quinta-feira, março 22, 2012

Na rapidez está a luz

Quando, há dois anos e no Festival de Cannes, Gaspar Noé apresentou uma versão inacabada do seu Enter the Void – Viagem Alucinante, ainda sem créditos, o autor deparou-se com o protesto de que o filme era demasiado longo. Perante a reação generalizada, o realizador tomou uma decisão imprevista e simbólica: “se pusermos os créditos no filme”, terá dito, “vamos fazê-los da forma mais rápida e gráfica possível”. O resultado, da autoria do realizador alemão Thorsten Fleisch, está à vista.

Numa decisão semelhante mas ainda mais fervorosa e radical, Jean-Luc Godard, que dispensa apresentações, condensou, ao som de Costa Serena de Arvo Pärt, a totalidade das imagens do seu Filme Socialismo (em cima)… em 1 minuto e 14 segundos!

Enfim, falo dos dois filmes motivado por duas simples razões. A primeira: a miserável conceção de Estreia da Semana, programa proposto para ser lançado no canal privado Hollywood, que insulta qualquer profissional em cinema pelo simples facto de um dos apresentadores ter publicamente declarado que se iria apresentar e opinar sobre filmes… sem os ter visto! Para ler com mais profundidade sobre o assunto recomendo a leitura da entrevista aos apresentadores pelo Diário de Notícias e as reflexões escritas por João Lopes, Luís Mendonça e Nuno Reis.

A segunda razão: já que, como Luísa Barbosa, ex-apresentadora do 5 para a Meia-Noite (RTP2) e, no futuro, figura de Estreia da Semana (Hollywood), revela que “toda” a pesquisa dos colaboradores do novo programa se baseará essencialmente em trailers de novos filmes, convém aligeirar o seu (certamente já muito árduo) trabalho e deixar um magnífico teaser. Tem 34 segundos, é norte-americano e é… Cronenberg

Esta breve apresentação de Cosmópolis (estreia entre nós já a 31 de maio) saiu há poucos pares de horas e atira-nos logo com três nomes fundamentais: Pattison (sex symbol do Twilight que vai regressar como o multimilionário Eric Packer), Cronenberg (que retoma os temas essenciais da sua filmografia) e DeLillo (em cujo excecional romance homónimo se encontra baseado o filme). O teaser sintetiza, através da brevidade das suas imagens, o tema da fugacidade da vida que constitui o foco narrativo central e impressiona-nos com o seu sentido de perturbadora ambiguidade — num dado momento parece-nos ver um gigantesco animal nas ruas de Nova Iorque. Não, não é um dinossauro, mas… uma ratazana.


quarta-feira, março 21, 2012

A cena de Gaspar Noé (1): Bruno Leal




De forma a coincidir com o mês da estreia do aguardado Enter the Void – Viagem Alucinante, pedi a alguns colegas e bloggers cinéfilos que elegessem “a” cena do cinema de Gaspar Noé, ou noutros termos: a cena que mais admiram em toda a sua filmografia. Bruno Leal, autor do tumblr pós-filme, respondeu ao desafio. Muito obrigado, Bruno, pela tua colaboração.

★★★★★

Não é fácil aceitar que o sofrimento também pode ser belo… é difícil. 
É algo que só poderás compreender se mergulhares a fundo dentro de ti.
Rainer Werner Fassbinder

Vi-o em casa, num pequeno ecrã de televisão, quase uma década após a sua estreia, e ainda assim, teve em mim repercussões irretorquíveis. Não voltarei a vê-lo. Quero apenas guardar na memória uma das mais marcantes experiências que tive até hoje.

Ponderei durante algum tempo optar por uma cena de qualquer outro filme menos conhecido do realizador: Carne, Seul Contre Tous, We Fuck Alone (que aliás, parece todo uma única cena)… mas aparte dos seus êxtases, nenhum tinha “a” cena que pretendia, e foi inevitável a eleição da infame cena de violação a Alex (Monica Bellucci) em Irréversible, filme-choque causador de reacções polares, é amor ou ódio aqui, e ninguém lhe é indiferente.

Muitos conhecerão a cena sem terem visto o restante conteúdo do filme, outros tantos terão visto o filme por conhecerem a cena: “É a famosa cena”, dizem.

Porém, define ela todo o filme? Não, Irréversible é mais do que um grotesco acto de transgressão, mas é esta a cena que definiu o cinema de Gaspar Noé.

A audácia desta cena tem-se logo pela exposição, neutra, de um aspecto humano que a arte e o homem persistem em ocultar. Aqui dada sem moralismo, prefere-se uma violação como uma trágica experiência vivida, irreparável, irreversível como o tempo. Algo que é perceptível logo quando Alex entra no túnel: ninguém, nem mesmo o espectador, escapará à fatalidade daquele primeiro verdadeiro rasgo de proximidade que temos com esta personagem.

