quinta-feira, abril 26, 2012

IndieLisboa 2012 – Chegou o tornado no “ano de todos os perigos”

Take Shelter, de Jeff Nichols, é exibido a 6 de maio, às 21:30, no Grande Auditório da Culturgest.


Começa hoje a 9.ª edição do Festival Internacional de Cinema Independente IndieLisboa, a decorrer até o dia 6 de maio na Culturgest, Cinema São Jorge e Cinema Londres (em Lisboa). São os próprios diretores e programadores (Miguel Valverde, Nuno Sena e Rui Pereira) que o consideram (na apresentação da edição): 2012 é “o ano de todos os perigos”. A referência catastrófica remete-nos, naturalmente, ao panorama atual do cinema português, “memorável” no sentido em que “a exposição pública e os prémios arrecadados no último Festival de Berlim, a que se deve juntar os ventos promissores de 2011 que trouxeram prémios de Locarno e San Sebastian (…) demonstram a vitalidade do Cinema Português” (assim, com maiúsculas) “e a visibilidade que está a obter internacionalmente.” E os perigos, a que se referem? Às “mudanças de políticas e de indecisões” (alguém falou em… concursos do ICA?), que ameaçam a “paralisação de todo o sector”.

Discurso marcado por uma consciência aguda política que é poderosa e desafiadora (segundo os dados de 2011, o IndieLisboa é o terceiro festival com mais espectadores, atrás do Fantasporto e do Estoril Film Festival) e que é acompanhada pela concentração de esforços na exibição e promoção do cinema português. E quem diz valorização diz também discussão — este ano, as Lisbon Talks vão ter especialmente incidência na cinematografia nacional: no dia 29 de abril, das 9:30 às 17 horas, Paulo Viveiros orientará no Hotel Florida o seminário “O Estado do Cinema Português: Criatividade vs Economia”, e no dia 2 de maio a sala 2 do Cinema São Jorge servirá de palco para o debate “O Cinema Português Visto Pelos Mais Novos – Reflexão sobre o Actual Estado do Cinema Português”.

Wuthering Heights, de Andrea Arnold, é exibido no dia 5 de maio, às 15:00, no Grande Auditório da Culturgest.
Entre o júri oficial da competição internacional de longas-metragens encontramos nomes que estão a merecer destaque no IndieLisboa: João Canijo (que, depois de Sangue do meu Sangue o ter reposicionado nos nomes a seguir com maior atenção no cinema português, vai ter o seu recente documentário Raúl Brandão era um grande escritor... numa sessão especial, a decorrer no dia 1 de maio pelas 18:00 no Grande Auditório da Culturgest), Lionel Baier (cineasta suíço que vai merecer uma retrospetiva integrada no foco do cinema emergente “Cinema Suíço – Um Bando à Parte”) e Agnès Wildenstein (que trabalha na Suíça no festival internacional de cinema de Locarno desde 2000).

O restante júri é composto pela programadora da Cinemateca Portuguesa Maria João Madeira, Paolo Moretti e pelo ator Gabriel Spahiu (na competição internacional de curtas-metragens), pelo programador e crítico João Garção Borges, Ailton Franco Jr. e pelo diretor do Festival Internacional de Curtas-Metragens de Uppsala Niclas Gillberg (na competição Onda Curta), pela realizadora Diana Andringa, Jaime Pena e pela jornalista Helena Torres (na competição Pulsar do Mundo).

Na competição nacional encontram-se cinco longas-metragens e 19 curtas-metragens, algumas delas marcando também presença na competição internacional de curtas (são seis: Cama de Gato, de Filipa Reis e João Miller Guerra, O Que Arde Cura, de João Rui Guerra da Mata, Mupepy Munatim, de Pedro Peralta, Cerro Negro, de João Salaviza, Fado do Homem Crescido, de Pedro Brito, e Julian, de António da Silva).

Salaviza, galardoado com a Palma de Ouro com Arena, terá ainda direito a uma sessão especial: Rafa, que recentemente venceu o Urso de Ouro em Berlim, será amanhã exibido acompanhado pela longa-metragem francesa Nana, de Valérie Massadian. Por sua vez, João Mário Grilo estreará o documentário A Vossa Casa (no dia 6 de maio, na sala 1 do Cinema Londres, às 16:45).

Cerro Negro, de João Salaviza, é exibido no dia 28 de maio, às 18:15, no Grande Auditório da Culturgest.
Repete dia 30, às 16:45, e dia 3 de maio, às 21:45, no Pequeno Auditório. 
Portugal vai estar ainda representado num conjunto, “Novíssimos”, constituído por primeiras obras e filmes de escola: Alquimia, de Diogo Sequeira, Assembly Line, de Tiago Ferreira, Atracados, de Filipe Afonso, Leite, de Gonçalo Robalo, Mulher.Mar, de Filipe Pinto e Pedro Pinto, A Rapariga de Cabelo Vermelho, de Catherine Boutaud, e You Are the Blood, de Rafael Morais.

Nas secções Observatório e Cinema Emergente o IndieLisboa exibirá alguns dos títulos mais promissores para o presente ano cinematográfico: 4:44 Last Day on Earth, de Abel Ferrara (a ser exibido no sábado, 28 de abril, no Grande Auditório da Culturgest pelas 21:30), Into the Abyss, de Werner Herzog (hoje às 21:30, na mesma sala, com repetição no dia 4 de maio às 19:00), Wuthering Heights, de Andrea Arnold (no dia 5 de maio às 15:00 na mesma sala), Alpis, de Yorgos Lonthimos (dia 3 de maio no Grande Auditório da Culturgest às 19:00 com repetição no dia 5, às 21:45, no Pequeno Auditório), Bonsái, de Cristián Jiménez (dia 2 de maio às 21:30 no Grande Auditório), Michael, de Markus Schleinzer (dia 1 de maio, às 21:30, na mesma sala) e Take Shelter, de Jeff Nichols (6 de maio às 21:30 na mesma sala).

