terça-feira, janeiro 31, 2012

Música para Filmes (1): As Horas, de Philip Glass

No dia em que Philip Glass completa 75 anos iniciamos um novo espaço dedicado à música para cinema com o trabalho que assinou para o filme As Horas, de Stephen Daldry.

O ponto de partida foi o livro de Michael Cunningham As Horas, galardoado com um Pulitzer em 1998. A figura de Virginia Woolf, autora de Mrs. Dalloway, a de uma mulher que nos anos 40 lê o seu livro e ainda uma outra, nos noventas, que não é senão uma projeção direta da personagem que dá título ao livro, cruzam-se nas páginas como no filme que Stephen Daldry estreou em 2002. Unindo as três épocas, figuras e narrativas que acompanhamos em paralelo, a música que Philip Glass compôs para As Horas é muito mais que um cenário de sons para quebrar silêncios.

Pensada como se de uma ópera se tratasse (em vez de cantores havendo atores, no lugar de um público sentado num teatro uma plateia frente a um ecrã) a música confere à visão de Daldry o carácter de melodrama e representa um dos feitos maiores na história das muitas colaborações para o cinema por Philip Glass. Com o piano (interpretado por Michael Riesman, antigo e firme colaborador de Glass) e um quarteto de cordas (o Lyric Quartet) frente a uma orquestra (dirigida por Nick Ingram), Glass procura aqui a expressão de um lirismo que decorre não apenas do trabalho entretanto desenvolvido na ópera como nas primeiras experiências no formato da sinfonia (que abriu novos horizontes à sua música orquestral) e para piano solo. Mais tarde foi editado um segundo disco com música criada para este filme, em transcrições para piano solo. Michael Cunninham, confesso admirador de Philip Glass, recorda num texto incluído no booklet a história de um relacionamento com a música do compositor que remonta aos dias na faculdade, quando comprou uma cópia de Einstein On The Beach e a tocou vezes sem conta (sob protestos do companheiro de quarto, ao que parece).

Cunningham tem uma escrita musical e As Horas reflete um pouco a noção de variações sobre um tema tão característica de algumas composições. A cada livro que escreve costuma idealizar uma banda sonora. Associa, por exemplo, Big Science, de Laurie Anderson ou Blue, de Joni Mitchell a Um Casa No Fim do Mundo. Sangue do Meu Sangue tem para si afinidades para com óperas de Verdi, álbuns dos Smiths e a versão de Jeff Buckley para Hallelujah de Leonard Cohen. N’As Horas encontrou uma relação com a música de Schubert, o álbum Music For Airports de Brian Eno ou OK Computer de Radiohead (por razões que o escritor confessa que não sabe explicar)... Ao longo de todas estas experiências, contudo, a sua mais constante (e fiel) relação com um músico liga-o a Philip Glass. A banda sonora que este assinou assim para o filme nascido do seu livro é assim como uma materialização de uma experiência subliminar que acompanhou a escrita e, agora, serve as imagens que lhe deram corpo.

segunda-feira, janeiro 30, 2012

Confissões de uma máscara




Filme biográfico, sim, drama político também, mas J. Edgar (filme) é e conseguiu ser, talvez sobretudo, uma história de amor – nascido num casamento (entre o guião assinado por Dustin Lance Black e música, produção e realização por Clint Eastwood). O declínio de J. Edgar Hoover é, pois, tido aqui como um declínio pelo amor. 

Se Lance Black aproxima, pela importância públicas e políticas, as personagens de Harvey Milk (sobre quem escreveu em Milk, de Gus Van Sant) e Hoover, o argumentista distancia os dois na dimensão dos episódios selecionados na trama, privilegiando, num ato de profundo humanismo, a dimensão íntima, igualmente enorme, do protagonista (aproveito e especulo assim o motivo pelo qual o filme tem por título J. Edgar e não Hoover). Falo, concretamente, das relações mantidas pelo presidente do FBI ao longo de 50 anos (magnífico Leonardo DiCaprio) com a sua mãe (Judi Dench), o seu braço direito Clyde Tolson (Armie Hammer) e a sua secretária (Naomi Watts). Em todas elas trespassam no protagonista dois marcantes sentimentos: de incompletude (seja porque teme não corresponder às expetativas da mãe ou porque não se consegue relacionar condignamente com Clyde) e de culpa (ponto que se deve ao recalcamento da sua sexualidade). 

Trata-se assim de um filme de repressão íntima, de autoridade e de contradições – um filme, pois, de máscaras. Compreende-se o uso do artifício tão evidente da caracterização decidido por Eastwood. Narrado pelo próprio J. Edgar Hoover (tal como, curiosamente, em Milk), o realizador parece confrontar-nos com uma grave evidência: na ziguezagueante retrospetiva da nossa autobiografia conhecida sobressai o mais luminoso e evidente – sobressai aquilo que queremos que transpareça. E é assim que Eastwood e Lance Black nos golpeiam com a mentira (que preencherá, no final, o foco temático principal). Descrente na política e na bondade públicas (a própria fotografia, dirigida por Tom Stern, é de mínima saturação), J. Edgar vive no conflito entre aquilo que é falso (o passado glorificado por Hoover) e verdadeiro (o amor que Edgar nutre por Clyde). Dois momentos exemplificam essa dualidade com subtileza afinada (que, aliás, caracteriza o tom do filme a partir de uma montagem que dá valor à passagem e à influência marcante do tempo): Edgar, filmado de costas, olha para o retrato de Abraham Lincoln cada vez que entra no escritório e, no final, regressado a casa, endireita uma moldura da sua mãe pregada à parede. 

Esta descrença radical na América contemporânea de Eastwood parece ter perturbado os seus compatriotas, tanto que a estreia do seu mais recente título da filmografia nas salas de cinema portuguesas (na passada quinta-feira) não deixou de trazer consigo o signo amargo de derrota (zero nomeações para os Óscares e, apesar da nomeação para a categoria de melhor ator, zero Globos de Ouro). A atenção mediática parece, talvez por isso, ter sido reduzida até o impensável, tal como acontecera com Hereafter – Outra Vida. Para além do mais, e já que se refere a longa-metragem que procedeu Invictus, grande parte da crítica escrita, cá ou lá fora, não se deixou convencer. Não obstante, J. Edgar, certo que felizmente, não parece ter, como poderia ocorrer com qualquer outro filme que não de alguém tão representativo como Eastwood, uma espécie de prazo de validade. A história do cinema é feita também dos nomes que nos esquecemos.

quarta-feira, janeiro 25, 2012

A palavra (4): Jorge Mourinha

Os dois filmes mais nomeados para os Óscares de 2012 são sintomas. Sintomas da cinefilia de quem os fez - no caso de O Artista, Michel Hazanavicius, realizador francês vindo da televisão e cuja obra já revelava um amor pelo cinema "à maneira de"; no caso de A Invenção de Hugo, Martin Scorsese, o mais cinéfilo de todos os cineastas, fervente defensor do restauro e da divulgação da história do cinema. E sintomas da magia do cinema que os dois filmes evocam e procuram recuperar, pelo meio de uma paisagem audiovisual onde ele já não é a força cultural da primeira metade do século XX, mas está perdido pelo meio dos multiplexes, computadores, iPads e televisores.

(…) Os Óscares, assim, voltam em 2012 a ser aquilo que sempre foram: uma enorme manobra de marketing que premeia mais o sucesso (As Serviçais, Meia-Noite em Paris) ou o estatuto (Scorsese, Spielberg, Streep) do que a qualidade, que quer fazer passar o cinema que se faz numa Hollywood cada vez menos inspirada pelo único cinema que vale a pena. É por isso que é tão estranho, e tão sintomático, ver A Árvore da Vida, de Terrence Malick, entre os nove nomeados para Melhor Filme - porque Malick é o único cineasta americano contemporâneo que não quer saber de Hollywood. E o seu é o único filme que não precisa dos Óscares - são os Óscares que precisam dele.
Jorge Mourinha in Público (caderno P2, Uma magia que já não se faz), 25 de Janeiro de 2012

domingo, janeiro 15, 2012

Música com Cinema (6): Laurie Anderson e Hot Chip



"O Superman" (1981), de Laurie Anderson
Realização de Joshua White

Pode um teledisco morar num museu, integrando a sua coleção permanente e, em rotação constante, estando assim sob os olhares dos seus visitantes? Pode sim, naturalmente. E hoje, num dos pisos inferiores do MoMA, em Nova Iorque, podemos ver O Superman, teledisco de 1981 que então surgiu para acompanhar a edição em single desta canção de Laurie Anderson. O teledisco foi realizado por Joshua White, nova-iorquino com obra essencialmente assinada sob a designação Joshua Light Show e com uma história de trabalhos de desenho de luz para artistas como os Grateful Dead, The Doors, Jefferson Airplane ou Jimi Hendrix. Ecos dessa experiência surgem assim num teledisco que procura ainda não contrariar o registo minimalista da composição.