Quando entramos na sua pele, o flagelo procede-se e é-nos devolvida a confirmação do repúdio a um acto que muitos só terão visto ou experienciado nesse ecrã.

Naqueles onze eternos minutos, o espectador revê-se atormentado, tal como a protagonista. Ambos são violados ininterruptamente, dilacerados naquele único momento, como se tudo fosse real e não houvesse remanescente salvação. Pois, há aquela figura que emerge no fundo, que caminha, olha, pára, recua e desaparece.

Há aqui uma vertente humana (assentada em restantes cenas da película) que impede a gratuitidade da violência, elemento vital na obra do franco-argentino, ainda que se constate um sádico prazer na sua expressão radical, e se veja a beleza que o cineasta almeja no sofrimento. 

Não apenas um plano-sequência com exímios trabalhos de imagem e som mas antes, como Irréversible no seu todo, uma viagem inesquecível, para bem ou para mal, ao interior de cada um de nós. E isto é o cinema. Esta é “a” cena de Noé.

Entrevista a Gaspar Noé

As salas de cinema nacionais assistiram recentemente à estreia de Enter the Void - Viagem Alucinante, filme com o qual Gaspar Noé competiu em Cannes (numa versão com maior duração). No âmbito da sua última visita a Portugal feita para a promoção desta longa-metragem, o Nuno Galopim (Sound + Vision) e eu tivemos a oportunidade de falar com Noé, entrevista que serviu de base para um artigo escrito para o Diário de Notícias. Publico de seguida a entrevista integral ao realizador francês.


Numa entrevista disse que o Irreversível foi um “assalto ao banco”. Porquê?

Na verdade estava a preparar Enter The Void - Viagem Alucinante com uma equipa de produção alemã, antes de Irreversível. E de repente a pré-produção caiu por terra. Estava em Paris, nesse verão, à espera para fazer outra coisa qualquer. Encontrei o Vincent Cassel e a Monica Bellucci e propus-lhes um outro filme, e eles aceitaram. Mas era um filme erótico... Quando leram o argumento decidiram, no último momento, que não o queriam fazer, mas entretanto já tinha o dinheiro para fazer esse filme. Por isso propus que se fizesse o filme com a história contada ao contrário. Todos pensaram que era uma piada... Mas seis semanas depois estávamos em rodagem. Digo que foi um assalto ao banco porque, habitualmente, primeiro escrevemos o argumento, depois apresentamo-lo aos atores, depois levamos um ano até ter o financiamento. Mas neste caso havia dinheiro para fazer outro filme e fizemos o Irreversível. Creio que se o argumento estivesse escrito para o Irreversível acho que teria havido problemas, sobretudo com a cena da violação.


E este filme segue a ideia dos planos-sequência de Irreversível

Já que tinha Enter The Void em mente quando rodei Irreversível há muitas coisas que tentei aí que na verdade eram para este filme. Como a ideia dos planos sequência, a ligação entre todas as cenas de uma forma que se note bem... Em Irreversível usei também uma grua pela primeira vez.


A partir de quando é que começa a surgir a ideia para Enter the Void?

Comecei a pensar no filme por volta dos meus vinte e poucos anos. Gostava daquele filme, o Viagens Alucinantes, de Ken Russell... Também desde cedo gostava muito de 2001: Odisseia no Espaço. E como muitos jovens tinha experimentado o LSD, a marijuana, cogumelos... Achei que seria interessante fazer um filme que sugerisse o que está estar pedrado. Escrevi primeiro um argumento para uma curta-metragem e li vários livros depois. Um deles, O Livro Tibetano dos Mortos. Achei que seria interessante que, após 30 minutos, a personagem morresse e o seguíssemos depois na sua trip astral, no seu sonho post-mortem.


E essas imagens aproximam-se realmente das sensações de uma trip? Como se passa essas sensações para as imagens?

Quando se fuma algumas drogas há imagens bem mais complexas que as que vemos no filme. Quando se toma marijuana ou acid [LSD] há coisas mais fáceis de reproduzir. Quando se está sob o efeito de drogas há coisas difíceis de expressar... Por isso acho até que este filme está demasiado narrativo para ser realista. Aproximo-me mais que em outros filmes do que é estar sob um estado alterado de consciência, mas é um filme muito narrativo. Para retratar essas experiências teria de o conceber como um filme experimental. 


Porquê usar a câmara como o ponto de vista do protagonista?