O IndieLisboa terá a sua sessão de abertura na sala Manoel de Oliveira do Cinema São Jorge, exibindo Dark Horse, de Todd Solondz. O calendário completo das sessões pode ser consultado aqui.

Acompanharei o festival no Diário de Notícias, através da edição impressa e no blogue do jornal Sessões Contínuas, especialmente dedicada à cobertura de festivais de cinema, onde escreverei antecipações e críticas aos filmes visionados e sobre os quais farei n’O Sétimo Continente ligações diretas.
Michael, de Markus Schleinzer, é exibido no dia 1 de maio, às 21:30, no Grande Auditório da Culturgest.

sábado, abril 21, 2012

Em Busca do Cinema Perdido (2)
Sombras e Rostos — Cassavetes à procura da verdade


Se pensarmos numa figura no panorama do cinema moderno que represente com fidelidade o fascínio pelas pessoas e as suas intrigantes contradições não será de admirar que nos ocorra de imediato o nome de John Cassavetes (9 de dezembro de 1929 – 3 de fevereiro de 1989), cineasta que redefiniu não apenas o território do cinema independente norte-americano como também, talvez sobretudo, o modo de interpretar para cinema.

Também ele próprio ator, John, filho de pais imigrantes gregos (Katherine Cassavetes – que marca presença em duas das suas longas-metragens: Tempo de Amar (de 1971, Minnie and Moskowitz no seu título original) e Uma Mulher Sob Influência (1974) – e Nicholas John Cassavetes) participou em diversos títulos, “longas” e séries para o pequeno ecrã. Apesar do seu profícua obra como realizador, que começa em 1959 com o lançamento do seu primeiro filme (Sombras, ou Shadows), Cassavetes nunca abandonou o trabalho estritamente performativo, marcando presença em títulos como Fourteen Hours, filme de 1951 assinado por Henry Hathaway (e no qual Cassavetes participa num papel que não foi creditado), o certamente mais reconhecível Rosemary's Baby (1968), de Roman Polanski e alguma parte da sua própria filmografia como realizador: Too Late Blues (1961), A Child is Waiting (63), Husbands (70), o supracitado Minnie and Moskowitz, Opening Night (78) e Love Streams (filme de 1984 rodado fundamentalmente... na sua própria casa). 

Pormenor curioso, pois, dado o facto de Cassavetes se ter distinguido de todas as outras produções com a expressiva singularidade das interpretações dos atores nos seus filmes — elemento que, na verdade, servirá de ponto de partida para uma tentativa de descrição e reflexão sobre como o trabalho performativo nos filmes de Cassavetes e a forma como essas interpretações são filmadas traduzem a vontade do realizador em se aproximar do real e, por conseguinte, da sua ideia de verdade.

As ruínas do cinema de John Cassavetes

No princípio dos anos 50, desinteressado pela visão de que o seu futuro pudesse passar pela vida universitária, John Cassavetes, que assumiu ter sido influenciado pelos seus amigos (“Ei, John, acabámos de nos inscrever na American Academy of Dramatic Arts para nos tornarmos atores. Vem connosco, a escola está cheia de raparigas!”, ter-lhe-ão dito), estudou na prestigiada instituição, que viria a ser determinante no seu percurso ao ter-lhe apresentado os métodos do Actors Studio (associação fundada em Nova Iorque por Cheryl Crawford, Elia Kazan e Robert Lewis em 1947 e da qual ele é, mais tarde e numa audição, rejeitado). Os ensinamentos do professor Lee Strasberg terão sido particularmente relevantes para o percurso do futuro realizador, cuja motivação para a aproximação do intérprete com a personagem encarnada serviria para a direção de atores no seu trabalho. Depois de uma etapa na Brodway (onde conhece a futura mulher Gena Rowlands), Cassavetes passa, primeiro, do teatro para a televisão (onde ganha grande experiência) e, depois, para o cinema.

Entretanto, em Nova Iorque, quando cria com o amigo Bert Lane o Variety Arts Studio (numas águas-furtadas alugadas na Rua 48), Cassavetes, ao lado de 19 jovens, começa por partilhar os seus ensinamentos sobre métodos de interpretação e, após se ter apercebido das suas possibilidades artísticas, decide partir para algo inédito: a realização de um filme (Shadows).

Em rigor, a génese de Shadows (que foi por duas vezes filmado, a primeira versão em 1957, a segunda em 1959) tem tudo de “acidente criativo”, como o próprio designou a longa-metragem. Foi em plena aula do seu workshop: os traços gerais das personagens estavam por si definidos e, após ter decorrido um processo de improvisação que fascinou Cassavetes, a decisão foi tomada (“Ei, isso daria um filme fantástico”).

A improvisação continuou por definir, em complemento com a ideia de Cassavetes sobre as personagens (e não sobre a história, ou plot, propriamente ditos), o trabalho de construção dramática, já que foi feita durante o tempo da própria rodagem. A estrutura narrativa fica, então, à mercê da corrente de pensamento e de criatividade do próprio elenco em diálogo com Cassavetes, tal como, em relação à banda musical, o músico de jazz Charles Mingus (conhecido pelo seu ativismo contra o racismo – tema central em Shadows) constrói, livre e inspirado, a música do filme.


O método (que inspirou outros “métodos” de realizadores como João Canijo) não passa pela arbitrariedade do instante. De facto, é preciso deixar claro que o aspeto de improvisação dos filmes de Cassavetes passa uma ideia de que não foi planeado, potenciando um tipo de realismo próximo, enfim, da vida. Noutros filmes de Cassavetes pode dizer-se que havia, sem hesitações, um suporte escrito (o guião) que, no seu caso, servia de rascunho e de base para discussão com os atores. “Dependo deles”, diz o realizador, “para tirar para fora as qualidades literárias” do guião. É então o processo de diálogo misturado com a improvisação que confere novas ideias ao argumento já pensado – porque, como técnica e por si mesma, a improvisação é “inútil”.

