terça-feira, julho 31, 2012

A Palavra (5): Sobre a crítica de cinema


Vivemos um tempo em que exercer a crítica de cinema parece ser (ou, se calhar, é mesmo) algo que se democratizou em absoluto, especialmente com as possibilidades que a Internet nos ofereceu. Um blogue é, por exemplo, tal como um programa de televisão, de rádio ou um jornal, uma plataforma, cada vez mais digna – e, sem dúvida, a mais acessível –, para escrever uma crítica a um filme visionado. Neste sentido, é importante estar cada vez mais atento ao panorama da crítica em Portugal e refletir, uma vez mais, a sua natureza e os seus objetivos. 

Há dois textos que descobri recentemente e que tentam, de modo objetivo, definir o que existe – e, por conseguinte, aquilo que não deve ser. O primeiro deles é o prefácio (Da memória ao cinema em acto) escrito em janeiro de 1978 por Jorge Leitão Ramos para o livro Cinema e Transfiguração, de Eduardo Geada

“Há várias razões que podem justificar uma recolha de textos escritos em jornais e revistas um pouco ao longo do tempo (1968-1977) (...) A razão, se a quisermos buscar e dela necessitarmos, temos de a ir procurar no mundo um pouco provinciano, um pouco autossatisfeito, um pouco ignorante e um pouco cobarde da crítica de cinema em Portugal nos últimos anos. Só assim se percebe que textos escritos ao longo de dias, anos atrás, possam, ainda hoje, ser diferentes e modernos, no sentido em que essa diferença e essa modernidade não são apenas atributos de uma qualquer exótica singularidade mas contêm em si traços longamente inexplorados até então e pouco mais aprofundados até agora.

Antes de tudo, o trabalho de Eduardo Geada recusa ser uma crítica de gosto, uma tarefa de maître d’hotel da burguesia a escolher no cardápio os pratos melhor confecionados, uma crítica culinária, no sentido que Brecht deu ao termo. Em segundo lugar, os seus textos enjeitam situar-se no terreno fechado da cinefilia, esse mundo que remete sempre para si próprio, falando das formas e dos autores como se o que importasse fosse apenas uma coerência interna, um caráter comparativo (Hitchcock versus Wyler ou a montagem de atrações versus plano-sequência) cuja discussão e fundamento se fizesse exclusivamente no interior do próprio cinema. Para Eduardo Geada o cinema é sempre entendido como reflexo dialético do histórico. E é nas esferas do político, do social, do psicanalítico e também da cinefilia que o seu trabalho crítico se desenvolve.

Gostaria de acentuar aqui um dos aspetos que me parecem mais importantes desta aproximação do cinema: o seu caráter didático. Com efeito, nos textos do Eduardo nunca importa muito dizer se o filme é bom ou mau (categorias de um maniqueísmo redutor que estão muito longe dos seus objetivos). Ao invés, trata-se de penetrar a textura do filme e de o compreender nas suas várias coordenadas, de o situar quer no interior do cinema, quer no interior de uma determinada estrutura social, quer no seu modo de funcionamento junto do público. Não há, por isso, nos seus textos uma adjetivação fácil, mas um trabalho moroso, fascinante e arriscado de dissecação. E tudo isto numa linguagem que se procura tão clara quanto possível, onde não é bem a “prosa” que interessa (“prosa” que, noutros, chega a ser brilhantista, gongórica, citante e vazia), mas aquilo que, nela, de objetivo se disser.

Por outro lado, este trabalho crítico não esconde nunca a sua precariedade, nunca se afirma como violentamente definitivo, nunca ganha as coordenadas de um julgamento inapelável. E isto exatamente porque ele não se fecha num mundo chão e familiar, seguro, mas assume o risco de evoluir, de procurar noutras direções. (...)