O Superman é dos mais atípicos fenómenos de sucesso da história da música pop. Criada sob inspiração de uma ária da ópera Le Cid, de Massenet, a canção surgiu originalmente integrada em United States, de Laurie Anderson. Foi um dos momentos dessa peça que surgiu depois em disco, no alinhamento de Big Science, o seu álbum de estreia, lançado em 1982. Antes teve, porém, edição em single. E a surpresa aconteceu quando um tema de oito minutos, de voz falada e com maior proximidade com o trabalho de visionários de vanguarda que com os caminhos da música pop se transformou num inesperado êxito comercial, tendo inclusivamente atingido o segundo ligar na lista dos singles mais vendidos no Reino Unido.

Nuno Galopim



"I Feel Better" (2010), de Hot Chip
Realização de Peter Serafinowicz

Nascida no princípio do milénio presente, a banda eletrónica inglesa Hot Chip conseguiu responder, no teledisco I Feel Better (single do seu quarto álbum, One Life Stand, lançado em fevereiro de 2010) e de modo ousado, à questão que, na idade do histerismo mediático impulsionado pela Internet, se acabou por impor: como lidar com a ditadura do estereótipo?

Nesta pequena “curta” (assinada por Peter Serafinowicz, actor responsável pela voz de Darth Maul no primeiro episódio de Star Wars, de 1999) a resposta parece seguir o lema “se não consegues vencê-los, junta-te a eles”. E é talvez por isso que os Hot Chip, um grupo de rapazes com ar de nerds, se mascararam de uma boy band com grande sex appeal. I Feel Better começa pois com a banalidade de qualquer outro teledisco de uma banda como os Backstreet Boys, apresentando os membros fictícios do grupo: Kyng, Mar’Vaine, Octavian e Popeye, que dançam coreografados (também preenchida com uma característica vulgaridade) à frente de uma plateia composta por adolescentes fanáticas.


A mudança ocorre com a chegada de um estranho ser que parece vir de outro mundo e que perturba o espetáculo ao continuar com o playback da canção. Os Hot Chip “falsos” - em cima - (que contrastam, em tudo, com os “verdadeiros” - em baixo - que, curiosamente, surgem também no vídeo, misturados com as espetadoras) oferecem resistência de modo assinalavelmente patético: ora dançam frente ao ser, que os aniquila, ora mostram os seus dons de conquistar o público feminino (o último membro a ser exterminado chega a tirar a T-Shirt, mostrando, convicto, os músculos – aquilo que julga valer).


É, de facto, um objeto de grande interesse que, ao se apropriar do mecanismo da sátira, demonstra o modo como a atenção contemporânea reside, em primeira instância, em lugares-comuns ligados àquilo que devem ser o corpo e as posturas humanas. Uma atenção que, afinal, não deixa de transparecer algo de sexual e, em consequência, animal.

Flávio Gonçalves

sexta-feira, janeiro 13, 2012

Post(ers) [11]


We Need to Talk About Kevin (2011), de Lynne Ramsay

A palavra (3): Rita Blanco

Devo dizer-lhe que deve ser a última vez que estamos aqui presentes… desculpe que lhe diga mas vai ficar sem emprego se não ser que passe só a falar de cinema internacional. O cinema português em princípio vai acabar, não é verdade? Porque não vai haver mais subsídios – aquilo a que se chama subsídios mas que é uma taxa da publicidade, portanto nem sequer sai do Orçamento… Desculpem lá dizer isto mas eu estou tão encantada de as pessoas gostarem de ir ver cinema português – cinema, enfim, cinema – e de as pessoas correrem às salas e de repente nós sabemos que não vai haver mais cinema e que isso acabou e que um país sem cultura não é um país, passa a ser uma anedota. Sabemos hoje, por exemplo, também, que a agência Lusa, a secção de cultura, acabou, porque realmente já não é preciso, já não há cultura. O secretário de estado [da cultura, Francisco José Viegas] anda a fugir e a queixar-se de que não há dinheiro – a obrigação dele é o quê? Procurar dinheiro, como fazem alguns outros secretários de estado, alguns outros ministros. Em vez de se queixarem o tempo todo procuram alternativas para que isto não acabe tudo. Mas nós infelizmente tivemos o pior secretário de estado que pudemos ter. 

Rita Blanco in TVI24 (12 de Janeiro de 2011 - vídeo com entrevista integral aqui)

quarta-feira, janeiro 11, 2012

Viagem em 3D a memórias do homem pré-histórico

Este texto foi publicado originalmente no Diário de Notícias, no dia 7 de janeiro de 2012, acompanhado por uma opinião assinada por João Lopes (ler aqui). Escrevi também sobre o filme neste blogue, aqui.

Estávamos a uma semana do Natal de 1994 quando um grupo de três curiosos espeleólogos conseguiu entrar na gruta de Chauvet (que mais tarde assim se chamou em homenagem a um dos exploradores, Jean-Marie Chauvet), perto de Vallon-Pont-d’Arc, no Sudeste de França. A sua descoberta: um enorme complexo rupestre, incrustado a cristais e do tamanho de um campo de futebol, com inúmeros restos de mamíferos da Idade do Gelo e pinturas pré-histórias com mais de 32 mil anos. 

Dezassete anos depois, a redescoberta é feita por nós com o lançamento nas salas portuguesas do documentário do realizador alemão Werner Herzog A gruta dos sonhos perdidos. Bastou a leitura de um artigo sobre as pinturas de Judith Thurman, da revista New Yorker, para motivar o realizador a querer filmar dentro da gruta.

Mas só com uma autorização especial (e difícil de obter) do Ministério francês da Cultura Herzog pôde captar as imagens, utilizando câmaras com tecnologia 3D. Era uma equipa mínima (o diretor de fotografia Peter Zeitlinger, um diretor de som e um assistente) e com limitações expressas. Só podiam filmar quatro horas por dia, durante menos de uma semana; não podiam tocar nas paredes; só podiam caminhar num corredor com cerca de um metro de largura... 

Apesar do seu cepticismo relativamente ao 3D (Zeitlinger afirmou ao portal Sabotage Times que o realizador considera a tecnologia “um artifício do cinema comercial”), Herzog compreendeu, após a sua primeira visita à gruta, que o relevo das pinturas rupestres nas paredes apenas poderia ser registado utilizando a estereoscopia como intermediário.

De facto, a partir de uma reapropriação do 3D, A gruta dos sonhos perdidos parece aproximar o espectador da realidade documentada, permitindo-lhe descobrir, com mais exatidão, o relevo e a forma das paredes em Chauvet. 

Não obstante, as três dimensões engrandecem, da mesma maneira, a reflexão de Herzog sobre os poderes e as funções da arte: há 32 mil anos (numa altura em que a “arte” poderia servir a dimensão espiritual dos seres humanos que a produziam e que então se reuniam em seu redor para celebrar rituais religiosos) e no nosso tempo (em que temos uma “arte pela arte”). 

De acordo com as palavras do próprio autor, aquelas misteriosas pinturas, que resultam de uma estrutura cerebral e da apreensão da linguagem simbólica associadas ao Homo sapiens sapiens, representam, tão-somente, o “princípio da alma moderna”. E, quanto à sua execução, Herzog ousa ir mais longe: o desenho de várias pernas nos animais pintados apresenta as primeiras formas de proto-cinema (já que conferem uma sensação de movimento à imagem fixa). 

É assim que Herzog comprova que, em 30 mil anos, talvez possamos não ter mudado tanto quanto acreditamos. E volta ao ponto de chegada (que de certo modo também é o de partida): que significa irmos ao cinema, colocarmos os óculos 3D e assistirmos A gruta dos sonhos perdidos, que se insere numa das mais recentes formas de arte dos últimos anos?

Voltar ao Fantasporto 2012 — sem vergonhas

Muito embora a actual conjuntura económico-financeira nos obrigue a temer um cenário de desaparecimento de festivais de cinema (dada a falta de financiamento público e privado) há já alguns, como o Fantasporto, que garantem uma nova edição para 2012, após este ter sido o festival que reuniu o maior número de espectadores no ano passado (47 mil e 395, para ser exacto). 

As razões para voLtar ao festival são muitas. A começar, por exemplo, pela secção competitiva, há pouco anunciada, e que conta com filmes como Key hole, do visionário Guy Maddin (que assinou a extraordinária curta-metragem The heart of the world, entre outros títulos) e com as interpretações de Jason Patric, Isabella Rossellini e Udo Kier; ou Eva, produção recentemente nomeada para 12 prémios Goya, realizado por Kike Maíllo

Outra razão: os filmes de abertura e encerramento, respectivamente Shame e This must be the place, realizado por Paolo Sorrentino e com Sean Penn no papel principal. 