Para além do mais convém, também, deixar a nota de que, dos dados de produção, há pormenores interessantes (dois exemplos: o facto da equipa ser composta por amadores e a forma como Cassavetes convenceu Jean Shepard a angariar dinheiro que servisse o orçamento do filme) e que nos dão conta como Shadows foi esse fenómeno singular que nos coloca numa espécie de virar de página da História do cinema norte-americano, ao ter aberto novíssimas possibilidades para um cinema longe de Hollywood – para um cinema que é, no fundo, claramente independente. E por independente não nos referimos a ser contra o sistema (o próprio realizador escrevia que “se lutares contra o sistema isso só significa que queres lá entrar”), mas ser livre, ser “o próprio patrão” e, talvez o elemento mais importante que é ressaltado pelo realizador, ter o filme como “um mistério e não como plataforma de saída.”

Se o elogiado Shadows (venceu o prémio da crítica no Festival de Veneza em 1960) nos coloca na porta de entrada do cinema de Cassavetes, Faces, que o sucede em 1968 após dois fracassos de bilheteira e de crítica (Too Late Blues e A Child is Waiting, ambos frutos de produções comerciais, moldadas pela indústria cinematográfica norte-americana então vigorante), pode ser entendido como um dos trabalhos mais representativos do modo como a performance é encarada pelo cineasta.

Para além de ser um regresso ao sistema independente, Cassavetes realizou com Faces um filme que é evidentemente de autor, pela simples razão de expressar algo que é eminentemente biográfico. Ou, por outras palavras: Faces é um filme que expressa o que verdadeiramente interessa a Cassavetes. E o que é isso? As pessoas, naturalmente. Relembramos o seu primeiro filme e as suas palavras: “acho que a contribuição importante que Shadows pode fazer para o cinema é que as pessoas vão ao cinema para ver pessoas: só se empatiza com pessoas, não com o virtuosismo técnico”.

A opção em cima descrita (de fazer um filme com meios escassos, de ser guiado pela improvisação e de contar com uma equipa amadora) teve as suas naturais consequências (Cassavetes recorda a inúmera quantidade de erros cometidos) mas é tão mais marcante quando pensamos que expressa a sua calorosa vontade de deixar de ser um medium para chegar a um fim (isto é, um ator) para passar a expressar em imagens aquilo que lhe interessava dizer ao seu público – para passar, enfim, a ser um autor no verdadeiro sentido da palavra.

E, de facto, o próprio cineasta confessava que a descoberta de um dado fundamental (“expressar-se a si mesmo, completa e absolutamente”) seria nada mais que um “desejo louco” que precisa de ser cumprido. A razão? Apontamos uma: Cassavetes referia que o cinema era, até um certo ponto, “uma investigação das nossas vidas” e, notemos, por “nossas” Cassavetes terá querido dizer “uma investigação da minha vida”.

Há qualquer coisa que une toda a filmografia do realizador (e mesmo o ator Peter Falk, amigo do realizador, declarou que “todos os filmes do Cassavetes são sobre o mesmo. Alguém disse: ‘O homem é Deus em ruínas’, e o John viu essas ruínas com uma clarividência que nem eu nem você podíamos tolerar”). Apetece, efetivamente, dizer que esta afirmação de Falk não podia ser mais verdadeira — mas que coisa é essa que move as personagens e os dramas do seu cinema?


Se a comunicação humana pode ser apontada, em termos latos, como foco temático principal nos filmes de Cassavetes, então os efeitos perversos e (auto-)destrutivos que dela podem decorrer podem ser vistos, mais especificamente, como elementos tratados, mais ou menos, em toda a sua obra. Ele próprio o diz: “Eu nunca vi alguém ir ter com outra pessoa e explodir-lhe a cabeça. Por que hei de falar sobre isso? Mas já vi pessoas a destruírem-se da forma mais simples. Eu já vi pessoas que se afastam. Eu vi pessoas que se escondem atrás de ideias políticas, atrás de drogas, atrás da revolução sexual, atrás do fascismo, atrás da hipocrisia — e eu próprio fiz essas coisas todas. Então eu posso entendê-los”, acaba por confessar.

Assim se descobre o lado biográfico de que há pouco se falava e se começa a perceber a tentativa de aproximação de Cassavetes da sua ideia de realidade que, para si, se opera se se falar de algo que já se conhece ou experimentou. Recordemos o que Peter Falk dizia sobre essas “ruínas” que não podemos tolerar ver ou tomar conhecimento delas: o cinema de John Cassavetes está realmente próximo de uma ideia não só representadora de desconforto como também, talvez sobretudo, provocadora desse sentimento. Recordando a primeira vez em que passa a estar por detrás da câmara, John Cassavetes escreveu algo que define, ao mesmo tempo, o objetivo do seu próprio trabalho: “Acredito que devemos ir para todos os sítios em que estamos desconfortáveis e provarmos a nós mesmos [do que somos capazes], porque nalgum dia vais ter que provar a ti mesmo [do que és capaz].”

A noção de desconforto surge também quanto ao tema da comunicação: John Cassavetes admite que a maioria dos casais “nem sequer estão conscientes de que não comunicam”. Esta ausência de diálogo, contextualizada numa época de “comunicação em massa e instantânea” (que, ainda, é a de hoje), preencherá, por exemplo, o centro dramático de Faces (o casal à beira da ruína).

