


O filme, afinal, nasce do próprio questionamento – o título é emprestado da curta-metragem homónima produzida por Danny Boyle e com a qual o realizador inglês Alan Clarke perseguiu, num estilo minimalista concentrado no poder do travelling (que também serviu de base formal para Gus Van Sant), o assassinato de 18 pessoas na Irlanda do Norte sobre as quais nada sabemos. A expressão vem do escritor de Belfast Bernard MacLaverty que, num livro para crianças em 1978, falou num “elephant in the room” – o problema com o qual convivemos mas nada fazemos. O que moveu, no entanto, o realizador norte-americano foi antes uma parábola budista que fala num grupo de cegos que examinam partes de um elefante sem contudo ter a noção do todo – como o problema maior reservado no seu filme, onde todo o mundo cabe sem termos disso a percepção do absoluto.

Esta aventura foi reservada para uma ideia de telefilme, como aliás é o filme de Clarke, que fez com que Gus Van Sant pedisse ao canal de cabo norte-americano HBO para produzir Elephant (uma estratégia que hoje se torna cada vez menos incomum, vejamos o exemplo de Steven Soderbergh e o seu recente Por Detrás do Candelabro, rejeitado pelos grandes estúdios e filmado praticamente com as mesmas condições através de financiamento deste canal). Os caminhos de Gus Van Sant tornavam-se cada vez mais inexplicáveis – estamos, afinal, perante um autor que, após ter realizado em 1999 O Bom Rebelde, filme de grande êxito popular que batalhou pelo Óscar de melhor filme, decidiu metamorfosear-se longe do mainstream e em direção àquilo que do outro lado do oceano se considera reservado a pequenos nichos de público. Na verdade, as possibilidades de laços e diálogos entre filmes da sua carreira são mais do que os pontos que os separam – desde o princípio dos anos 80, das suas curtas experimentais, que Gus Van Sant tem trabalhado prementemente uma renovação formal que não se esclarece, à procura no entanto das mesmas imagens.

A mais forte delas será a estrada – de onde saímos a preto e branco de Mala Noche (82), adormecemos em A Caminho de Idaho, nos despedimos em O Bom Rebelde e arrancamos em Gerry para seguirmos enfim os labirintos do fantasma de Kurt Cobain em Last Days – Últimos Dias (2005) ou os corredores da escola em Elephant. Gus Van Sant descobriu-os na Adams High School, escola pública em Portland (Oregon), cidade onde nasceu, cresceu e observou de muito perto as pessoas que viriam a formar o seu futuro. Esta escola inaugurada em 1969 acabaria por ser demolida em 2007, ano em que o realizador lança Paranoid Park (que podemos ver como um compêndio sensível sobre a sua visão do universo adolescente).

Foi aqui que a equipa do filme dirigiu dezenas de rapazes e raparigas jovens para recriar a atmosfera de um dia típico de liceu norte-americano. A decisão de Gus Van Sant partiu em seguir o mesmo fluxo de Gerry, dedicado a Béla Tarr, e montar uma cosmovisão sobre a juventude, verdadeira protagonista do filme. Tal como O Tango de Satanás (monumento que Tarr estreou em 1994), que é estruturado ao sabor de um tango (seis passos para a frente, seis para trás), o movimento de Elephant faz-se também com doze personagens apresentadas em cartões diferentes. Nada, aparentemente, representam – o filme parte do princípio ético de que um grupo ou comunidade, como Gus Van Sant filma até o seu último título Terra Prometida (2012), deve ser visto em toda a sua especificidade, captando então todas as suas promessas e contradições.

Ao mesmo tempo, aparecem-nos como sinais de estereótipos – reconhecemos as três raparigas que coscuvilham e se maltratam dos banais college movies que preenchem as tardes de fim-de-semana das nossas televisões, reconhecemos o tipo popular, a miúda feia que prefere a biblioteca e que é troçada pelas colegas, etc., e este gesto de criação tem em si um movimento que comporta o cómico e o trágico, o popular e o tecido mais profundo de uma só existência. O sentido de justeza do ponto de vista não persegue um tipo de naturalismo vulgar, antes a verdade de cada corpo. É por isto que Gus Van Sant aposta na integração documental do real com a criação de um eu-ficcionado (muitos atores interpretam personagens homónimas) e recoloca a câmara ao nível do olhar de cada pessoa, perseguindo-a como um espião ou então como um voyeur fascinado pelas determinações da sua vida (neste sentido, Elias, o fotógrafo, é uma espécie de alter-ego de Gus Van Sant – com a sua câmara habituada aos rostos dos desconhecidos ele acaba por paralisar a morte antes do seu próprio desaparecimento).


Como na pintura de René Magritte La reproduction interdite, o nosso espelho é o nosso próprio desencontro – e daqueles alunos acedemos às suas caminhadas pelos corredores da morte de costas voltadas, insensíveis à presença do espectador que, por sua vez, se angustia com a impotência da sua posição (não, nunca poderemos salvar aqueles que morrem eternamente no grande ecrã). O olhar de Gus Van Sant é, à maneira de Pasolini, “subjetivo indireto livre”, transformando as formas de imagem e de som de acordo com a percepção (individual, subjetiva) de cada personagem. Assim cria os momentos mais vibrantemente poéticos do filme, situando-se como uma entidade fantasmática que assombra o destino, os caminhos que se cruzam em direção a um fim trágico coletivo.

