quinta-feira, dezembro 08, 2011

A antinomia em Morrer como um Homem

Após ter passado pelo Festival de Cannes e ter sido o filme de abertura no Festival Queer Lisboa, Morrer como um Homem, a terceira longa-metragem de João Pedro Rodrigues, foi por ele anunciada da seguinte forma: “O meu filme não pretende ser um retrato nem dos travestis nem dos transsexuais, é uma ficção.” E, com isto assente, o autor falou da protagonista do filme, Tónia, um travesti já veterano que teme ser destronado do estatuto de prima donna no local onde dá espectáculos e que, apesar de se vestir e de se comportar como uma mulher no dia-a-dia, rejeita a eventualidade de uma operação de mudança de sexo porque quer morrer como um homem. “Para mim a Tónia é como a Lola Montès que, no filme de Max Ophüls com o mesmo nome, representa o espectáculo da sua própria vida. No fim do meu filme a Tónia representa o espectáculo da sua própria morte” (suplemento Ípsilon do jornal Público, 14 de Outubro de 2009). 

Estas declarações servem de ponto de partida para que reparemos nesta longa-metragem como uma obra em que o corpo e o comportamento são filmados de modo a transparecer uma interioridade antónima e de como o conflito entre os dois (corpo versus pensamento) pode ser (é) tornado tema. 

A noção de espectáculo de que o autor falou e a imagem da/do protagonista fazem-nos recordar o que Gilles Deleuze escreveu em A Imagem-Tempo sobre a ligação do cinema de Andy Warhol com o corpo. Caso o substituíssemos por este Morrer como um Homem ficaríamos com uma ideia muito acertada do que este trata: “Ao fazer de marginais as personagens do seu cinema, o underground atribuía-se os meios de uma quotidianidade que não parava de escorrer nos preparativas de uma cerimónia estereotipada, droga, prostituição, travestismo. As atitudes e as posturas passam nesta lenta teatralização quotidiana do corpo (…)” Posto isto, consideramos com justeza a personagem da Tónia (e, por que não, do seu namorado toxicodependente) como elementos fundamentais “de um cinema dos corpos”, como precisamente o de Warhol, visto que, em parte (importante reforçar isto), “a personagem é reduzida às suas próprias atitudes corporais”, saindo “o gestus, isto é, um «espectáculo», uma teatralização ou uma dramatização que vale para qualquer intriga”. 

Contudo, não é de esquecer que o filme português é, em primeira instância e quanto ao seu género, um melodrama cuja teatralização do corpo protagonista (e suas atitudes e posturas) encontra correspondência directa com a mise-en-scène

E porquê? Em primeiro lugar porque, atendendo à art direction (assinada por João Rui Guerra da Mata), reparamos que “os décors são muitas vezes feitos em função das atitudes do corpo que eles comandam e graus de liberdade que lhes deixam” (por exemplo: o camarim colorido de Tónia com o guarda-roupa e distintivas da sua profissão bem como outras fotografias caracterizadores do seu carácter; o seu quarto, com um “altar” com um motivo religioso que assinala a sua devoção; a casa da Maria Bakker escondida na floresta, cuja decoração posicionada com uma rigorosa harmonia a afirma como uma personagem também ela severa e precisa nos movimentos). 

Em segundo lugar porque Morrer como um Homem, tal como Deleuze fala sobre o cinema de Jean-Luc Godard, “vai das atitudes do corpo, visuais e sonoras” (ligadas, neste filme, desde o espectáculo profissional ao da própria vida de Tónia) “até ao gestus pluridimensional, pictórico, musical, que constitui a cerimónia, a liturgia, o ordenamento estético”. Para exemplificar esta transfiguração podemos pensar no extraordinário plano-sequência da silenciosa Tónia e do namorado que canta no cemitério. Fazendo citação a Jacques Demy (em Os Chapéus de Chuva de Cherburgo há um plano que, em termos puramente formais, é muito semelhante), João Pedro Rodrigues “petrifica” as duas personagens e fá-las desfilar por cima de uma passerelle, filmando-as num travelling recto (fotograma em baixo). 


Entre os múltiplos significantes desta sequência podemos retirar a sua artificialidade e musicalidade [1] inerentes (ligada a toda a restante estética do filme e que tem, em grande parte, que ver com o próprio mundo em que vive a protagonista) e, provavelmente como consequência do irrealismo, a noção de espiritualidade: já o cemitério se apresenta como local que, ao fazer transparecer (de novo a ideia de espaço exterior como ponte de acesso à interioridade e a de que “as paisagens são estados mentais”), nos relembra o conflito essencial de Tónia – querer viver como mulher mas não poder morrer como tal aos olhos de Deus. Porque, e tal como Deleuze escreveu, “mesmo se decidir por ela, não muda nada. O seu corpo conserva sempre a impressão de uma indecidibilidade que não era senão a passagem da vida”. 

Todo o comportamento, as posturas e decisões de Tónia revelam, em si mesmos, a ambiguidade, característica do cinema moderno, que serve de motor de progressão deste filme. O método de João Pedro Rodrigues parece ser, como o autor de A Imagem-Tempo descreveu o de Antonioni, observar “o interior pelo comportamento, já não a experiência, mas «o que resta das experiências passadas», «o que vem depois, quando tudo foi dito»”. 

Morrer como um Homem é, por isso, um objecto singular no sentido em que, ao mesmo tempo, o corpo e o pensamento (neste caso do / da herói / heroína – e só esta ambivalência é suficientemente demonstrativa) coexistem e se anulam através de um modo de viver (como homem ou como mulher, é indiferente) à frente da câmara e de um modo de filmar essa vida trágica e indecisa. 

[1] A Cinemateca Portuguesa programou, em Novembro, um ciclo de filmes ligados à noção de musicalidade no cinema, tendo incluindo Morrer como um Homem na selecção. Na sessão de apresentação, João Pedro Rodrigues referiu a cena “tingida” de vermelho em que ouvimos, com as personagens paralisadas do filme, a canção Calvary, de Baby Dee.


Trabalho realizado no âmbito da cadeira de Estética no Cinema 1, da Escola Superior de Teatro e Cinema.

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