Trabalho de atores: histeria e loucura

No mais curioso dos paradoxos, uma das características que mais bem definem o cinema do realizador é o excesso de diálogo, expressão do interior desordenado das personagens. E, numa curiosa justificação dada por Cassavetes relativamente ao facto de ter feito Shadows, explica que o realizou “porque como ator estava frustrado por não poder expressar qualidades humanas e ter de expressar qualidades que diziam respeito e estavam mais preocupadas com o plot”. Ora se a palavra serve normalmente de medium para o interior da personagem, então os filmes de John Cassavetes transformam o diálogo numa espécie perturbadora de duelo entre o discurso (eu sou… eu sinto…) e a atitude (que é muitas vezes discordante).

Mas a significação da palavra é feita raras vezes a partir do seu lado literal. Cassavetes privilegia, acima disso, o tom com que a coisa é dita. Sobre o assunto, o professor George Kouvaros (autor do livro Where does it Happen?), escreve que, quando isso acontece, “a linguagem e a fala são explicitamente processados como atos performativos em que a entoação, sonoridade e a textura acústica das palavras são primordiais. Nos filmes de Cassavetes o som da fala é apresentado em close-up, abrindo os nossos ouvidos para o que Barthes descreve como "toda uma estereofonia da carne profunda: a articulação do corpo, da língua, não a do sentido, da linguagem".


Estas interpretações feitas em cena são levadas a um limite característico do cinema de John Cassavetes. As performances (histéricas e à beira da loucura) dos atores funde-os com as próprias personagens quando confrontados com a vertiginosa passagem do tempo — as cenas nos seus filmes são sempre levadas à exaustão e cada discussão é vista não no seu essencial mas a partir de todo o seu desenvolvimento. Ao mesmo tempo não deixamos de sentir uma espécie de stasis do teatro contemporâneo, uma sensação de que nada está a acontecer. Essa aproximação do palco (e das movimentações das personagens no espaço), apesar do naturalismo dos décors, remete-nos para o conceito barroco referido por Kouvaros de theatrum mundi — se nos lembrarmos da ideia de rotina impregnada em Faces (que, curiosamente, estava pensada para ser uma peça de teatro), por exemplo, se nos lembrarmos, também, daquele final aberto (a escadaria de casa, o casal move-se subindo-a e descendo-a), ficaremos com a sensação de que entramos num irremediável loop, de uma perturbante repetição (e que tem a ver com o facto de Cassavetes mostrar o conformismo e, no limite, uma ideia de absurdo que terá algo a ver com as ruínas que Peter Falk apontou).

Cassavetes contra o virtuosismo

A mise-en-scène dos filmes de Cassavetes é, pois, sustentada fundamentalmente pelo trabalho performativo (“Cassavetes só mantém do espaço aquilo que cola ao corpo, compõe o espaço com bocados desconectados que só um gestus liga”, escreveu Gilles Deleuze). O realizador limita-se a exercer uma operação de olhar para o que está acontecer. Esse olhar terá muito a ver, naturalmente, com a ideologia naturalista do cinéma vérité. A mistura entre um lado formalmente próximo do documentário (que reproduz o real) e da ficção (que produz um real) contribui ainda mais para o nosso conhecimento sobre a obsessão para conseguir um efeito de autenticidade. Nos seus filmes, as personagens são filmadas como se in loco e na “imprevisibilidade” do momento, com uma objetividade de um certo tipo de documentaristas (como Lionel Rogosin, que Cassavetes considerava o “maior documentarista de sempre”).

Uma das maiores reprovações ao cinema de Cassavetes prende-se, talvez, com esse lado completamente anti-forma que move o seu cinema. Numa primeira versão filmada de Shadows, Cassavetes justificou a “impureza” do filme com o virtuosismo técnico — “estava cheio de ângulos e cortes extravagantes, e muito jazz no background… ficou um filme completamente intelectual — e por isso menos humano. Tinha ficado apaixonado com a câmara, a técnica, os planos bonitos e com a experimentação por si mesma…”, escreveu, acrescentando o facto de algumas interpretações terem sobrevivido aos seus truques cinematográficos foi o aspeto que o reanimou. De resto, na segunda versão e nos restantes filmes os aspetos mudaram radicalmente (do formalismo para a quase ausência de forma), mantendo características como a montagem, que contempla um tempo linear.


Apesar de tudo, será interessante notar como a câmara, que é sempre usada “à mão”, se assume como uma espécie de híbrido: ora funcionando como câmara-testemunha, ora como servindo os propósitos dramáticos do filme. Em Faces, por exemplo, notamos a presença de uma câmara que parece não estar lá, assumindo a posição de olhar curioso não só pela ação a decorrer mas como por pormenores, que não interessam ao drama mas sim à caracterização das personagens (terá sido por isso que Kouvaros lhe chama uma “câmara híper-atenta”). Há um plano que merece destaque: dois atores de pé e de perfil para a câmara, conversam e, no espaço existente entre eles, a personagem de Gena Rowlands, sentada no sofá, mostrando-se enfastiada e solitária. Por outro lado, Faces dá-nos a ver momentos em que a câmara se torna ou subjetiva (há um momento em que se coloca na posição da personagem de Lynn Carlin e os restantes atores olham para si — ou seja, para a objetiva da câmara) ou potenciadora do drama (na reta final, quando Lynn Carlin desperta do desmaio, a câmara aproxima-se dela de forma abruta, desfocando e focando, mostrando a desorientação sentida pela personagem).

Criando o gestus

Pessoas: é isto que, afinal de contas, lhe interessa e são elas que quer filmar, com intenção de ser absolutamente imparcial, deixando a possibilidade de julgamento para o espectador. “Quando estou a trabalhar num filme proíbo-me a mim mesmo de ter opiniões e, para além disso, eu não realmente nenhumas”, era esta o imperativo do realizador, fascinado pelos corpos que filmava.