O primeiro, que marca o início do festival (no dia 24 de fevereiro) há já muito aguardado por aqui, é a segunda longa-metragem (depois de Fome, vencedor da Câmara de Ouro em 2008) de Steve McQueen. Depois de uma longa espera também já sabemos o dia de estreia nas salas de cinema portuguesas: 1 de março. 

Esteve presente na 67.ª edição do Festival de Veneza (onde recolheu críticas geralmente positivas) e conta com Michael Fassbender como protagonista de uma odisseia marcada por obsessões sexuais e um sentimento que trespassa ao longo do filme – precisamente o da vergonha

Foi, curiosamente e de acordo com o próprio cineasta, a palavra mais frequentemente utilizada nas entrevistas a ninfomaníacos aquando do processo de construção da personagem encarnada por Fassbender em Shame. Numa recolha de testemunhos realizada pelo diário The Guardian, publicada ontem no portal online, verificamos, através do olhar de cinco pessoas que viram Shame e que recorreram à ajuda da SAA (Sex Addicts Anonymous), que o interesse do filme passa, também, pelo seu realismo. Aconselha-se vivamente a leitura do artigo, que está disponível aqui.

Uma alternativa para entrar num mundo melhor

O suplemento P2 do jornal Público publicou hoje um artigo escrito por José Riço Direitinho sobre o cinema dinamarquês – ou, em bom rigor, o método de financiamento pelo qual o estado subsidia a sua produção nacional. Antes de vos deixar o texto na íntegra, cuja leitura considero fundamental, será importante ressaltar a pertinência de Assim se faz cinema no reino da Dinamarca. Em tempos de profunda crise de apoio governamental ao cinema português (pautada pela ausência dos concursos do ICA para 2012, pelo bloqueamento do FICA ou pela espera da nova Lei do Cinema) este artigo divulga (para além de expor, com subtileza, as grandes deficiências portuguesa) uma alternativa que aposta, fundamentalmente, na educação (de públicos e de jovens criadores) e no equilíbrio entre a atribuição de subsídios para o cinema com apelo comercial e para um com pendor apenas artístico.

ASSIM SE FAZ CINEMA NO REINO DA DINAMARCA
por José Riço Direitinho (em Copenhaga) in Público (suplemento P2)


Por cá, continuamos a discutir as políticas de financiamento às artes. Mais a norte, a Dinamarca, que tem metade da área de Portugal e metade dos habitantes, tornou-se num dos países mais importantes da produção cinematográfica europeia. Como? Apostando nas crianças e jovens. 

No começo do ano, a Dinamarca assumiu a Presidência da União Europeia e, para assinalar o facto, a embaixada em Lisboa promove hoje, na Cinemateca, às 19h, a exibição do filme Um Mundo Melhor, da dinamarquesa Susanne Bier e vencedor de um Óscar e de um Globo de Ouro.  
Por que deve um país gastar dinheiro dos contribuintes em subsídios a filmes? Por que é que o cinema não pode "tomar conta" de si próprio? A estas perguntas, diz-nos Henrik Bo Nielsen, director do Det Dansk Filminstitut (Instituto de Cinema Dinamarquês), já os políticos responderam de maneira convicta, e em perspectiva de longo prazo, no início dos anos 70.  
Na Dinamarca, estas foram questões importantes, hoje já não são discutidas. E as respostas tiveram em conta o nível de ambição que se tinha em relação aos cidadãos e, em especial, em relação às crianças. Ambição que tem vindo a aumentar. Reflexo disso foi a lei que na década de 80 fixou que um quarto do montante total de dinheiro atribuído anualmente ao cinema - cerca de 70 milhões de euros - deveria ser usado em actividades e produções que tivessem por alvo as crianças e jovens. "Mesmo que parássemos amanhã de subsidiar filmes, os cinemas continuariam cheios", diz Bo Nielsen. "Haveria por ano talvez um ou dois, ou mesmo três, filmes dinamarqueses, provavelmente comédias de qualidade muito baixa, o resto viria de Hollywood. Se concordarmos com isso, não há qualquer problema. Se acharmos que é importante que os cidadãos tenham a possibilidade de ver as suas vidas, a sua história, os seus desafios, em narrativas cinematográficas originais que lhe vão ser contadas na sua própria língua e num ambiente que reconhecem, então é diferente."  
Os números falam por si: por ano, na Dinamarca, são vendidos cerca de 13 milhões de bilhetes para as 162 salas do país, o que dá uma média de 60 espectadores por sessão. No Top 20 dos filmes mais vistos, o número de produções dinamarquesas oscila entre 5 e 8, dependendo do ano. O Estado financia uma média de 25 longas-metragens e de 30 documentários; a média do orçamento por filme é de 2,5 milhões de euros, e o Estado financia-os, em média, em cerca de 33% (em Portugal, segundo o Anuário 2010 do ICA, venderam-se 16,5 milhões; estrearam-se 22 longas-metragens nacionais, mas no Top 40, não há qualquer produção portuguesa). O mercado cinematográfico, incluindo exibição em sala e no serviço público de televisão, tem cerca de 22% de filmes nacionais (em Portugal, segundo o ICA, a percentagem é de 2,5% ). 
Bo Nielsen não tem dúvidas que estes números se devem à qualidade atingida pelo cinema dinamarquês, ao nível dos apoios, mas sobretudo ao "talento" e ao "gosto" que têm vindo a ser desenvolvidos há muito tempo. "Se é isto o que ambicionamos, então temos mesmo de aceitar que é necessário ter uma política cinematográfica nacional e que os subsídios são necessários", prossegue. "Não é possível viver da normal comercialização do cinema e ao mesmo tempo produzir filmes de boa qualidade. Isto é ponto assente. Felizmente, quase todos os países europeus decidiram que é necessário um apoio financeiro nacional. A ideia, em toda a Europa, é que todos querem ter a possibilidade de contar a sua própria história. Um facto importante é que os cidadãos dinamarqueses que actualmente financiam os filmes através dos impostos, também usufruem deles, como mostram as estatísticas." 
Mas toda esta história de sucesso começou quando a atenção foi centrada na educação dos futuros profissionais, ainda antes da actual política de subsídios. A Danish Film School (Escola de Cinema Dinarquesa), em que o Estado tem investido muito dinheiro, floresceu nos anos 70. Em anos de excepção chega a lançar para o mercado seis realizadores, sendo pelo menos um ou dois originários de outro país escandinavo. Isso cria competição no meio, o que atrai jovens criativos. Também o facto de ser dada quase toda a liberdade para aplicar o dinheiro onde se quer, incluindo em filmes a que se sabe que o mercado não vai responder bem, ajuda. "A maior parte do dinheiro não tem que ser gasta naquilo que a maioria das pessoas vê", diz Bo Nielsen. "Se fizéssemos isso, o apoio iria quase todo para filmes de entretenimento familiar e de vampiros. Como em todos os apoios às artes, devemos focar-nos naquilo que o mercado não trata muito bem. Ter políticos que aceitem que empreguemos cerca de 1,5 milhões de euros num filme que muito pouca gente verá, desde que seja artisticamente interessante, continuará a fazer progredir o cinema." 
Estratégia combinada 
De certa maneira, pode dizer-se que a chave do sucesso é dar atenção aos mais novos. Do orçamento total anual para o sector, um quarto é aplicado em filmes para crianças e jovens. Isso tem enorme impacto. Significa que, depois de um certo tempo, se passa a ter mais capacidade para financiar produções de outros géneros porque o número de espectadores aumenta. Em 2010, por exemplo, um quarto das várias centenas de milhar de espectadores da Cinemateca de Copenhaga tinha menos de 7 anos de idade. 
Existe uma estratégia combinada, ou seja, há uma estratégia na própria produção que se estende depois ao marketing e à distribuição dos filmes, exibidos regularmente no circuito comercial em sessões para as escolas. Todos os anos são elaborados programas para assegurar que todas as crianças têm acesso à experiência, tanto as que estão em idade escolar como pré-escolar. Há guias de estudo para os professores (também acessíveis aos pais), para que os filmes possam ser estudados. Uma enorme colecção (centenas) de filmes curtos e documentários podem ser descarregados livremente de um sítio na Internet gerido pelo Instituto. 
"O programa educativo para os jovens está dividido em várias partes: visando sempre assegurar que as crianças possam visualizar os filmes, acompanhamo-las de modo a que os consigam trabalhar, a que sejam mais críticas, e também a que possam criar os seus próprios filmes", diz Charlotte Giese, responsável pela área de subsídio à produção de curtas e documentários para a infância e juventude. "Tentamos apoiar os professores, dando-lhes justificação educativa para levar os estudantes ao cinema, porque os filmes podem ser usados de várias maneiras. Actualmente, estamos a debruçar-nos mais sobre as crianças em idade pré-escolar, proporcionando-lhes as ferramentas para trabalharem os filmes de maneiras novas e até mesmo de os criarem elas próprias. Para os mais velhos, num estúdio interactivo que temos no Instituto, é possível dar a oportunidade única de dirigirem, de representarem, e de fazerem os seus pequenos filmes." 
Para o Bo Nielsen, o apoio ao cinema infantil e juvenil é também uma questão de justiça social. "É evidente que as crianças das classes média e superior vão ao cinema com frequência. Recebem uma boa educação. Mas, as crianças das classes mais baixas terão possibilidade de ir ao cinema se o Estado não intervier? A resposta é não, não têm. Ir ao cinema implica também aprender a usar essa forma de arte, e para isso é preciso formação. No caso de um exame do 11.º ou do 12.º ano, podemos deparar-nos com um poema, por que é que não nos podemos deparar com um documentário ou com um filme?" 
Charlotte sublinha ainda a importância que se deve dar à formação dos professores, e o Instituto assume essa responsabilidade. "Estamos muito dependentes de uma boa relação que tem que ser mantida e solidificada com o Ministério da Educação", diz. E refere ainda a relevância de a Comissão Europeia estar a exigir dos estados membros que encarem "a literacia dos media de um modo mais sério". 
Numa época de crise económica global de que os dinamarqueses também se queixam, Bo Nielsen é claro: "Tivemos de reduzir o orçamento para 2012, mas optámos por cortar nos gastos do Instituto - viagens, assessorias, pareceres, etc. - não cortámos nos subsídios."