Num país onde tanta ideologia apressada inundou o quotidiano, onde os critérios de valor se pautam, frequentemente, pelo ideológico, muito pouca gente que fala e escreve acerca de objetos culturais tem a humildade e o rigor de análise que os textos deste livre demonstram. Quando o “julgamento” de um filme (ou de uma canção, ou de um livro, ou de uma peça de teatro...) se baseia tantas vezes no que o filme mostra ou conta ao nível primário de uma leitura apressada da sua história é bom de ver que a aproximação que os textos deste livro fazem é bem diferente. Eles mostram e demonstram que a formação da ideologia ao nível do cinema tem a ver com várias coordenadas (o modo de produção, o local e o tempo desta, o modo de difusão e consumo, as formas e os códigos cinematográficos usados...), e é a partir delas que se procura estabelecer uma aproximação ideológica do cinema em geral e de cada filme em particular.

Resta talvez dizer que estes textos nunca são gélidos, impessoais e distantes. É que eles não são produzidos por uma qualquer instância venerada de saber, mas nascem de um prazer pessoal, de uma quase paixão, face ao ecrán, prazer multiplicado na prática analítica da escrita, prazer que, afinal, gera a imensa vontade de saber que os informa. (...)”

O segundo texto nasce quase 25 anos mais tarde e acompanha o surgimento de um novo portal de cinema. Escrito pelos autores de À Pala de Walsh (a saber: Carlos Natálio, João Lameira, Luís Mendonça e Ricardo Vieira Lisboa), ele pode ser lido aqui.

sexta-feira, julho 27, 2012

Rise



Os primeiros planos da primeiríssima cena do último capítulo da trilogia Nolan carregam consigo, hoje, uma força tão horrível quanto fascinante. São, de certo modo, imagens tornadas “intensas” (lembramo-nos da designação do teórico brasileiro Fernão Pessoa Ramos). Muito simplesmente porque nos sentimos a cair diante imagens que testemunham a experiência das vítimas do atentado terrorista no estado do Colorado e que resultou na morte de 12 pessoas na sessão da meia-noite da passada quinta-feira de O Cavaleiro das Trevas Renasce

A associação ao massacre, certamente inevitável, reacende algumas discussões – entre eles, o debate sobre o controlo de armas nos EUA e o mais conservador da influência do cinema sobre o real (o crítico de cinema Peter Bradshaw, do Guardian, reflete bem sobre o assunto aqui) –, e vem marcar a história da trilogia de uma forma apenas comparável à morte de Heath Ledger pouco tempo antes de ter estreado O Cavaleiro das Trevas (e cuja interpretação viria a ser reconhecida com um Óscar póstumo). 

Não estamos a falar de malabarismos negros de marketing – mas de realidade. Foi, aliás, este caminho que “salvou” Batman das tristes reminiscências de Joel Schmacher e o distinguiu da construção fantástica de Tim Burton. Uma injeção de realidade que, curiosamente, vem de um homem que tem lidado com sonhos (A Origem, 2010) ou magia (O Terceiro Passo, 2006); um homem que recusa determinantemente o 3D e que tende a diminuir os efeitos especiais em cada plano; alguém que, por outro lado, fala para o real com um cinema cada vez mais afastado dos seus primeiros trabalhos e completamente entregue ao mainstream

Um mainstream que é, apesar de tudo, evidentemente de primeira classe. Como se reinventado, há aqui um escapismo que, sim, oferece ao espectador uma fuga do seu banco da sala de cinema. Como Joseph Bevan o relembra na sua interessantíssima retrospetiva do realizador (Escape Artist publicado na edição deste mês da Sight & Sound), Slajov Žižek aponta O Cavaleiro das Trevas como a expressão da “indesejabilidade da verdade” pelo espectador. No entanto, não conseguimos deixar de sentir que há neste escapismo algo que fala para o seu local de origem. 

Esse local de origem para onde Christopher Nolan nos devolve é um mundo derrotado pelo fantasma da crise financeira representada pela queda no gráfico da Bolsa, um mundo assustado pela implacabilidade do terrorismo. Mas também, e talvez sobretudo, revoltado. Senão, como viver? “O homem revoltado” que Camus idealizou é progressivamente manifestado em reação a tudo isto e mesmo à tendência das medidas de austeridade impostas por certas políticas. 