Assim, sendo a fisicalidade das relações interpessoais a grande ênfase do cinema do realizador (como apontou Kouvaros), convém não ficar indiferente a esta demanda, em que a história deve ser segregada pelas personagens (e não devem ser consequência do plot). O relevo apaixonado dado às pessoas resume, tal como Gilles Deleuze escreve no seu A Imagem-Tempo, “a exigência de um cinema dos corpos: a personagem é reduzida às suas próprias atitudes corporais, e o que tem de sair é o gestus, isto é, um ‘espetáculo’, uma teatralização (…) que vale para qualquer intriga.”

Cinema de corpos, também entendido cinema de revelação, como Jean-Luc Comolli designou, já que as personagens dos filmes de Cassavetes “constituem-se gesto a gesto e palavra a palavra, à medida que o filme avança, elas fabricam-se a elas próprias, a rodagem agindo sobre elas como um reveladora, cada progresso do filme permitindo-lhes um novo desenvolvimento do seu comportamento, da sua duração própria coincidindo muito exatamente com a do filme”.

É assim que, pois, o mesmo autor diz que o realizador usa o cinema “não só como forma de reproduzir ações, gestos, caras ou ideias, mas como uma maneira de os produzir” — e isto torna-se particularmente importante quando pensamos que o trabalho dos filmes de John Cassavetes atinge a verdade através da ficção, de um trabalho meticuloso de mentiras. Não será certamente por acaso que muitos momentos do filme sejam as personagens a representar outros papéis, sendo que a própria performance adquire um lado autorreflexivo. “Dizer a verdade como a vejo não é dizer necessariamente a verdade”, escreveu o realizador. Sim, para Cassavetes não é dizendo a verdade que a atinge, mas aproximando-se da sua vida e criando novos sistemas em aberto. Afinal, Faces foi para si marcante por se ter tornado um way of life.

Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular História do Cinema IV (2011-2012), lecionada por Luís Fonseca, da Escola Superior de Teatro e Cinema.

Fontes
2. John Cassavetes no portal inglês e francês da Wikipedia
4. Cassavetes on Cassavetes - John Cassavetes. Seleção de Ray Carney, 1989
5. Where does it happen? – George Kouvaros, University of Minnesota Press, 2004
6. A Imagem-Tempo – Gilles Deleuze, Assírio & Alvim, 2006
7. Cahiers du cinéma, n.º 205, - Jean-Luc Comolli, Outubro de 1968

quarta-feira, abril 18, 2012

Woody Allen e os filmes-postais

Férias em Roma, de William Wyler



No seguimento da sua maratona de realização de vários filmes, sendo que a maior parte deles insere-se no género da comédia romântica (uma por ano), Woody Allen prepara-se para estrear To Rome with Love, que ainda não tem data de estreia prevista para as salas de cinema portugueses (especula-se, contudo, uma estreia no Festival de Cannes - a lista dos filmes selecionados é divulgada amanhã em conferência de imprensa). 

A memória do desinspirado Meia-Noite em Paris ainda está bem presente e, na primeira parte do trailer (em baixo), não é também de admirar que venham à memória os planos deste primeiro: os planos do monumento a Vítor Emanuel II, do Coliseu de Roma ou das Termas de Caracala podiam facilmente ser substituídos pelas primeiras imagens do trailer (aqui) de Midnight in Paris (a Torre Eiffel, o Arco do Triunfo…). Ora se já incomodava esta insistência básica de contextualizar o público, com imagens profundamente banais, no local em que a ação decorre, teme-se, cada vez mais, que Woody Allen repita os lugares-comuns a ele associados (se não contarmos com Londres, o drama das duas cidades europeias que ele filmou – a saber: Barcelona e Paris – parece ser resultado de uma série de circunstâncias relacionadas com os clichés dos habitantes destas capitais). E digo “cada vez mais” exatamente porque nos têm chegado notícias que em nada ajudam a expectativa para este To Rome with Love.

De acordo com o El País, a crítica italiana devastou o filme ao ponto de o considerar medíocre e o pior título da carreira do cineasta norte-americano. Citando o artigo do jornal espanhol: 
La principal acusación que le hacen a la cinta: el ser una sucesión de tópicos de la Italia más pintoresca, en la que no falta la mozzarella, la buena cocina, las secretarias de grandes tetas y marcando culo en minifalda que se entregan felices a su jefe, la pareja de provincianos recién casados, las insoportables notas del acordeón entonando el 'arrivederci Roma'...
Para piorar o cenário, o Diário de Notícias publicou, no passado dia 16 de abril, uma notícia que confirma o pior dos receios. Evidência perturbante: a nossa reação é surpreendente precisamente porque... já não ficamos surpreendidos. 