quinta-feira, janeiro 05, 2012

Gus Van Sant — entre a tradição e a modernidade

Se o cinema mainstream (do qual resultam filmes de grandes orçamentos e produção dirigidos às massas) e o cinema independente (do qual resultam obras de baixo orçamento e afastadas dos grandes estúdios) continuam a protagonizar, juntos, um dos duelos mais fincados entre os seus espectadores, então o realizador norte-americano Gus Van Sant é, provavelmente, um exemplo maior da capacidade de coexistência, numa mesma filmografia, dos dois modos de ver, pensar, fazer e escrever cinema. 

Crescendo em Portland (Oregon), que marcaria parte da sua filmografia, Gus Van Sant seria, na Rhode Island School of Design, motivado por figuras vanguardistas da arte sua contemporânea (como o realizador de cinema experimental Stan Brakhage ou Andy Warhol) para começar a sua carreira no cinema. Tacteando terreno, começou por criar curtas-metragens e, em Los Angeles, por trabalhar como assistente de produção de Ken Shapiro. Só em 1985 viria a lançar a sua primeira “longa” inspirada num romance autobiográfico do poeta Walt Curtis, Mala Noche, que podemos enquadrar num grupo de outros títulos (como o bem-sucedido A Caminho de Idaho, de 1991) que viriam a consagrá-lo, nos anos 90, como uma das figuras-chave do “New Queer Cinema” (expressão utilizada pela colaboradora da revista de cinema Sight + Sound B. Ruby Rich para designar o movimento e proliferação das longas-metragens que contivessem personagens e temas directamente ligados com a homo / bi / transsexualidade). E, como veremos mais adiante, não foi apenas no século XX que o realizador explorou esta problemática e personagens outsiders. Publicando um romance (Pink, em 1997), trabalhou ainda na criação de anúncios para televisão, telediscos pop e na produção de filmes como Kids, de Larry Clark, de 1995, que é demonstrativo do seu desejo de retratar a adolescência. A viragem evidente para o mainstream fez-se em 1997 com O Bom Rebelde – que lhe valeu nove nomeações para os Óscares da Academia (incluindo a categoria de Melhor Realizador), tendo vencido dois, entre eles o Óscar de Melhor Argumento (para Ben Affleck e Matt Damon) – , e com Descobrir Forrester, de 2000. Não obstante, é curioso que ambos foram intercalados por dois projectos inversamente opostos em estrutura narrativa e / ou de produção: o remake plano-a-plano de 1998 do clássico Psycho (1960), de Alfred Hitchcock, e Gerry, que inauguraria, em primeiro lugar, uma nova viragem para o cinema designado arthouse (muito embora conte com a interpretação de duas estrelas pop do cinema, Casey Affleck e Matt Damon) e, em segundo, o início de um tríptico que o próprio Van Sant chamaria de “Trilogia da Morte”. Com a adaptação para cinema do romance de Blake Nelson Paranoid Park em 2007 podemos considerar, devido às semelhanças em estilo, tema, personagens e modo de construção narrativa, uma “tetralogia da morte”. Mas não é sobre Paranoid Park que nos iremos debruçar. 

As longas-metragens Elephant, Last Days – Últimos Dias e Milk, de 2003, 2005 e 2008 respectivamente (todas elas tiveram estreia comercial em Portugal e encontram-se disponíveis a visionamento e compra em DVD, os dois primeiros primeiros editados pela Atalanta Filmes, o último pela Castello Lopes Multimedia), servirão, ao longo dos capítulos seguintes, de motivo para analisarmos e compreendermos o modo como as narrativas, diferindo as três entre si, espelham a capacidade de Gus Van Sant (se) reinventar face à estrutura de produção cinematográfica a que tem acesso e se dirigir, por conseguinte, aos mais diversos públicos. Claro, sem que isso signifique, necessariamente e como veremos, abster-se ao tratamento daquilo que lhe interessa contar e / ou dar a ver em cinema. 

De Columbine ao tango 

Na manhã do dia 20 de Abril de 1999, os alunos Eric Harris e Dylan Klebold entraram na escola de Columbine (Condado de Jefferson, no Colorado), onde estudavam, e provocaram um massacre violento a tiro que resultou no assassínio de 12 colegas e um professor, no ferimento de 21 pessoas e no suicídio de ambos. Ao histerismo mediático seguiu-se uma série de livros, documentários, ficções, músicas e outros objectos inspirados directamente naquele que ficaria recordado como o quarto massacre escolar mais sangrento e mortal na história dos EUA. Entre todas as referências possíveis é de destacar Bowling for Columbine (2002), onde Michael Moore tenta reflectir sobre a tragédia como consequência da política norte-americana de acesso facilitado a armas, e o (naturalmente controverso) jogo 'role-playing' Super Columbine Massacre RPG!, lançado como uma mistura de paródia e crítica à comunicação social pelo ataque realizado à cultura dos videojogos “violentos”. 

Se em 2005, ano em que o videojogo foi divulgado, os EUA ainda tremiam com o Columbine Incident (eufemismo pelo qual tratam o massacre) então, em 2003, ano em que também estreou Zero Day, onde o realizador Ben Coccio propõe filmar um massacre na escola através de câmaras de vídeo domésticas, o lançamento de um filme baseado nos eventos desse dia fatídico mereceria, pela proximidade, atenção maior. 

Foi o caso de Elephant que, para o bem ou para o mal, se quis afastar (sem sucesso) da conotação directa de “filme sobre Columbine”. Baseado na ideia original de Harmony Korine (amigo de Van Sant) e produzido pela cadeia de televisão HBO, a atribuição da Palma de Ouro ao filme no Festival de Cannes não deixou de ter, em primeira instância, um lado eminentemente irónico já que se apresenta “como um exercício de tenaz resistência a qualquer facilidade naturalista, a qualquer transparência automática, a qualquer ‘verismo’ televisivo” (Lopes, 2003). Ou, noutras palavras, Elephant apresenta-se como um filme que podemos chamar de “abstracto”. 

A designação não é precipitada. Após Gerry, primeira parte da “Trilogia da Morte” e que filma, com longuíssimos planos-sequência (inspirados – e dedicados, nos créditos finais – ao realizador húngaro Béla Tarr) dois homens perdidos no deserto a falar de fait divers, o segundo capítulo, Elephant, fez com que Gus Van Sant regressasse, como fez com Psycho e, quanto ao estilo de realização, a um jogo de citações (a curta-metragem homónima de Alan Clarke, curiosamente produzida pela BBC em 1989) e auto-citações (Gerry, que inclusive é introduzido em Elephant sob a curiosa forma de… videojogo). 


