terça-feira, fevereiro 19, 2013

Das trevas para as trevas

É tempo de rever A Rede Social – já chegou aquela altura em que a televisão portuguesa o reduziu, com todos os seus delicados intervalos e gosto de programação, como “um filme de sábado à tarde” (foi na SIC, no passado dia 16). Confesso o meu desapontamento quando estreou por cá, ao lado de uma estranha euforia, precisamente alastrada no Facebook, que andava de mão dada com a felicidade de termos um filme – ainda para mais “controverso” (Mark Zuckerberg expressou o descontentamento com o facto de dramatizarem a própria vida) – sobre as origens míticas da rede que prende o planeta do outro lado do ecrã. Enfim, nada nos impede de “corrigir”, mais tarde, as nossas percepções sobre um determinado objeto – foi o que precisamente aconteceu comigo com este filme que, de qualquer modo, chegou seguramente fora do seu tempo (algumas reações mornas davam conta de um filme asséptico, apenas sobre nerds). 

A Rede Social não só me parece como um dos melhores que David Fincher nos deu como, sobretudo, como um desses objetos que nos lançam para o abismo da virtualidade do nosso real. Quer isto dizer que funciona perfeitamente como um espelho do mundo das trevas “deste lado” dos espectadores – “das trevas para as trevas”, exatamente como Cormac McCarthy escreveu em Nas Trevas Exteriores (Outer Dark). No mesmo livro, uma personagem feminina diz que “não há uma alma neste mundo que não seja um estranho pra mim” – eis a evidência trágica, escrita há quase 50 anos atrás, que nos leva diretamente para o universo de A Rede Social, universo de triste solidão (a do protagonista) e de dois desejos muito humanos e que pouco ou nada terão a ver com computadores: de nos sentirmos próximos do outro e de consagrarmos, com toda a nossa sede de poder, uma identidade (a nossa). A partir da construção de uma timeline (a nossa linha da vida que existe “daquele lado” do ecrã), dos nossos gestos virtuais (o like, uma partilha, um estado de relacionamento) que vão definindo o nosso próprio mundo. Como nos mostrou Fincher, hoje não somos mais que um algoritmo escrito temporariamente num vidro.

David Fincher, afinal, quebra-nos em dois desde logo na cena da abertura: o medo dos silêncios, o vertigo para o qual os diálogos, mas sobretudo a montagem, nos atira, os diálogos que são debitados – eis o computador (o protagonista) e eis a pessoa que ele não é (nunca será) e com que ele anseia compreender e ficar (a rapariga, Rooney Mara, que abandonamos, mais tarde e pela última vez, numa imagem em que termina de costas – também nós queremos estar com ela, como se fosse o sinal final da realidade-realidade-realidade que escoa neste filme). Parece-me igualmente brilhante o confronto climático, nos escritórios do Facebook, entre Eduardo e Mark – onde se configura uma batalha entre os últimos sinais de uma amizade, e assim de uma humanidade, e a barbaridade tão calculável, precisa e implacável do dinheiro (o mesmo, afinal, tentou Soderbergh filmar em Magic Mike). 

Ao longo do filme, “a rede social” é percebida na teia de peões (de personagens) de um jogo maior – jogo de computador, como Rooney Mara diz. Aquelas personagens vivem até ao fim na euforia de se encontrarem “do outro lado”. Que é como quem diz: no desejo de se encontrarem para fazer share / partilha de algo essencial ao Facebook e à nossa vida. A solidão, precisamente.

quinta-feira, fevereiro 07, 2013

Marfa Girl – potência e solidão




Marfa – território de beleza profunda, quase hipnótica, desenhado por paisagens semidesérticas do Oeste texano (as localidades mais próximas ficam a mais de 30 quilómetros). O que é que nos chama para lá? O mito da independência, de uma história dos EUA que se fechou em si mesma, de um abismo que relocalizou James Dean numa solidão exteriorizada (falamos de quando George Stevens o filmou em Gigante).

50 anos depois foi a vez de descobrirmos Marfa pelos irmãos Cohen (Este País não é para Velhos) e por P. T. Anderson (Haverá Sangue) – uma cidade no meio de nenhures, “sem tempo”, lançada para o cinema como se pudesse ser filmada agora ou daqui a 100 anos. Larry Clark presentifica-a: o que vemos é a Marfa transformada oásis para os artistas, a Marfa das luzes-fantasma (já as recordavam Rolling Stones, em No Spare Parts, inédito de 1978 finalmente lançado em 2011), a Marfa que não evita os problemas de ser uma localidade fronteiriça, invadida pelos imigrantes e por aqueles que, suficientemente loucos, ou então seguros, se deixam ficar por lá, debaixo de um céu que não acaba.

“Aqueles” é a juventude esquecida, os James Dean que ficaram por lá – e Larry Clark filma-os com o maior amor e sentido moral do seu cinema. Como? Primeiro, aceitando que o sexo é parte incontornável – e necessária – para um espírito potente; depois, filmando os corpos com a mesma configuração da paisagem de Marfa (tudo aqui nos parece com energia, tudo é puro); por fim, vendo o desejo como aquilo que há de mais intransmissível.

O que resulta daqui é simples: a proteção de tudo isto pela comunidade, que acaba afinal por se tratar da proteção familiar, resiste a tudo aquilo que a quer perturbar – e assim entramos em tudo aquilo que parece haver de western em Marfa Girl, que desenha um conflito entre o protagonista e um guarda fronteiriço (invadido por uma pulsão sexual e solitária que acaba, ao contrário dos outros que vigia e ameaça, por ser a sua própria destruição). 

Pela sua desarmante simplicidade, o novo filme de Larry Clark é também um respeitoso exemplo que nos relembra que é preciso sempre uma adequação dos meios de produção com um olhar concentrado e cheio de vigor (Marfa Girl foi feito por uma micro-equipa e, não só por isso, por pouco dinheiro). Surpreende-me assim ver o filme a partir de uma janela do computador – não o veremos com certeza numa sala de cinema, já que Larry Clark o “estreou” no seu site oficial (se bem que houve passagem pelo Festival de Roma, onde venceu o prémio de melhor filme) e assim terminar com uma distribuição que, financeiramente, lhe seria desvantajosa. O futuro vê-se, aos poucos, por aqui – é o mito do cinema norte-americano a começar a abandonar para sempre o grande ecrã...

(O texto no Diário de Notícias sobre Marfa Girl)