Italianos dizem que Woody Allen filmou um país que já não existe 
‘ To Rome With Love’ perpetua estereótipos sobre a Itália, dizem os jornalistas 
Woody Allen quis fazer um filme que fosse uma declaração de amor a Roma, mas na ante- estreia de To Rome with Love, na sexta-feira, na capital italiana, o americano teve de explicar aos jornalistas porque é que os filmes estrangeiros perpetuam os antigos estereótipos da Itália como o país do dolce far niente
“Os americanos têm uma relação muito afetiva com a Itália”, disse Woody Allen. “Pensam na Itália como um país que é muito acolhedor, um sítio onde é fácil viver porque aqui se aproveitam todas as coisas boas da vida.” 
Este olhar tão positivo e superficial sobre um país que enfrenta uma crise económica, com pesadas medidas de austeridade, incluindo mais impostos, subida do desemprego e aumento da idade da reforma, provocou algumas objeções entre os jornalistas italianos que estavam na conferência de imprensa. O realizador respondeu que apenas tentara fazer um filme de entretenimento cuja ação se passa em Roma, e não fazer qualquer retrato social do país. “Quando venho fazer um filme para um local, dou apenas a minha impressão dele, as coisas que me tocam por serem dramáticas ou cómicas. Não conheço a política ou a cultura italianas”, admitiu. 
Além do próprio Woody Allen, que regressa ao grande ecrã depois de Scoop ( 2006), To Rome With Love conta com as participações da espanhola Penelope Cruz, do italiano Roberto Benigni ( realizador de A vida é Bela) e dos americanos Alec Baldwin e Jesse Eisenberg. Todos estiveram na apresentação do filme, em Roma, e Baldwin corroborou a visão do realizador sobre a cidade que aos olhos americanos não pode deixar de parecer exótica, intrigante e ao mesmo tempo confusa. 
Faltou à conferência de imprensa a atriz Ellen Page que interpreta o papel de filha de Woody Allen – um encenador de ópera que viaja até Roma para conhecer o noivo da filha e que descobre que o pai deste é, afinal, um grande cantor de ópera mas que até então só tinha oportunidade cantar no chuveiro. A partir daqui, várias histórias se vão cruzar. 
Nos últimos dez anos, este é o sétimo filme que Allen realiza numa cidade europeia – depois de Matchpoint, Scoop, O Sonho de Cassandra, Vais Conhecer o Homem dos Teus Sonhos ( Londres), Vicky Cristina Barcelona (Barcelona) e Meia Noite em Paris ( Paris), com que este ano ganhou o Óscar de Melhor Argumento Original. E agora, Roma. “Estas cidades são muitos semelhantes a Nova Iorque no que toca a energia e a cultura. É fácil morar aqui e encontrar histórias”, explicou o realizador. No entanto, revelou que o seu próximo filme será rodado sobretudo em São Francisco mas também em Nova Iorque, nos EUA, e não em Copenhaga ( na Dinamarca), como chegou a ser falado. 
Para Roma com Amor estreia em 600 salas italianas na próxima sexta- feira. A partir de junho, o filme chega aos Estados Unidos e a outros países. Mas ainda não é conhecida a data estreia em Portugal.
Maria João Caetano  

quarta-feira, abril 11, 2012

No princípio era a...



Também em "Tabu" de Murnau, que podia ter sido um filme sonoro, isto é, que não necessitava, mas que precisava de ser um mudo, a palavra está sublimada nas coisas mostradas, tendo sido habilmente enjeitado pelo mestre alemão o uso supletivo das tradicionais caixas de texto ou separadores do mudo. Miguel Gomes não dispensa a palavra, mas o seu som é só prerrogativa do narrador em off - o Ventura no café, hoje. O que torna esta narração encantatória e não só uma mera "ferramenta" narrativa é precisamente a sua colagem a espantosas imagens mudas-sonoras que resgatam do esquecimento paisagens imaginadas de uma África lendária.
Aproveito este excerto da crítica escrita pelo Luís Mendonça (aqui) para falar do problema para mim fundamental de Tabu, de Miguel Gomes, esse objeto de grande beleza e incisivo no que respeita a história coletiva da memória portuguesa (como já tinha sido, embora de maneira mais interessante, em Aquele Querido Mês de Agosto). Trata-se de um obstáculo simples: quer-se mostrar e remeter ao mudo de Murnau (da sua obra-prima Tabu) mas entendemos as sequências do “Paraíso” como um fluxo de imagens “imaginadas”, como quem ouve uma “história de adormecer”. Tal como O Artista se limitou a ser uma galeria de imagens de leitura básica para dispensar a palavra, também este Tabu dispensa o dispositivo do diálogo diegético para servir uma constante… voz em off! Como admirar aquelas imagens (resultado do magnífico trabalho de Rui Poças) se a sua (possível) profundidade é dissipada por um comentário contínuo e redundante? O mesmo sucede, afinal, com um jogo de futebol exibido na televisão, como João Lopes reflete aqui:
Em todo o caso, mesmo quando os comentários são serenos e interessantes, fica quase sempre a sensação de que se olha pouco e se escuta ainda menos. Na verdade, nestes como noutros casos, a televisão, dita um fenómeno de imagens, acaba por ser conduzida pelo som de quem fala. Como se, enfim, a televisão receasse a pluralidade interior de qualquer imagem e necessitasse de lhe impor um sentido único, definitivo e... aceitável.

sábado, abril 07, 2012

Os filmes perdidos de Andrei Tarkovsky

Na recente visita ao BFI (British Film Institute), em Londres, descobri um livro chamado Time Within Time (ao lado), que é a compilação de nada menos que… os diários de Andrei Tarkovsky, escritos entre 1970 a 1986 (ano da sua morte)! Traduzido do russo por Kitty Hunter-Blair (que, como a própria indica numa nota inicial, já tinha tido a oportunidade de traduzir, entre 85-86, o seu livro Esculpir o Tempo), os diários do realizador soviético reúnem desde reflexões sobre a arte e descrições sobre o processo de pré-produção e rodagem dos seus filmes a relatos confessionais sobre as personagens da sua vida e família e listas de compras e de coisas a não esquecer.

Entre as inúmeras curiosidades, descobrimos que Tarkovsky era, sobretudo, alguém com fome de filmar sempre que pudesse mas que, por circunstâncias que lhe eram exteriores (o relato da rodagem de Solaris é particularmente doloroso), nunca pôde criar mais que as sete longas-metragens que conhecemos da sua autoria. “Num bom período de tempo poderia ter chegado a ser milionário. Ao fazer dois filmes por ano desde 1960 poderia ter feito já 20 filmes… Mas não há hipótese com os nossos idiotas”, confessava numa entrada escrita a 7 de setembro de 1970. 