De acordo com o “triângulo” das histórias de McKee e que servirá de base para descrever os filmes de Gus Van Sant (figura 1, em cima), Elephant situa-se naquilo que descreve como miniplot, uma narrativa minimalista. Porquê? Então vejamos: o filme descreve, ao longo de 79 minutos, as rotinas de grupos de vários alunos de um típico liceu norte-americano. Apesar de se poderem conhecer, não há, necessariamente, uma ligação causal entre os vários grupos que surgem ao longo da história (e que são assinalados na “longa” por diferentes intertítulos com os seus nomes: John, primeira personagem a aparecer e que partilha a frequência no ecrã com Alex, um dos assassinos, Elias, o fotógrafo, as três amigas Brittany, Jordan e Nicole, o casal Nathan e Carrie, uma das frequentadoras da Aliança Hetero-Homossexuais Acadia, Eric, o segundo assassino, Michelle, a rapariga que colabora na biblioteca da escola e, por fim, Benny). 

É, portanto, um filme com múltiplos protagonistas, ou se quisermos: nenhum deles é protagonista ou se quisermos ainda: a ideia de juventude, materializada em todos eles, é a protagonista. Assim, e segundo (ou seguindo) as três atitudes cognitivas que designam as diferentes representações das personagens (Mendes, 2009: 139), Elephant é dotado de uma “focalização hetero-centrada”, ou “descentramento”, visto que “é migrante e errática, desloca-se para o ponto de vista do outro e do diferente, tenta compreendê-lo na sua alteridade e descrevê-lo no contexto multipolar onde coexistem e se enfrentam diversas ‘visões do mundo’, diversas experiências e argumentários”. 

Não obstante, a longa-metragem não estabelece, em todos os casos / pontos de vista, uma ligação nas suas acções e, quando isso se verifica, a ligação é raramente causal. Ao vermos o filme concluímos, de igual modo, que a relação entre as personagens existe, de facto, por vezes, mas com pouca frequência motiva progressão dramatúrgica.



Um exemplo disso mesmo é a cena do corredor (figura 2, em cima), onde Elias fotografa John e Michelle passa por eles a correr quando ouve o toque da campainha da escola, que é repetida três vezes ao longo do filme de maneira a seguir os três pontos de vista – no primeiro (1A) seguimos Elias e passamos para John, que, fora da escola, chama um cão, que salta (1B), e vê os dois colegas assassinos a entrarem no edifício; no segundo (2A) voltamos a estar com Elias, desta vez para continuar na sua perspectiva depois de ter fotografado John, dirigindo-se para a biblioteca e ouvindo o bibliotecário a dar instruções a alguém (2B); no terceiro (3A) centramo-nos em Michelle que, quando ouve o toque da campainha, corre pelo corredor, passa por Elias e John e entra na biblioteca onde recebe as instruções do bibliotecário (3B). As repetições não se esgotam aqui. Ainda respeitando a continuidade desta cena, quando seguimos o grupo das raparigas (Brittany, Jordan e Nicole) na cantina vemos, pela janela, John a chamar pelo cão que salta (4), pelo que as três comentam o facto de não saberem que ele era dono do animal) e, noutro caso, quando estamos na perspectiva de Alex e Eric, vemos, ao longe, John a chamar o cão (5). Os pontos de vista sobre uma mesma situação de espaço e de tempo (que, apesar da minúcia, revelam, todos eles, erros de raccord e de continuidade) ocorrem, na ordem dos acontecimentos, em durações do filme diferentes, e são estes – mas poderiam multiplicar-se ad infinitum

Gus Van Sant inspirou-se na estrutura dramatúrgica de Sátántangó (que literalmente podemos traduzir como O Tango de Satanás, título não editado em DVD em Portugal), filme do húngaro Béla Tarr (a quem “homenageia” com os planos-sequência da “trilogia da morte”) com duração total de 450 minutos. Adaptação do romance homónimo de László Krasznahorkai, este filme é dividido em 12 capítulos e, tal como o tango, dá seis passos (capítulos) para a frente e seis passos (capítulos) para trás. Por coincidência (queremos acreditar que não), Elephant também está dividido em 12 personagens. 

O desejo de registar e recolher variados focos sobre um mesmo assunto apresenta, porventura, uma vontade própria não da ficção mas do documentário, transformando, assim, Elephant numa espécie de híbrido. Para além destas repetições e dos eventos em que o filme é inspirado (em Columbine, que serve de referência para o espectador assombrado), a relação filme com o real evidencia-se pela representação do tempo (como veremos mais à frente, nas questões relativas ao estilo) e pelo método de construção narrativa. 

Ora se há referência norte-americana que Gus Van Sant poderá apontar relativamente ao modo como trabalhar a história, as personagens e, como consequência, com os actores em toda a sua “trilogia da morte” (na qual se inclui este Elephant e o procedente Last Days – Últimos Dias) é John Cassavetes e “filmes como Shadows (1959), Faces (1968), Husbands (1970), A Woman Under the Influence (1974) e Opening Night (1977), marcos influentes na relação entre cinema e teatro, no cinema pobre, na margem de improviso autorizado aos actores em cada cena e pelo flirt com o cinéma vérité e com a nouvelle vague” (Mendes, 2009: 116). Apesar da relação de Van Sant não se restar por aqui (como veremos em Last Days – Últimos Dias), é importante notar que o realizador pediu aos seus jovens actores amadores, em ensaios, que improvisassem, em total liberdade, diálogos que viriam a utilizar no filme, adequando a sua personalidade à da personagem. 

O resultado não deixa de ser curioso: muitas das personagens que são estudantes são-no na realidade, têm o mesmo primeiro nome e partilham interesses (exemplos: o actor que “interpreta” Elias chama-se Elias e é, também, fotógrafo; Alex Frost “faz de” Alex…). Nesta linha de descoberta encontramos pequenas curiosidades perversas: Eric Deulen representa a personagem do assassino Eric e ambos (personagem e actor) têm parecenças físicas com Eric Harris, um dos responsáveis pelo massacre em Columbine. 

Esta margem para o improviso começa em Gerry, onde os actores Matt Damon e Casey Affleck, quando falam (o que acontece raramente), conversam sobre factos mundanos e sem interesse para a progressão narrativa como sobre o programa de televisão Wheel of Fortune, e acabará no terceiro capítulo da trilogia, Last Days – Últimos Dias.


Da mesma forma, são os três inspirados em acontecimentos verídicos (Gerry do assassínio de um homem pelo amigo quando se perderam no deserto de Rattlesnake Canyon, no Novo México; Elephant do massacre de Columbine, como já foi dito; Last Days – Últimos Dias da morte de Kurt Cobain), comprovando como “[a] contaminação do real pelo ficcional, e o seu reverso, colocaram o real ‘em posição de ficção’, como diz Marc Augé [em La guerre des rêves, exercices d’ethno-fiction]” (Mendes, 2009: 141). Em Elephant encontramos elementos que ligam a narrativa directamente com o real (por exemplo: há uma cena em que Alex e Eric estão a ver, juntos, antes de receber a encomenda da FedEx com as armas que utilizarão no massacre, um documentário sobre Adolf Hitler. Nos acontecimentos de Columbine, os dois assassinos combinaram realizar o tiroteio no 110º aniversário do ditador nazi, 20 de Abril). Mais adiante, voltaremos à relação de Gus Van Sant com o real. 

Voltando à “designação” da narrativa de Elephant como miniplot, no “triângulo” de Robert McKee há, ainda, a referência a um “open ending” (McKee, 1998: 45), o que se comprova nesta longa-metragem. Relembre-se que “[u]m final em aberto (…) é um final que deixa ao leitor ou ao espectador a liberdade de decisão sobre o modo como a história termina, e não se confunde com um final inconclusivo nem com a inexistência de final” (Mendes, 2009: 66). 

Quando Alex entra na cozinha da cantina e encontra, na sala frigorífica, Nathan (o bully que vimos, numa cena de aula anterior, a atirar-lhe pasta de papel) e a sua namorada Carrie, começa a cantar, apontando-lhes a espingarda, Eeny, meeny, miny, moe – e, apesar de não ouvirmos, deduzimos que Alex disparou e os matou quando acaba de cantar. No entanto, ficamos sem saber qual foi o seu destino depois desta cena. Em certas personagens (Michelle, Brittany, Jordan, Nicole, Eric ou Benny) sabemos, com mais ou menos segurança, que a sua jornada terminou com a sua morte. Noutras, como John, acompanhamos, no final, apenas, o reencontro com o pai bêbado. Porém, o fado de personagens como Elias, que estavam na biblioteca no momento em que a primeira vítima é assassinada, fica incerto. Para além disso, é praticamente impossível imaginar um arco de mudança per se nos alunos, já que são todos personagens sem um papel activo na dramaturgia (uma das descrições do miniplot por Robert McKee era precisamente a característica de existir um passive protagonist, neste caso colectivo). 