Nesse sentido, Nolan oferece-nos o filme da “revolta” por excelência: daí que seja tão adequado o termo Rises do título original (à partida aparentemente desinspirado), e que o português perde. A ideia de renascer das cinzas parece limitado – existe uma ascensão que é tornada ideia invisível mas presente em todo o filme. Desde logo, aliás, pela banda musical de Hans Zimmer, que se ajusta a gritos de guerra ou cânticos de encorajamento da gente comum (que ganham significado dramático numa das cenas tardias do filme). Música que acompanha uma montagem, frenética e emocionada, que já nos é habitual na carreira de Nolan e que aposta na condensação das suas cenas acreditando no poder de dedução do público. E se o filme nos parece incidir sobre uma certa postura de revolução também, por causa disto, se torna “o” filme popular. 

O discurso do filme – que passa por retirar aos ricos as suas posses, por destituir o poder do indivíduo e entregá-lo ao povo – tem contornos ideologicamente próximos de uma ideia do Comunismo e que não pertencem ao herói do filme (Batman). Mas ao vilão (Bane). Eis a reviravolta conservadora, se quisermos reacionária, de Christopher Nolan, que se revela cada vez mais seduzido pelo poder. Um discurso que, é certo, é abraçado por quem o quiser. Não nos é imposta uma ideologia, mas dois caminhos, a dado momento de modo gelidamente imparcial. 

Se, à partida, Bane nos pareceria um estimulante anti-herói e novo Messias, logo percebemos que Nolan o maquiaveliza para não nos restarem dúvidas de que é com Batman que devemos ficar. Tal como fez com o lunático, mas por vezes incrivelmente lúcido, Joker, o de Ledger. É aqui que reside a confusão: o que nos quer dizer Nolan? E onde a sua voz? Sentimos que há na convenção do blockbuster uma fuga para onde Nolan nos quer levar – mas que nunca consegue, plenamente, atingir esse seu objetivo. 

É certo que há momentos que nos ficarão cravados: o ataque à Bolsa por Bane é extraordinário no esplendor do quadro do Horror; a escalada metafórica por Christian Bale pelo “poço” acima é de tal forma penetrante como se sentíssemos que somos nós que reclamamos por esperança. Momentos que fogem, contudo, a uma linha dramática eficaz mas que desilude pelo seu exercício de infeliz auto-citação. Há ganchos emprestados do anterior O Cavaleiro das Trevas: a bomba e o dispositivo da sua detonação lembram a inteligente e perturbante cena dos navios do segundo filme; o falso amor pelo povo de Bane lembra a loucura de Joker. Acreditamos por isto que O Cavaleiro das Trevas ganha muito mais ao lado desta sua conclusão. Como se não fosse suficiente, há reviravoltas banais (as duas finais) ao nível da mais básica das soluções de Os Vingadores

À luz disto, não deixamos de sentir que estamos perante uma mera variação bem executada da mesma fórmula (os elementos estão lá: do domínio de um jogo cerebral entre homens à representação noir das mulheres) e que Nolan poderia fazer muitas mais, como um sonho dentro de um sonho dentro de um sonho. Para nossa felicidade, estamos perante um último capítulo, repleto de alegres resoluções, que sente, ele mesmo, a necessidade de dizer que o restava. 

E o que restava? Que não vale a pena esperar por Jesus-Batman-Cristo e que o mundo, esse sítio “simples” e “miserável” (como nos diz Nolan em O Terceiro Passo), está entregue aos seus habitantes. E que a esperança é apenas um motor para sair – ascender – da condição de espectador dessa miséria.

sexta-feira, julho 06, 2012

Metropolis — para continuar a refletir sobre cinema


Eis divulgado o número 0 de uma nova revista portuguesa de cinema: Metropolis (em cima: a capa). Desenvolvida por um conjunto de críticos e jornalistas profissionais (entre eles contam-se os colaboradores do blogue sound + vision, do Diário de Notícias, da revista Premiere e do portal Cinema 2000), este é um espaço, gratuito e online, que pretende refletir e discutir a atualidade – e a memória – cinematográficas. Até o número 1, a sair oficialmente no próximo mês de setembro ao lado de um site, a Metropolis ainda passará por uma outra edição em agosto. Conto com os leitores para divulgarem e partilharem as vossas opiniões sobre o projeto recém-nascido. Nesta edição escrevo sobre as carreiras de Todd Haynes, Todd Solondz e Béla Tarr, críticas aos filmes O Cavalo de Turim (Tarr) e A Cidade dos Mortos (Sérgio Tréfaut) e ainda o primeiro texto da rubrica A Dois Tempos. Cannes 2012, Wes Anderson e O Fantástico Homem-Aranha são outros dos vários assuntos tratados nesta nova revista. Boas leituras!