Tudo faz parte de uma ordem invisível, que pertence ao acaso, elegantemente decidida pelos jogos de repetições e de baralhamentos (e manipulação) de tempos que compõem Elephant como um musical do cosmos. É comum o sentimento constante de dejá-vu que percorre a nossa experiência e, ao mesmo tempo, também a sensação de nada vimos e percebemos – como é que um simples momento de um colega (Elias) que fotografa o que para si posa (John) e que se cruza com uma rapariga que corre na altura em que a campainha da escola se faz notar (Michelle) cria tantas ramificações em direção ao futuro e a eternos retornos? Na montagem, da qual Gus Van Sant foi o responsável, o tempo não só é controlado dentro do plano como se despedaça e multiplica com uma vontade que ultrapassa as fronteiras do documentário e da ficção – mais do que tudo, o que se busca é a luz que imana daquelas pessoas, filmando-lhes a aura, acariciando as suas vidas e despedindo-se do seu presente.


Harry Savides, diretor de fotografia que morreu em 2012 e a quem Sofia Coppola lhe dedicou a última colaboração (Bling Ring, também vislumbre de uma adolescência e presente), parece trabalhar a luz de acordo uma demanda muito misteriosa de cobrir para depois iluminar (as janelas que atravessam os corredores assim o permitem), o mesmo acontecendo com as cores (na cena em que conhecemos Benny, o salvador que irá ser depois morto, comovem-nos os elementos da sua presença de anjo caído: o amarelo da T-Shirt, o azul que encharca o corredor, o negro da pele...), e com os travellings tão suaves de steadycam, que flutuam sobre as personagens como um fantasma e que criam uma ideia de fluxo que participa numa grande dança do horror.

A ideia é emprestada do génio de Stanley Kubrick por quem Gus Van Sant é apaixonado. O deslize e a assombração vêm de Shining, como aliás remete imediatamente a primeira cena da viagem de carro do pai e do filho (para a primeira do filme de 1980). Ao mesmo tempo, a mudança de ponto de vista acontece sem quebrar uma linha de espaço e tempo que se casam, vide a cena da Aliança Hetero-Gay onde se pergunta como é que um homossexual se pode distinguir de um heterossexual: a câmara filma em 180 graus entre este, esta, aquele e aquela, sem determinar uma orientação mas desenhando a possibilidade da superação da diferença no caminho dirigido à magia do afecto. Há de facto a estima humanista pelos cruzamentos – filma-se um beijo simples, confinado numa sala de estilo soviético e num plano desolador, entre John e Acadia como se o fim do mundo estivesse demasiado próximo (tal como se dá o primeiro beijo envergonhado dos assassinos que se unem antes do seu próprio final).

Ao mesmo tempo, a emancipação fantasmática da câmara faz flirt com o documentário e permite-nos perder as personagens para as reencontrar depois de outras passagens por outras (na cena da cantina, por exemplo, em que nos despedimos momentaneamente das raparigas para seguir os cozinheiros que escapam para fumar um charro), dizendo-nos contudo que este é um filme longe de um registo realista. O modo como Gus Van Sant, aliado a Leslie Shatz (designer de som), trabalha o filme do outro lado do visível abre-nos às outras pontas do elefante. Como diria Godard sobre o travelling, o som é também uma questão de moral – tudo é construído em filigranas evitando a solução naturalista de recriação de atmosferas e adaptando-se ao espírito da cena dominada pela personagem. No travelling em que acompanhamos o fotógrafo pela escola adentro até a sua sala de trabalho, os sons em redor compõem-se com conjugação com música de improviso para se “apagarem” no cumprimento de uma colega, jogando entre o alienamento e a consciência do real.

É também frequente ouvirmos as vozes entubadas e sentirmo-nos numa espécie de túnel que hipnotiza, com a atenção concentrada frequentemente naquele que ouve e recebe e não naquele que comunica (que se fica muitas vezes pelo fora de campo, como é a presença dos adultos neste filme). Gus Van Sant casa o adeus melancólico das sequências com Beethoven com a electrónica de Frances White, ou então a frieza do tiroteio com a leveza enfeitiçadora da água, do choro das portas que abrem e fecham ou dos pássaros-fantasma que irrompem o plano, desenhando uma mise-en-scène do fora de campo dominada pela precisão e por uma caminhada que é uma aventura entre o real e a consciência.


Até o fim do filme veremos uma única vez um elefante – está desenhado no quarto de Alex perto do piano onde toca a Sonata ao Luar, passa por nós despercebido e leva-nos a um estado de fascínio por aquele que, vivendo como todos os outros colegas, acabará por tirar a vida ao outro. Há uma vontade de morte que predomina em Elephant – a vida quer-se experimentar como um videojogo, e é curioso que no computador se jogue GerryCount, onde vemos os dois Gerry do filme anterior de Gus Van Sant a serem perpetuamente assassinados e renascidos no deserto vazio. Ao mesmo tempo é neste jogo que confrontamos o horror inalterável do cinema: estamos perante uma ilusão da caverna cristalizada e encontramos a possibilidade de uma redenção – se a vida é tão difícil (e tragicamente leve) por que não escapamos da morte? (Porque é preciso o cinema para recuperar a vida.)

“O mais importante: diverte-te”, diz-se antes da partida para o matadouro, na qual saboreamos o tempo de uma serenidade calada que pesa e assusta, a mesma da primeira viagem, onde o pai, bêbedo, leva o filho à escola à espera de uma breve aproximação entre ambos (“vamos caçar”, sugere envergonhadamente o pai, tentando seduzi-lo com as especificidades das armas). No final do filme regressam as pinturas com o tempo e as nuvens que passam, a noite que desaparece e dá lugar a novas viagens – sentimos falta daqueles que perdemos cedo demais na composição derradeira daqueles jardins, corredores e salas, sentimos falta dos gritos e da bola que bate, do cão que salta. Sentimos falta da música.

Este texto foi publicado no suplemento QI, do Diário de Notícias, no dia 21 de setembro de 2013.