Num dado momento solitário, em que Alex procura, pelos corredores, desesperado, alguém para matar, murmura para si mesmo: “‘So foul and fair a day I have not seen’” (que o DVD português traduz como “‘Dia mais infame e justiceiro nunca vi’”). Trata-se de uma citação directa às primeiras palavras da personagem da peça de William Shakespeare Macbeth. Esta fala atribui uma personalidade culta à figura de Alex que cita e relembra o protagonista (também chamado Alex) de Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick (o realizador preferido de Gus Van Sant), que bebe leite e venera Ludwig van Beethoven (em Elephant, a personagem também bebe leite e toca Für Elise e a Sonata para Piano n.º 14, do compositor). A introdução desta fala e a interpretação ao piano (no caso de Alex) ou a revelação das fotografias tiradas (no caso de Elias) deixam espreitar uma certa interioridade das personagens (o internal conflict característico dos miniplot como Elephant) – para além, evidentemente, do estilo do realizador que procura ver para além do exterior (como veremos). 


Cinema como ocupação do tempo 

Dois anos depois, Gus Van Sant voltaria a estrear um novo filme, desta vez o último da “trilogia da morte” que, em resultado da recém-consagração com a Palma de Ouro, foi envolto em expectativa. No entanto, declarações como “esta recriação do derradeiro acto da existência da murmurante personagem é filmada como uma Paixão ‘alternativa’ e tem uma ‘subida ao céu’ que, em vez de um cume de patético, atinge o cúmulo do pateta” (Barros, 2005) ilustram bem o modo como o filme recolheu uma mais ou menos generalizada desilusão por parte do público e da crítica. 

De facto, Last Days – Últimos Dias está mais próximo, em termos dramatúrgicos, de um Gerry que de um Elephant. Tanto o primeiro como o terceiro capítulos da “trilogia” enquadram-se no canto do “triângulo” que Robert McKee chama de antiplot, onde o prefixo anti se associa à estrutura narrativa propriamente dita. 

Uma vez mais e como já foi referido, este filme também se inspira em acontecimentos (melhor será dizer personagens) reais – precisamente nos last days do ícone da música grunge (subgénero do rock alternativo) e membro da banda Nirvana Kurt Cobain, que viria a cometer suicídio a 5 de Abril de 1994, com 27 anos. Contudo, “a referência à vida trágica Kurt Cobain (1967-1994) perpassa por todo o filme (…) num sentido contrário a qualquer lógica biográfica, pelo menos tal como se encontra consagrada pelo imaginário televisivo que, todos os dias, nos submete (até porque, importa sublinhá-lo, a personagem interpretada por Michael Pitt dá pelo nome de ‘Blake’)” (Lopes, 2005) 

Alinhado com um tipo de focalização centrada na figura de Blake, que muito raramente contacta verbal ou fisicamente com as outras personagens, Gus Van Sant voltou a aproximar-se do teatro, mas não apenas no que refere ao exercício de improviso. Last Days – Últimos Dias “está mais próximo da stasis de muito teatro contemporâneo, nada tendo em comum com o ritmo da intensified continuity” (Mendes, 2009: 81). 

Este estatuto narrativo que podemos chamar de inércia permite-nos compreender a ausência de estrutura de progressão dramatúrgica neste filme e, assim, compreendermos a razão por que, muito simplesmente, consideramos que, em prática, não há plot

Last Days – Últimos Dias é constituído, tão-somente, pelas deambulações do protagonista pela floresta e pela casa. As únicas informações que obtemos dele são das outras personagens (amigos como Luke ou Asia, manager e detective privado), sendo que o filme também é preenchido por inúmeros telefonemas (uns respondidos, a maioria deles não) e por entradas e saídas (por mera coincidence, atributo mckeeniano do antiplot) de personagens desconhecidas: um vendedor de anúncios das Páginas Amarelas e dois missionários “da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos dias”. Servindo-se de uma ou outra repetição semelhante a Elephant (comprovando o non linear time próprio do antiplot), a longa-metragem conclui-se, findos os 97 minutos de duração, com a morte da personagem. Nessa sequência final vemos um homem que encontra, por acaso e no exterior, o protagonista deitado no chão de uma pequena casa de floresta e um Blake, nu e translúcido, a sair do seu corpo e a subir as grades até o tecto (evidencia-se a característica que McKee apontou ao antiplot: a existência de inconsistent realities). Depois, os amigos decidem, juntos, fugir para Los Angeles. E, por fim, observamos o último plano, com a polícia e enfermeiros com uma maca em redor da casa. 

O desejo de acusar que não acontece nada não é, portanto, completamente verdadeiro. Contudo, Gus Van Sant prefere filmar não um desenvolvimento dramatúrgico e das personagens (que não existe) mas uma mera sucessão de eventos, em que o conceito e a forma se sobrepõem ao drama – filmar com base na stasis.


Curiosamente, e tendo em consideração o facto de o filme ser uma ficção inspirada em factos reais, Last Days – Últimos Dias é um caso exemplar “da inesperada e fascinante dicotomia que a relação verdade / artifício pode implicar” (Lopes, 2007). O professor e crítico de cinema João Lopes refere um momento (figura 3, em cima) em que se inicia “um plano sobre a janela da casa onde está a viver Blake (…) [no qual a] câmara começa a deslocar-se lentamente para trás, perpendicularmente à parede (…) [filmando Blake] no interior a experimentar alguns instrumentos (…)”. O plano-sequência filma, pois, “algo de eminentemente – e, apetece dizer: exclusivamente – cinematográfico: assistimos a uma pura duração (4 minutos e 43 segundos), quer dizer, a um tempo linear que se reproduz como tal na aliança vital da imagem e do som, da banda-imagem e da banda-som.” Segundo as palavras do autor, a proeza de Last Days – Últimos Dias estará, por isso, não na demonstração da não existência de plot, mas na comprovação de como o cinema pode ser entendido, “em sentido físico e metafísico, [como] uma ocupação do tempo. E o tempo, provavelmente, é sempre verdade.” 

Para além da relação com o tempo dramático, o lado mais intrincado e dificilmente atingível (se é que há, neste filme, para o espectador, um ponto de chegada) da construção de Blake associa a longa-metragem a um cinema que introduz um protagonista que é, antes de tudo, “tipicamente” moderno. O “‘homem moderno’ é o homem auto-centrado na sua vida psíquica, ela própria tornada um puzzle de fragmentos, memórias, fantasias e algumas vivências reais sobretudo decepcionantes, e que ultrapassou os problemas materiais do seu standing social” (Mendes, 2009: 96). Assim, os “filmes que ele ia protagonizar já não contavam qualquer ‘jornada do herói’ como no cinema clássico (…) [porque] inauguravam a ‘jornada mental’ do homem fechado em si mesmo e opaco ao olhar de outrem” (Mendes, 2009: 97). Last Days – Últimos Dias é, como agora parece evidente, um desses filmes que acompanham, literalmente até o fim, o percurso do “herói moderno”. 

Apesar de tudo, e verificando a atitude de Blake (tropeça, cambaleia, caminha com os braços e pernas afastados [como que] sob o efeito de narcóticos e murmura, quando perceptíveis, frases desconexas) associamo-lo a uma simples e “típica”, reforço as aspas, ideia de estrela rock. Tal como em Elephant, Last Days – Últimos Dias lida com os clichés que confinam as pessoas a grupos sociais com regras próprias. Tal como Cassavetes, Gus Van Sant exibe aquilo que Gilles Deleuze designa por “cinema dos corpos”. Em filmes como Elephant, que exibem os típicos lugares-comuns sobre a adolescência (temos Nathan, o bully desejado pelas raparigas e que faz desporto; Michelle, a rapariga que é bullied e é chamada de “rato da biblioteca”; o grupo das três amigas que mexericam juntas e, com medo de engordarem, são bulímicas; etc….), ou como Last Days – Últimos Dias (numa dada cena, uma mulher pergunta a Blake: “Dizes-lhe [à tua filha]: ‘Desculpa-me por ser um cliché do rock & roll?’”) “a personagem é reduzida às suas próprias atitudes corporais , e o que tem de sair é o gestus, isto é, um ‘espectáculo’, uma teatralização ou uma dramatização que vale para qualquer intriga” (Deleuze, 2006: 247). 


À luz deste pensamento, é preciso chamar a atenção que, em Last Days – Últimos Dias, parece ocorrer um efeito irónico de anormalização da normalidade. Na cena em que o vendedor das Páginas Amarelas entra na casa de Blake e, visivelmente desconfortável, o tenta convencer a comprar anúncios o estranhamento sentido não é do protagonista que não lhe presta atenção, com quem nos habituamos a lidar, mas com o vendedor – esse sim que parece ter vindo de outro planeta. Este efeito curioso de credibilização do protagonista / descredibilização da personagem mais próxima da realidade comprova, apenas, que ocorreu uma “[m]etamorfose do verdadeiro” e que Gus Van Sant se tornou aquilo que Gilles Deleuze considera ser um “criador de verdade, porque a verdade não tem de ser atingida, encontrada nem reproduzida, tem de ser criada” (Deleuze, 2006: 190). 