domingo, julho 01, 2012

O cinema como arte do belo e do quadro




A estreia da mais recente longa-metragem do escritor, cineasta e artista plástico polaco Lech Majewski em Portugal não deixa de trazer consigo a memória de um outro filme que nos é mais próximo. Falamos dos Painés de São Vicente de Fora pintados por Nuno Gonçalves (entre 1470 e 1480) e revisitados, há três anos atrás, por uma Visão Poética de Manoel de Oliveira. Quando, então, apresentou no Festival de Veneza a sua aplaudida curta-metragem, o realizador português reforçou a ideia de que não estávamos perante um documentário mas, antes, uma interpretação inspirada “pela crise atual e pela crescente desumanização que se espalha pela Europa e pelo Mundo.”

É isto, em síntese, o que podemos também encontrar em O Moinho e a Cruz: um novo olhar sobre a contemporaneidade através do passado ou, concretamente, através de um... quadro. A pintura é nada menos que uma das obras-primas de Pieter Bruegel, “o Velho”, O Transporte da Cruz (de 1564). E é inspirado no quadro e na monografia do crítico de arte Michael Francis Gibson The Mill and the Cross (de 1996 e que empresta o título ao filme) que Majewski se aventurou a dar vida às personagens da pintura.

O resultado é curioso e traz consigo algo de sedutor e de hipnótico. Auxiliado pelas potencialidades do digital, o realizador polaco cria uma fotografia (co-assinada por si) e mise-en-scène profundamente artificiais e estilizadas, de modo a adequarem-se às qualidades do óleo de Bruegel. E é decompondo o quadro em vários pormenores que seguimos a jornada de algumas das figuras da pintura, entre eles, curiosamente, o próprio Bruegel (interpretado pelo lendário ator holandês Rutger Hauer). 

Autor de obras que davam especial incidência sobre os camponeses, os loucos e a religião, a figura do pintor em O Moinho e a Cruz parece refletir uma meditação total (e, por isso, também ambiciosa) sobre a relação do homem com a vida e a morte. Isto porque, ao acompanharmos a progressiva composição do quadro final (como se Bruegel fosse um mero ilustrador da realidade que se move diante de si), assistimos também à criação dos diversos significados da obra. 

Eis então apresentada uma das fragilidades do filme: há uma vontade de pedagogia na análise e desconstrução do quadro de Bruegel, por vezes de tal modo posta em evidência que acaba por se destituir parte do mistério de O Transporte da Cruz. Um dos mais fortes exemplos do fulgor didático do filme é a cena em que Bruegel explica alguns dos elementos do quadro: o moinho no alto do rochedo (que estaria a julgar a ação em terra), aquilo que seriam o círculo e a árvore da morte ou a suposta presença do autor na pintura. 

Apesar disto, e também por causa disto, a evolução da composição do quadro final coloca-nos no fascinante terreno da criação artística, transversal à pintura e ao próprio cinema. É, pois, a partir da montagem que Majewski parece querer construir, com vários pormenores da realidade, uma espécie de quadro maior. Tal como, convém relembrar, o cineasta Andrei Tarkovsky o fez com uma das suas obras maiores, Andrei Rublev (em 1966), sobre o pintor de ícones russo. 

Embora não tenha conseguido ir mais além do conceito, isto é, do seu gesto de recriação de um quadro (sentimos que estamos mais próximos da instalação do que devíamos), O Moinho e a Cruz devolve ao cinema a sua condição de arte do belo e, sobretudo, de arte do quadro.

Este texto foi publicado no Diário de Notícias a 30 de junho de 2012.