Achei que seria uma boa ideia. Senão o filme teria uma perspetiva exterior. Se fosse visto de fora, como explicaria que aquilo era a sua experiência depois da morte? Se queria retratar essa visão, esse ponto de vista interior, teria de ser dessa forma. 


Como foi pensada a música em Enter the Void? Num dado momento ouvimos Bach em eletrónica…

No iTunes vou dando estrelas ao que vou ouvindo e acabo assim por ter dez horas de música de que gosto mesmo muito. Incluí assim Bach, aquela reinterpretação, pela Delia Derbyshire, dos inícios da música eletrónica... Já Thomas Bangalter [membro dos Daft Punk] fez muitos sons para o filme, mas estão misturados com muitos outros elementos, em várias camadas.


Tem sido citado como um dos maiores representantes de uma nova vaga, a do Novo Cinema Extremista Francês [expressão designada pelo programador e crítico de cinema James Quandt]. Revê-se nesse movimento?

Há essa coisa com os nomes... Não sei quem inventou essa expressão. Extremista? Mas se há violência na vida há violência no cinema... Porque na televisão vemos os corpos, mas não as pessoas a serem mortas, há certas imagens que se tornam chocantes. Como se tornaram chocantes as imagens em que se viu como Saddam Hussein foi morto. E há uma mistura de sexo e violência que talvez seja mais explícita em França que na América. E na América talvez sejam mais sádicos, veja-se filmes como o Hostel ou Saw, que não lidam com o sexo… Talvez alguns filmes sejam extremistas, mas não creio que seja um movimento.


Pode falar sobre o seu novo trabalho, o 7 Days in Havana [estreia em Portugal a 5 de julho de 2012]?

Propuseram-me fazer uma curta para entrar em 7 Days in Havana, que é feito por sete realizadores diferentes. Fui duas ou três vezes a Cuba e fiz um pequeno filme... sobre uma jovem rapariga lésbica.


Como é que vê a vitória de O Artista nos Óscares da Academia?

Gostei muito do filme e estou muito feliz por eles. Foi giro ver aquele tipo, que eu conheço, na televisão a roubar-lhes o Óscar... Porque foi para o país ‘errado’. Era um projeto arriscado, não era assim tão evidente que se tornasse num filme tão comercial. Talvez assim os canais de televisão e os financiadores tomem algumas opções mais arriscadas nos próximos tempos. Porque se viu que um projeto ousado pode afinal ser compensador.

sexta-feira, março 02, 2012

À beira do abismo



Eis a síntese, dita, em impressionante comoção, por Carey Mulligan: “We're not bad people. We just come from a bad place.” Sim — não somos pessoas más, somos pessoas vindas de um lugar mau, este que habitamos e não podemos escapar — e por isso somos pessoas solitárias, também. Este aparente paradoxo (o facto de ser português… não me torna português) descortina esta característica que Michael Fassbender imprime na sua personagem: até um certo ponto estamos diante de uma personagem que é, no limite, um estrangeiro (do quotidiano, de um modo de viver regido pelas convenções…). E é porventura essa particularidade que torna especialmente desarmante a segunda longa-metragem do inglês Steve McQueen: Vergonha (ou Shame), que estreou oficialmente na 68.ª edição do Festival de Veneza e foi lançado ontem entre nós.

Filme sobre solidão, portanto impulsionado por corpos desamparados e anónimos. A evidência do desejo de os corpos se encontrarem faz-se num momento decisivo, expandido para tempo real, da performance da supracitada Carey Mulligan, que reconfigura Liza Minelli, humanizando-a ao cantar New York, New York (tema original do trabalho homónimo de Martin Scorsese em 1977). É precisamente a grave melancolia da interpretação que nos coloca lá, naquele momento: Nova Iorque, cidade-rainha da solidão coletiva, aquela que esmaga o indivíduo com a multidão. Sobreviver a essa aniquilação significa, fundamentalmente, termos que nos relacionar com o outro (com tudo o que isso implica). 

A questão não podia ser mais contemporânea. Face à correria do tempo da globalização e da busca do sucesso (melhor dizendo: do conforto) não há tempo para a lentidão (que é o que nos falta), mas para o fugidio e para o vislumbre de algo que não podemos agarrar na totalidade. Assim surge o sexo, ação central em Vergonha (aliás, a origem do termo é curiosa: McQueen afirmou que a palavra era a mais utilizada pelos ninfomaníacos entrevistados na investigação de material para o argumento, co-escrito com Abi Morgan — que, por sua vez, mostrou falta de destreza com o guião de A Dama de Ferro). Aqui, o sexo é um perturbante meio de tentativa de esquecimento e fuga a qualquer coisa. E qual essa coisa da qual tenta ininterruptamente escapar Brandon (Fassbender)?