Para não se esquecer e comprovar a sua energia, o realizador registava ideias para inúmeros projetos futuros. Algumas ideias são quase indecifráveis (sendo que Tarkovsky apontava por vezes títulos com ideias que guardava para si). Traduzi alguns títulos para português (quando as obras em que se baseia estão disponíveis em língua portuguesa), outros deixei com a designação traduzida por Hunter-Blair

  1. Kagol (sobre o secretário pessoal de Adolf Hitler, Martin Bormann); 
  2. Physicist — dictator (diferentes versões); 
  3. The House with a Tower
  4. Echo Calls
  5. Deserters
  6. José e os seus Irmãos (adaptação do romance de Thomas Mann); 
  7. Matryona’s House (adaptação do conto de Aleksandr Solzhenitsyn); 
  8. Dostoiévski (Tarkovsky, que considerava que este filme poderia ser a síntese “de tudo aquilo que quero fazer em cinema”, confrontava-se com o dilema de adaptar os livros do escritor russo, como O Idiota – que chega a planear e a pensar fazê-lo em sete partes para televisão –, O Adolescente ou Crime e Castigo, ou de realizar um filme sobre o próprio criador); 
  9. Joana d’Arc, 1970 (depois viria a registar de novo a ideia com o título Nova Joana d’Arc e, também mais tarde, retomou a ideia como “o último dia de Joana d’Arc”); 
  10. A Peste (adaptação do romance de Albert Camus); 
  11. Two Saw the Fox
  12. The Last Hunting Trip ou The Clash (argumento); 
  13. Catastrophe (argumento); 
  14. The Waiting Room
  15. Ariel (que também intitulou de The Flying Man e de The Renunciation, argumento que Tarkovsky chegou a co-escrever com Fridrikh Gorenshtein, baseado no romance de ficção científica de Alexander Beliaev, e que nunca viu a luz do dia. “Poderá ser um filme enorme e tradicional com uma inclinação anti-intelectual e com um final grandioso”, escreveu a 8 de maio de 1972); 
  16. Thomas Mann (Tarkovsky voltou a viver um dilema semelhante ao do projeto Dostoiévski, dando a entender, pelo título com o nome do escritor, que gostava de realizar um filme sobre Mann. Contudo, há com mais frequência notas sobre adaptar para cinema Doutor Fausto, o seu livro estrangeiro preferido, cuja produção seria discutida com a então República Federal da Alemanha) 
  17. A Morte de Ivan Ilitch (adaptação do conto homónimo de Lev Tolstoi, que era para si o seu livro russo preferido, a par de Crime e Castigo, de Dostoiévski); 
  18. The Horde
  19. Hamlet (versão para cinema do texto de Shakespeare, já que tinha já encenado a peça em 1977); 
  20. Hoffmanniana (Tarkovsky chegou a escrever um argumento com este título baseado na vida e obra do escritor alemão E. T. A. Hoffmann, e que nunca viria a ser filmado).

domingo, abril 01, 2012

Descobrir os afetos
— um breve balanço do 26th BFI London Lesbian & Gay Film Festival

Terminou hoje a 26.ª edição do London Lesbian & Gay Film Festival, festival de cinema queer que decorreu no BFI (British Film Institute) na capital inglesa. Iniciado em 1986 como um conjunto de projeção de vários filmes que abordassem sexualidades não-normativas (entendam-se: homo/bi/transsexualidade), foi renomeado em 1988 e sofreu um ajustamento na duração nos dois últimos anos (em 2011, de duas semanas o festival passou a ter uma e, em 2012, passou a ter 10 dias). Após a redução do orçamento no ano passado, o festival gay e lésbico de Londres viu um aumento feliz de 30% que permitiu que fossem programados ao todo 53 longas-metragens e 67 “curtas” (não há secções competitivas). Este ano tive a oportunidade de fazer uma breve (embora não total) cobertura do festival (que iniciou a 23 de março) e do qual farei um breve apanhado.

Digamos de imediato que a estreia nas longas-metragens do realizador belga Bavo Defurne (conhecido por ter assinado nove curtas nos anos 90) ficará recordada como a mais interessante do programa. O nome é curioso: North Sea Texas (título original: Noordzee, Texas), e esteve programado para ser hoje exibido como filme de encerramento do festival. Compreendemos porquê.

Ao recuperar, sem medos, a linha de construção narrativa do melodrama, Bavo Defurne (que também co-escreveu o filme com o produtor Yves Verbraeken) traz-nos um olhar sobre o primeiro amor (tema de sempre difícil abordagem, tal será a facilidade de cair nos clichés mais simplistas) entre dois rapazes, entre a puberdade e o cume da adolescência. Através de uma estrutura convencional e, a dado momento, algo previsível, Defurne ataca-nos com a complexidade do amor (tanto que o trata não só através da relação dos miúdos como também a partir da mãe do protagonista, que representa o falhanço romântico e familiar, e da irmã do seu amado, que por sua vez… é apaixonado pelo herói). 

Filme de múltiplos cruzamentos, portanto, que parece querer comprovar que a matéria de que somos unidos é feita de algo que não é material (o facto do protagonista viver com a mãe na mesma casa não os faz unidos), mas que é da ordem do sentimental e do contraditório. Apesar desta convicção forte, são raras as vezes que Bavo Defurne consegue exalar a energia própria das primeiras paixões — resultado de uma atração sexual mal resolvida (do herói por um cigano que o vem visitar a casa), da própria configuração do protagonista (quase sempre perdido dentro do seu próprio pensamento, quase nunca exteriorizando o que sente…) e, talvez sobretudo, das fracas interpretações (sobretudo a de Jelle Florizoone, o referido herói). Defurne demonstra também um gosto evidente em filmar interiores (tudo está no lugar certo, tudo exprime uma vontade de controlo absoluto), interiores que, por sua vez, não demonstram ponta de naturalismo (e nisso não vemos mal nenhum). A direção artística é da responsabilidade de Merijn Sep, cujo gosto pelos contrastes de cor foi registada pela destreza de Anton Mertens, diretor de fotografia já experiente.