O capítulo final da “trilogia da morte” assemelhar-se-á a Elephant, ainda e talvez sobretudo, pelo estilo da realização, que unirá a narrativa (antiplot ou miniplot) com a imagem e som. Nesse aspecto, ambos são, como Gerry, filmes ditos modernos, já que põem “em relevo os tempos mortos, os ‘intervalos’ entre acções, a actividade secundária ou irrelevante (das personagens) para o progresso do plot (quando o tem). A esta preferência está associada a construção de cenas com base na stasis, em vez da obediência ao clássico encadeamento da acção” (Mendes, 2009: 90). 

Os dispositivos usados por Gus Van Sant são semelhantes às obras e figuras que cita como influências (Béla Tarr, Alan Clarke ou Stanley Kubrick), a saber: a utilização de planos-sequência longos e em movimento (a partir do uso da steadicam, pela primeira vez introduzida em Shining, filme de Stanley Kubrick de 1980) e que obriga aos actores, quando existem repetições, a manterem uma certa coreografia nos movimentos (facto que aproxima, ainda mais, o cinema de Gus Van Sant ao teatro); a preferência pela pouca profundidade de campo, que facilita a designação da personagem como “‘indivíduo abstracto’” (Mendes, 2009: 91) e ser solitário e alienado; a preocupação em centrar as personagens no enquadramento e filmá-las de costas; o uso de uma banda sonora que confunde, de modo metafórico, sons diegéticos e não-diegéticos (há, por exemplo, frequentemente a associação da ideia de morte com sons de pássaros e água a correr); a câmara parece, por vezes, deixada ao abandono (em Elephant, no início do plano em que, depois, iremos seguir Nathan; em Last Days – Últimos Dias, Blake sai do enquadramento e a câmara filma, durante aproximadamente um minuto, as folhas do arbusto que diante de si), relacionando-se com elementos próprios do cinémá vérité; e, por fim, em alguns momentos, a utilização de slow motion, que reforça a relação do realizador com a contemplação da passagem do tempo. 


Absorção e transformação 

Depois da experiência radical, narrativa e formal, que resultou da “trilogia da morte”, Gus Van Sant voltou a Portland para filmar a adaptação do livro Paranoid Park, cuja narrativa se afasta, por ser mais ou menos fiel à obra literária, do modelo de um Elephant ou de um Last Days – Últimos Dias mas que, em semelhança, regressa ao tema da adolescência e às repetições e descontinuidades temporais. Tal como a restante estrutura dramatúrgica, essas descontinuidades, que resultam de uma narração confusa (ou confundida), em off, do protagonista, que conduz o ponto de vista do espectador está mais próximo de Milk que, propriamente, da “trilogia da morte”. Porque quer Paranoid Park como Milk situam Gus Van Sant noutro “campeonato”: o da estrutura do archplot

Muito para além deste desenho dramático, Gus Van Sant viu-se diante da necessidade de se reformular (nota para o facto de que, no início dos anos 90, tinha sido convidado a realizar um argumento de Oliver Stone sobre a vida do político Harvey Milk mas que tal não chegou a acontecer devido a diferenças criativas entre realizador e produção. Em 2007, quando Gus Van Sant embarcou no desafio de adaptar o argumento de Dustin Lance Black sobre a mesma figura, o argumento de Stone entrou numa fase de development hell, ou simplesmente limbo). Depois de uma “experiência moderna”, que, se continuasse, talvez morresse “de esgotamento temático, do envelhecimento do seu ‘homem moderno’ e da crise profunda de relacionamento com os seus públicos”, Gus Van Sant voltou-se, pela primeira vez deste O Bom Rebelde e Descobrir Forrester, para o mainstream e para as narrativas “clássicas”. Este regresso materializado em Milk representou “a enorme capacidade de ‘absorção do novo’ por parte dos modelos ‘clássicos’: (…) os ‘modelos clássicos’ não voltariam a ser os mesmos depois da experiência ‘moderna’, da mostra da sua tendência inclusiva” (Mendes, 2009: 98). Hollywood mostrou como permanece “permeável” à inclusão de realizadores como Gus Van Sant e reconheceu o seu mérito: a Academia nomeou Milk para oito categorias (incluindo a de melhor filme e melhor realizador), acabando por vencer dois Óscares (melhor actor – para Sean Penn, como o protagonista – e melhor argumento original – para Dustin Lance Black). 

Como antes se disse, esta longa-metragem, que estreou em 2008, é sobre (e não inspirado em) uma figura e acontecimentos reais, Harvey Milk e a sua jornada até se tornar o primeiro político assumidamente homossexual eleito nos EUA. E situa-se, por isso, em primeira instância, no género de filme biográfico (biopic), isto é, “tem por objectivo evocar a vida de uma personagem célebre ou exemplar, cuja existência é atestada pela história ou pela actualidade” (Aumont, Marie, 2008: 37) e onde “os factos são interpretados como se fossem ficção” (McKee, 1998: 84). 

O facto de ser, expressamente, um biopic altera o modo de relacionamento do filme com o real e é, por conseguinte, distinto da relação que Gus Van Sant teve com Elephant e Last Days – Últimos Dias. Se em Elephant os acontecimentos de Columbine surgiam como uma referência provocatória e as personagens eram “criadas” sem serem inspiradas nas do massacre escolar de 1999, ou se em Last Days – Últimos Dias o protagonista partilhava parecenças com o referencial e contava, no elenco, com a presença de Kim Gordon, amiga próxima de Kurt Cobain, então, em Milk, a liberdade de ser ou não fiel a uma realidade não é opção. De Sean Penn a Josh Brolin, que interpretaram Harvey Milk e Dan White, as personagens, tal como os décors, são caracterizados com o máximo de rigor histórico possível. De facto, este rigor, aliado ao argumento de Dustin Lance Black, faz-nos compreender as potencialidades das grandes produções de Hollywood e, em seguimento, o desejo, tão didáctico quanto preocupado com a preservação da memória social colectiva, da divulgação dos episódios ou personagens que fizeram parte do devir histórico dos EUA. 


Exemplificativo do que se acaba de falar é a primeira cena, que “estabelece o ‘ponto de ataque’ do que vai ser narrado” e que mostra “a necessidade de prender a atenção do espectador desde as primeiras imagens” (Mendes, 2009: 61, 63). Após um breve prólogo que apresenta os créditos iniciais e que exibe imagens de arquivo e páginas de jornais que respeitam os confrontos entre polícia e homossexuais, surge-nos o título “1978” e uma personagem sentada, de perfil para a câmara, à frente de um microfone e de um gravador. “O meu nome é Harvey Milk e hoje é sexta-feira, dia 18 de Novembro”. A primeira frase apresenta imediatamente o género (biopic), o protagonista e a contextualização espácio-temporal. E, ainda na primeira cena, Milk avisa: “gostava que só ouvissem isto se eu for assassinado”, anunciando, ao espectador, o seu destino fatídico (Harvey viria a morrer nove dias depois). De facto, esta confrontação com aquilo que poderia servir num clímax, aliada à utilização, nos primeiros planos, de um registo audiovisual em que a então presidente da Assembleia de Supervisores anuncia o assassínio do presidente da Câmara Moscone e do supervisor protagonista, mostra uma consciência que vai para muito além da narrativa tida como ficção e, sobretudo, uma confiança no espectador de que a intensificação narrativa não será feita a partir do elemento “surpresa”. O lado menos bom da questão: como qualquer típico filme biográfico, Milk não consegue evitar repetir clichés como os títulos (apesar de estilizados) ou legendas histórico-informativas a servirem, primeiro, de dispositivo de passagem alargada do tempo e do espaço e, segundo, de epílogo. 

Contudo, e como a relação com o grande público se realiza, também e evidentemente, com a estrutura dramática (que, como já foi referido, é, no caso deste filme, o archplot), Milk insere-se “na tradição tardo-aristotélica”, não tendo “no script ‘cenas dispensáveis’” já que “todas as cenas são obrigatórias, porque uma história é um ‘burro em pé’ (uma estrutura frágil construída com cartas de um baralho” (Mendes, 2009: 63). Tudo, nesta “longa”, converge para uma progressão dramática e, para facilitar o processo, raramente há espaço para situações ou personagens ambíguas (ao contrário de Elephant ou de Last Days – Últimos Dias). 

