segunda-feira, janeiro 24, 2011

Afterschool


Afterschool, primeira longa-metragem de Antonio Campos, é um grande exercício de cinema, que vai buscar, antes da poesia de Gus Van Sant, as raízes da obra de Michael Haneke ou, se quisermos especificar um trabalho seu, a Benny’s Video

Para este filme, Campos foi assaz perspicaz: por um lado, tece uma crítica social ao filmar o protagonista como um estrangeiro numa escola e microcosmos esburacados em vícios, mas fechados numa falsa moral e constante busca de ilusões que a sustentem; por outro, distancia-se do miúdo para demonstrar o absurdo do seu próprio vício, o do voyeurismo solitário de que o nosso actual mundo ocidentalizado ficou característico, engolido e entupido. Assim, fá-lo filmar-se a masturbar-se e a ver pornografia na Internet, fá-lo falar sobre os vídeos de gatos a tocar piano, fá-lo filmar os últimos instantes de vida de uma pessoa e contemplá-los em mórbido prazer, tudo com uma absoluta e implacável distância, de tal forma que o próprio espectador é obrigado a sentir-se sozinho a assistir a um espectáculo de terror. 

O que impressiona, pois, é a câmara do norte-americano, que se aproxima à vigilância de uma de segurança, pela rigidez e pela forma como se interessa pela acção decorrente. Mais que querer captar as expressões das personagens, os longos planos sequência e os meditados enquadramentos, geralmente muito fechados, procuram justificar uma estética de forte realismo e distanciação das personagens, e uma dura rejeição à brevidade e espectacularidade dos novo media e à democratização do meio audiovisual. Para Campos, há o cinema e há o áudio e o vídeo, que são para si inconciliáveis. A forma que crê ser melhor para o comprovar é juntando-os: ridicularizando, primeiro, o esforço do protagonista em fazer um vídeo de homenagem a duas desconhecidas a que assiste a perda da vida, deparando-se com a fúria de quem recebe o resultado final, reclamando, entre outras coisas, o facto de “não ter música”, e ridicularizando, depois, o trabalho de quem quis remontar os mesmos ficheiros de vídeo, mostrando ao espectador um vídeo, repleto de lugares comuns e fórmulas feitas, que quer puxar a lágrima ao público-personagem de Afterschool (e esta é uma reviravolta interessantíssima, porquanto obriga à reflexão sobre a imbecilidade própria do público do cinema pipoca). Para além desta preocupação, Campos também surpreende ao manobrar a atenção constante do espectador nos planos estáticos e demorados, colocando imagens fortes como uma televisão ou uma câmara de filmar, atingindo o efeito do espelho que Haneke é exímio a executar (relembro o seu «Caché»). 

A forma de Afterschool é, assim postos os termos, um manifesto do autor, que aproveita, com a história, dotada, infelizmente, de algumas deficiências, para tocar nos pontos que lhe interessam e nas inquietações que assolam o pensamento. O final do filme é certeiro – o espectador metaforiza-se no inimigo, no público fantasma que é o voyeur, e é apanhado pelo protagonista, que, de costas para nós, olha de soslaio com um medo de morte. A cena perfaz a totalidade da película, que não é mais senão um quadro pessimista de uma nova geração emergente: a do Youtube e da crescente insensibilidade imagética e artística.

sábado, janeiro 01, 2011

Enter the Void

Considero Gaspar Noé um grande cineasta; um visionário cujas convicções extremas sobre a vida se manifestam nas imagens, geralmente surpreendentes, que cria para os seus filmes. Comprovam-no a curta-metragem “Carne” que é seguida por “Sozinho contra Todos”, onde, a partir da implacabilidade da atitude lúcida do protagonista face às pessoas, a moral que as orientam e a sua própria existência, viu na revolta e na violência as únicas formas de estar no mundo, para além do suicídio; e a longa-metragem “Irreversível”, a sua obra-prima, sobre a qual questiona a origem da causa primeira da destruição que se sente no Presente. A áurea das suas histórias parece navegar entre o mais grave pessimismo e a crença absoluta no egocentrismo do homem (tanto que “viver é um acto egoísta”), que julga ser-lhe naturalmente intrínseco. Para isto retratar, Noé aposta em histórias com um arco de mudança “decadente”, quer dizer, com um destino a seguir sempre o pior desenvolvimento para as suas personagens, e em histórias que, com o objectivo de abalar o pathos do espectador, contenham as mais chocantes situações para os protagonistas. A sua estratégia, sem dúvida premeditada e crua, é geralmente culpabilizá-las do seu próprio fado (relembro a sua curta documental “Sida”).