Por sua vez, Notre Paradis (última fotografia do post), sexta longa-metragem do francês Gaël Morel, começa por surpreender com essa potência da paixão cega (entre dois prostitutos, encarnados por sedutores Stéphane Rideau, que pudemos ver em Presque Rien de Sébastien Lifshitz, e Dimitri Durdaine, que faz com este filme a sua estreia no cinema), energia essa que está ausente em North Sea Texas. Contudo, surpreende também, a partir da saída de Paris, pela sua assustadora vulgaridade que nos remete para soluções dramáticas e formais características de uma telenovela (e que vão desde introdução a personagens que nada tem de verosímeis – mas que querem ter – a assassinatos gratuitos e mal justificados…).

Ora, se vimos Notre Paradis a querer fugir às convenções mais gastas do cinema queer (a saber: descoberta da sexualidade, o coming out ou a discriminação social negativa como obstáculo de um relacionamento amoroso), o também francês American Translation segue o mesmo objetivo e, curiosamente, através de afinidades dramatúrgicas com o primeiro. Desde logo porque anda em volta do sempre estimulante tema da obsessão sexual — em ambos os casos ligado à necrofilia. Se Notre Paradis quis entrar no terreno lamacento da “morte moral” (um prostituto que, consciente de que por causa da sua idade já não pode exercer a sua atividade, assassina clientes como vingança…), American Translation (fotografia em cima) parece assumir com felicidade que a pulsão pela morte (de prostitutos gay) por parte do protagonista é da ordem do estritamente animal.

Tal como o protagonismo se divide em dois (extraordinários Lizzie Brocheré e Pierre Perrier), a realização é também da responsabilidade de dois olhares: Pascal Arnold (que escreveu o argumento) e Jean-Marc Barr (ator, entre diversos outros filmes, de Dogville e de Manderlay, de Lars von Trier). Admire-se a frontalidade desta relação atípica e heterossexual, marcada pelo sexo e por uma desregulada paixão, sim, mas é de lamentar que American Translation não consiga sair do seu núcleo narrativo vazio e repleto de cenas assimétricas entre si (em credibilidade e utilidade à progressão dramática).


Já a Palma Queer do Festival de Cannes Beauty (título original: Skoonheid, fotografia em cima), segunda longa-metragem do sul-africano Oliver Hermanus, será recordada como um caso notável do festival — uma extraordinária obra de repressão social e sexual (neste caso de um homem conservador, homofóbico e casado atraído… pelo filho de um amigo). Partindo de duas magníficas interpretações (Deon Lotz, o protagonista, e Charlie Keegan, o objeto de atração sexual), Hermanus filma a vida em sociedade com uma contenção e obsessão hitchcockiana — por outras palavras: situando-nos sempre na iminência da violência e da tragédia de cairmos para o abismo. Filme de forte formalismo (o enquadramento de Hermanus é sempre pensado a rigor e fixado para se restar mais uns segundos do que pensamos ser necessário), sim, e também de perturbante realismo.

Nas curtas-metragens não houve nada de assinalavelmente bom: se não contarmos com a brasileira Eu Não Quero Voltar Sozinho (que pode ser vista aqui e foi opinada aqui), Deep End, do canadiano Bretten Hannam, e Coming Out, do sueco Jerry Carlsson, desiludiram por surgirem como anúncios panfletários pró-aceitação; por sua vez, Prora, do suíço Stéphane Riethauser, cansa pela sua banalidade (nem a provocação nazi, que lá está de modo forçado, salva o filme); e, por fim, Yearbook, do norte-americano Carter Smith, pretende personificar a câmara de uma sessão fotográfica para o livro de finalistas de liceu e a testemunha dos segredos dos estudantes que fotografa (segredos que estão ligados ao descuido pelos métodos contracetivos) — “curta” que acaba por nos marcar pelo seu tom surrealista (na reta final), mas que não convence por causa da sua brevidade. Recordaremos Performance Anxiety (trailer), do norte-americano Reid Waterer, como a mais despretensiosa (divertida mas razoável) curta-metragem, já que explora o momento em que dois atores heterossexuais se deparam com o facto de que terão que... simular sexo gay.

O festival exibiu também quatro longas-metragens que tivemos já a oportunidade de ver em Portugal no ano passado: The Ballad of Genesis and Lady Jane (vencedor do IndieLisboa, crítica aqui), o documentário I Am (crítica) e as ficções The Mountain (crítica) e Ausente (crítica), as três projetadas na passada edição do Festival Queer Lisboa.

A cena de Gaspar Noé (2): Carlos Pereira


De forma a coincidir com o mês da estreia do aguardado Enter the Void – Viagem Alucinante, pedi a alguns colegas e bloggers cinéfilos que elegessem “a” cena do cinema de Gaspar Noé, ou noutros termos: a cena que mais admiram em toda a sua filmografia. Carlos Pereira, um dos realizadores do documentário Um Filme Português (2011) e estudante de cinema em Barcelona, respondeu ao desafio. Muito obrigado, Carlos, pela tua colaboração.

★★★★★

Gaspar Noé parece acreditar que a violência da vida se define em relação direta com a violência da mortalidade. Em “Enter the void”, tal como acontecia em “Irreversível”, o corpo é apenas um veículo da alma: meio de transporte sujo, desorientado, influenciável e condenado. Não é por acaso que o ponto de vista de “Enter the void” não é o de Oscar, o seu protagonista, mas o da sua alma. A câmara de Noé começa num absoluto ponto de vista subjetivo para, mais tarde, deambular enquanto energia numa cidade de Tóquio vista do céu. 

Como filmar a morte? Para Noé, a morte é sempre algo de inesperado, abrupto, que não oferece quaisquer hipóteses de redenção. Daí que a última imagem vista pelos olhos de Oscar após ser alvejado seja tão fascinante: a sua última visão da vida é um confronto com o seu próprio sangue, com a sua efémera materialidade. A viagem começa aí, com uma potência espiritual que se vai perdendo e encontrando no singular espaço das memórias afectivas. Sem coordenadas geográficas, o lugar da reminiscência transforma-se na única prova da irredutibilidade humana.