Confesso que me recuso a aceitar a ninfomania como justificação e fim em si mesmos — não. A necessidade, visceralmente sincera, do relacionamento estritamente físico tenta responder a algo de mais profundo que é muito simplesmente: como viver escapando à vida? Ou, por outras palavras, a forma de fugir, por momentos, do quotidiano que se leva e que se entende como estupidamente absurdo é uma: regressar àquilo que conservamos de animal (de Neandertal, como Brandon diz, a brincar com a sua rara distintiva) e viver segundo esse impulso de satisfação biológica. 

Assim, o sexo (como necessidade básica) é satisfeito à margem de qualquer desejo de relação de intimidade. Naquele que é talvez o plano mais extraordinário do filme (o plano da conversa antes de Brandon e a sua colega de trabalho Marianne, interpretada por Nicole Beharie, começarem a jantar no restaurante onde se encontram), o debate impõe-se com fascinante fluidez: serão os relacionamentos amorosos indicativos de que acreditamos na coexistência entre os seres humanos (posição de Marianne) ou um simples artifício que está prestes a ser exposto em toda a sua incoerência (posição de Brandon)? A questão significa algo de muito importante para os dois — porque o amor é um dos fatores que constituem a normalidade de se ser humano e, perante essa evidência cultural, nenhum dos dois quer ser excluído da soma de que são feitos as relações de intimidade (ama-se e é-se amado). 

É também esse plano do jantar que põe em evidência uma série de dispositivos formais de que se serve o realizador Steve McQueen (que é originário, como se sabe, das artes plásticas). Falo por exemplo da equilibrada alternância entre os planos abertos e geralmente fixos com os planos muito aproximados e em movimento. E falo por exemplo do plano-sequência. No do jantar, a duração real da cena resultará em dois efeitos muito curiosos. O primeiro: na desconstrução das personagens a partir dos seus diálogos e atitudes: Brandon e Marianne são ao princípio movidos por códigos muito estritos que depois descarrilam (sem perderem o controlo) para as suas convicções pessoais. O segundo: na recolocação das personagens num espaço que não nos parece natural: o facto da personagem-parasita do empregado de mesa interromper a discussão de Brandon e Marianne com questões triviais e patéticas (“já decidiram o que vão beber?”, etc.) relembra-nos o que inevitavelmente os rodeia (o “bad place” que é a sociedade). Enfim, a utilização do plano-sequência com conversas (que se repete momentos depois, com um longo travelling até o metro subterrâneo) não é novo para McQueen. Já o tínhamos visto no precedente Fome (Hunger), a Câmara de Ouro de 2008, que é também outra tour-de-force de Michael Fassbender — nesse plano, um magríssimo Fassbender (que encarnava Bobby Sands) conversava com um padre sobre as suas radicais intensões.


E por falar em corpo. Tomado objeto de estudo, o corpo de Fassbender passa da postura autossacrificial à de procura da satisfação mais libidinosa — sem que isso implique a erotização do homem. É, aliás, a fotografia raramente quente e frequentemente “metálica” (nunca um metro foi assim filmado) do filme (responsabilidade de Sean Bobbitt) que intensifica, por um lado, a negação do erotismo e, por outro, a autenticidade daqueles corpos, que se tornam verdadeiramente mais humanos. Vide o exemplo da transformação de Carey Mulligan: a primeira sequência em que Sissy nos é apresentada é apanhada de surpresa a tomar banho (numa atitude desprovida de qualquer tipo de sedução e de à-vontade frente ao seu irmão) e numa das últimas encontra-se literalmente marcada pela sua tentativa de suicídio). 

Como se saídos do pensamento de Camus (face ao absurdo da vida, Brandon personifica a ideia de homem revoltado, enquanto Sissy a de contínua desistente), os irmãos de Steve McQueen unem-se por uma atração que vai muito para além do sexo. A sedução pelo abismo é, portanto, aquilo que transfigura o núcleo duro de Vergonha e a partir de dois planos muito simples mas que ficarão cravados na minha memória para sempre: primeiro: os pés de Sissy no limiar da plataforma do metro, como se quisessem cair nos carris, segundo: o riso enlouquecido de Brandon quando provoca o namorado de uma rapariga que tinha acabado de seduzir. Há qualquer coisa de verdadeiramente sobre-humano nestas atitudes e que desafiam a nossa compreensão daquilo que somos e que significamos. Sem dar respostas, Vergonha (que foi considerado por alguma crítica uma obra de excessivo moralismo) apenas… olha. E Fassbender olha para nós, a dado momento, no limiar do prazer e do desespero — não à procura de uma remissão (não há nada a expiar), mas de compreensão. Porque, no limite, partilhamos todos a mesma matéria.