Talvez seja por isso que o mais recente trabalho do realizador francês, “Enter the Void”, saiba plenamente a ele mesmo, porque lá estão todos os ingredientes que o caracterizam. Aqui, propõe-se a tratar dois temas centrais: as drogas e os seus efeitos, e a morte. Quanto ao primeiro, entramos em Tóquio e num psicadélico exercício cuja mestria na representação pode ser equiparada a Aronofsky, com o seu “Requiem”, ainda que de forma completamente distinta. Os efeitos especiais são incríveis, embora o deslumbramento se possa tornar, a quem não se predisponha a acompanhá-los de forma calma, cansativo. E entende-se perfeitamente o objectivo de aproveitar este tema central para as manias que a realização vem a mostrar. Quanto ao segundo, Noé trata de novo a morte e a reacção perante ela. A singularidade que este filme traz reside no facto de o protagonista viver na primeira metade e estar, omnisciente, presente na segunda, mas morto.

No entanto, ao contrário dos seus precedentes filmes, Noé perde-se e descuida-se na estrutura e no conteúdo do seu argumento. Começa por tratar a relação íntima de dois irmãos, desde a infância onde perdem os pais e fazem um pacto de sangue de que ficarão sempre juntos, até a maioridade onde voltam a ficar juntos e se separam por culpa dos destinos que ambos escolheram para as suas vidas. No entanto, tudo surge emaranhado numa teia de acontecimentos forçados, descredibilizando a própria personalidade de cada personagem e a relação que têm umas com as outras, sobretudo a principal, entre irmão e irmã. O realizador, como argumentista, parece obrigar-se de tal forma a mostrar uma relação de companheirismo e entendimento que o resultado final mostra-se desonesto e com lugares-comuns, ao contrário do que se viu com “Irreversível” e a relação do casal central, também com os seus altos e baixos. Da mesma maneira, Noé parece, a dada altura, não ganhar imaginação para seguir o filme em linha recta a partir do acontecimento primeiramente mostrado e forçar-se a inventar uma série de desinteressantes acontecimentos que, como um puzzle mal montado, surgem desconexos e apenas a encher o que podia ser preenchido com outro conteúdo. Por fim, trata a sexualidade como antes, mas de forma mais livre e, ao mesmo tempo, mais descabida, e introduz elementos de fantasia e misticismo que não lhe são característicos e que, portanto, surgem pouco credíveis.

Apesar destas deficiências, o filme revela-se como um verdadeiro fluxo de consciência e ilude o espectador com uma espécie de fluído plano sequência, de quase três horas, que sai e entra na mente do protagonista, mostrando as suas recordações (e aí uma evidente découpage, que se assemelha à primeira metade de “Sozinho contra Todos”, toma cargo do filme) e pensamentos. É por isso na realização que “Enter the Void” ascende a um nível de originalidade singular, ainda que de toda essa ambição resulte, nalguns momentos, uma concretização de pirotecnia visual desnecessária. A maneira como se desloca e os caminhos por onde a câmara filma são de uma mestria completamente arrebatadora, dando razão a Kubrick quando diz que “if it can be written or thought, it can be filmed”. E há um claro envolvimento – diria até quase imposto – do espectador com o protagonista, dado incontáveis momentos de pura subjectividade. Noé põe-nos, literalmente, a fumar, a ficarmos drogados, a lavarmos a cara e a olharmos para um espelho, a voar como um fantasma, a fazer sexo e a morrer. Há um estranho magnetismo que os círculos e as lâmpadas detêm sobre o olhar do espectador, tudo para que se explore toda a estranha beleza da luz, associada aqui à morte, à perda de noção de tempo e espaço e às drogas.

Diria, resumidamente, que “Enter the Void” é um inesquecível exercício de cinema, que mostra como um realizador tão maduro e firme ideologicamente consegue inovar-se a cada trabalho que realiza, ainda que, infelizmente, contenha deficiências na sua estrutura narrativa que impedem uma completa elevação deste aos melhores filmes do cineasta francês.