Seguindo, do início ao fim, a condução do discurso de Harvey ao microfone, ouvindo fragmentos do seu discurso (tal como em Paranoid Park, o protagonista delineia a história ao narrá-la), acompanhamos uma série de flashbacks (ainda que o tempo seja linear) que se sucedem uns aos outros por causalidade. Sendo que Milk tem apenas um protagonista, este é participante (activo) num conflito externo, ou seja, num onde “the emphasis falls on [his] struggles with personal relationships, with social instituitions, or with forces in the physical word” (McKee, 1998: 48,49). Por fim, e concluindo as características de Robert McKee que fazem com que este filme tenha um archplot, a realidade é, em oposição a Last Days – Últimos Dias, consistente


Independentemente se obedece ou não à realidade (e obedece), o modelo narrativo pelo qual Dustin Lance Black se rege segue, portanto, uma fórmula “clássica” da escrita de ficções originais que permite que o filme seja facilmente dividido e esquematizado em partes. A divisão de Syd Field é acertada: temos um primeiro acto / set up, onde ocorre o inciting inciting (após se ter mudado, em 1972, para o Castro, em São Francisco, com o seu novo namorado, Harvey decide partir para a defesa dos homossexuais quando se sente discriminado pelo dono da loja à frente da sua); após o primeiro plot point, seguimos para um segundo acto / confrontation, onde encontramos o middle point (após muitas tentativas, Harvey consegue ser eleito como supervisor municipal de São Francisco) e, imediatamente a seguir, o desenvolvimento até o segundo plot point (depois de confrontar ameaças de assassínio e vários rivais políticos, Harvey vê, com grande felicidade, vetada a Proposta 6 na Califórnia que, grosso modo, discriminaria os homossexuais no acesso ao emprego). No terceiro acto / confrontation, chegamos ao fim do filme (Harvey é assassinado pelo antagonista Dan White e levanta-se uma marcha de milhares de pessoas de modo a homenageá-lo). 

Milk relembra a relação de Gus Van Sant com o “New Queer Cinema” dos anos 90 ainda que, neste caso, se insira no contexto do mais evidente mainstream. Não obstante, Gus Van Sant apresenta, ainda que de modo subtil, algumas marcas estilísticas que o distinguem (poderemos falar do plano simbólico do apito de um homossexual que foi morto e que reflecte uma acção em off; do plano, em slow motion, centrado nas costas de uma criança; do plano-sequência com pouca profundidade de campo em que Harvey corre, assustado, à noite, julgando ser perseguido; alguns bruscos movimentos de câmara que lembram uma abordagem próxima do documentário; ou ainda do plano da televisão que reflecte um cenário em contracampo e da utilização de sons de floresta, citações dos filmes precedentes). 

Curiosamente, um dos planos, uma panorâmica em 360º que filma Harvey e os colegas a discutir assuntos ligados à defesa dos direitos dos homossexuais, faz alusão directa ao plano em Elephant, que regista a discussão da Aliança Hetero-Homossexuais sobre os mesmos assuntos. Esta referência parece não ser ingénua. Efectivamente, a presença de elementos ligados à problemática da sexualidade e da identidade do género nota-se tanto em Elephant (para além da Aliança, os dois assassinos, antes de embarcarem no massacre, beijam-se no banho) como em Last Days – Últimos Dias (em que há duas personagens masculinas que namoram e em que o protagonista se maquilha e coloca um vestido). 

Estes elementos narrativos que, filme a filme, são introduzidos e constituem o universo van santiano revelam uma pulsão que é, antes de mais, eminentemente interventiva. Do mesmo modo que Elephant questiona (sem responder) a facilidade de acesso às armas nos EUA, a violência mediática, a influência dos videojogos ou do bullying nos estudantes, não nos importaremos de considerar Milk como um filme que é, narrativa e simbolicamente, político (relembre-se que o então primeiro-ministro de Portugal José Sócrates referiu Milk ao tomar como bandeira a legalização do casamento entre pessoas do mesmo sexo – “para construir uma sociedade mais aberta, livre, tolerante, humana e uma sociedade que luta contra todas as formas de discriminação” (Sócrates, 2009). 


Conclusão 

Da Palma de Ouro aos Óscares da Academia, Gus Van Sant é, tal como as narrativas dos seus filmes, um realizador errante, navegando do cinema independente, onde fica à margem dos estúdios e dos grandes orçamentos mas trabalha a partir de um método singular de exploração das personagens, da dramaturgia e da mise-en-scène (como nos casos de Elephant ou de Last Days – Últimos Dias), ao cinema mainstream, adequando-se – e, importa realçar, adequando-o – a uma relação com as massas feita a partir de normas narrativas arquetipais. É desse modo que cada obra realizada por si surge, nos dias de hoje, em qualquer que seja o seu território (mainstream ou independente, é indiferente), como uma exposição das ideias que fazem parte do seu percurso pessoal, ou, por outras palavras, como uma verdadeira “declaração autoral”.

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Referências bibliográficas e filmográficas
Livros:
  1. AUMONT, Robert, MARIE, Michel (2008), – Dicionário Teórico e Crítico do Cinema, Lisboa: Edições Texto & Grafia, ISBN 978-989-95884-4-8; 
  2. DELEUZE, Gilles (2006), – A Imagem-Tempo, Lisboa: Assírio & Alvim, ISBN 978-972-37-1096-0; 
  3. MENDES, João Maria (2009), – Culturas Narrativas Dominantes – O Caso do Cinema, Lisboa: EDIUAL, ISBN 978-989-8191-01-4; 
  4. McKEE, Robert (1998), – Story, Londres: Methuen, ISBN 978-0-413-71560-9. 
Sites Internet:
  1. de BARROS, Eurico – crítica a Last Days in Diário de Notícias, 15 de Novembro de 2005 
  2. LOPES, João – “4’ 43’’”, 11 de Abril de 2007
  3. LUSA (sem autor indicado) – “Sócrates: regionalização e casamento dos homossexuais são bandeiras do povo de esquerda” in Público, 7 de Fevereiro de 2009.

Artigos em publicações periódicas:
  1. LOPES, João – “Por dentro do Mal” in Diário de Notícias (suplemento DNMais), 15 de Novembro de 2003. Disponível no DVD-ROM de Elephant (Atalanta Filmes).

Trabalho realizado no âmbito da unidade curricular Teorias da Narrativa 1 (2011-2012), leccionada pelo Professor João Maria Mendes, da Escola Superior de Teatro e Cinema.

terça-feira, janeiro 03, 2012

A palavra (2): Fernando Venâncio

São dois diálogos esplendorosos, aqueles com que abre Sangue do Meu Sangue, o recente filme de João Canijo. Na cozinha, o mafioso Telmo tenta convencer uma filhota a comer, com a irmã mais crescidinha num delicioso jogo duplo. Logo a seguir, na saleta contígua (e o trabalho de câmara é sublime), o mafioso trava-se de razões com o moço traficante Joca, que vem confessar-se desfalcado duma pipa de massa. A autenticidade das falas é patente. Elas partem do real estado de espírito dos intervenientes, e não (como em soluções mais primárias) das casuais «deixas» alheias.
Quando, certa noite, o rapaz se prepara para um arranjo com o mafioso, a muito jovem tia Ivete é terminante: irá com ele. Vestida para sair, pondo a carteira ao ombro, diz: «Já chamaste o táxi?» E o rapaz, de costas para nós, uma voz de súplica: «Deixa-me ir sozinho.» Ela avança, rumo à porta, rumo a nós, passado rente a ele: «Vou bem assim?» É um prodígio de economia linguística. Andou ali mão de mestre. Ou de mestres, já que, no genérico, os diálogos têm atribuição plural. Os americanos, que são heróis nestas finezas, não fariam melhor.
Quando ainda tudo são rosas, a protagonista Márcia tem um monólogo, pensativo, ziguezagueante, enquanto a filha Cláudia toma um duche. «Mas eu vou sentir muita falta é de ti. Vai-me fazer muita falta, a Cláudia, muita falta, filha, vou ter muitas saudades tuas. Que a gente tá habituadas é a dormir juntas, n'é?» E por aí discorre. É ouro puro.
As nossas conversas surgem-nos, de facto, atulhadas de minúsculas disfunções: a frase inacabada, a precipitação, o ajuste de rumo, o cultismo deslocado, a graça involuntária, o mal-entendido, o anacoluto ou falha lógica («Se chover, está aqui um guarda-chuva»), a formulação idiota que escapa ao interlocutor e por isso é certeira. Os bons autores de diálogos conhecem essas sinuosidades e, mais, têm a coragem de reproduzi-las. Tão bem o fazem que nos sentimos envoltos em realidade. Só não saberíamos dizer porquê.
Fernando Venâncio in revista LER (Língua movediça - Sinuosidades do diálogo), n.º 109 (Janeiro de 2012), segunda série.