sexta-feira, dezembro 30, 2011

Top 10 melhores filmes de 2011

10. ROAD TO NOWHERE – SEM DESTINO, de Monte Hellman

Uma resposta ao mistério ontológico da criação da imagem cinematográfica, debruçando-se sobre a realidade re-presentada (isto é, tornada presente) durante a rodagem de um filme. O realizador-protagonista não é, por isso, senão o espelho de Hellman, que se olha para si mesmo como um criador de várias realidades, ainda que indissociáveis. [texto]

9. UMA SEPARAÇÃO, de Asghar Farhadi

Entre o realismo e o melodrama, Asghar Farhadi constrói na sua quinta longa-metragem, em tom desencantado, uma espécie de evidência sociológica – de que a verdade e a mentira, de mãos dadas com a religião e o medo, são valores que coexistem, para o bem ou para o mal, sem separação

8. O MIÚDO DA BICICLETA, de Jean-Pierre & Luc Dardenne 

Os irmãos Dardenne comprovaram aqui que é possível, na moral e nos tempos que correm, pensar uma dura realidade a partir de uma ficção que demonstre que as pessoas se podem preocupar umas com as outras. Ou em poucas palavras: que a nossa necessidade de sermos amados pode ser consumada. [texto

7. O ATALHO, de Kelly Reichardt

Apesar de registar um espírito histórico e primitivo de povoamento, união e descoberta, a câmara desta cineasta é consciente do seu tempo e não deixa de filmar algo que permanece profundamente contemporâneo: como o ser humano reage (e se revela) face ao desconhecido e a situações-limite. [texto

6. INQUIETOS, de Gus Van Sant

Muito embora possamos pensá-lo um filme sobre a morte será melhor desenganarmo-nos. Parece ser sobre uma questão ainda mais fundamental: como viver a vida ou, sem redundâncias, como viver? Porque, como aqui ouvimos, a morte é fácil, o amor (ou toda a vida, não nos importemos de acrescentar) é que é difícil. Em Inquietos chora-se – mas pelos vivos. No plano final do filme percebemos que a memória é o recurso que nos é mais caro para lidarmos com tudo aquilo que é efémero, tudo aquilo que já não é. [texto

5. AS QUATRO VOLTAS, de Michelangelo Frammartino

Uma visão tranquila sobre a jornada de um homem, de uma cabra e de uma árvore e que pode ser entendida como uma meditação tranquila, fresca e bela sobre a vida, o espírito e as suas metamorfoses.

4. SUBMARINO, de Richard Ayoade

Extraordinário olhar sobre a vida frenética, por vezes imaginada, de Oliver Tate, um jovem galês obsessivo e solitário. Lidando com força com os lugares-comuns da adolescência esta inesquecível comédia (que nos remete para múltiplas citações cinematográficas – mas sem as esconder) é também uma redescoberta do que significa o primeiro amor e o valor da palavra felicidade.

3. SANGUE DO MEU SANGUE, de João Canijo

A sedução de Sangue do meu Sangue provém da criação de um microcosmos (o Bairro Padre Cruz e, se quisermos ser mais particulares, a família que lá vive) que nos obriga, apesar de toda a familiaridade cómica e trágica daqueles comportamentos, a criar uma distância sobre nós – como portugueses e como seres humanos. Portanto: o que são o futebol, o telejornal e a telenovela ao lado dos dramas, das conquistas e da vida que partilhámos e nos une? É aí que reside a irresistível luminosidade de Sangue do meu Sangue: obriga-nos com que não nos esqueçamos da matéria de que somos feitos. [texto]

2. MEL, de Semih Kaplanoğlu

É um daqueles raros acontecimentos cinematográficos que não se esperam - manter uma proximidade com a Natureza, a família e a infância num tom panteísta forte e belo e sermos assim introduzidos a um tipo de realismo espiritual (o termo é do próprio Semih Kaplanoğlu), é coisa rara (embora necessária) no cinema de hoje. 

1. A ÁRVORE DA VIDA, de Terrence Malick

Parece, após vermos The Tree of Life, devidamente sem ideias pré-concebidas, impor-se uma questão: como pode o espectador receber um meteorito metacinematográfico como este que se propõe a questionar toda a sua existência? Que efeito terá a obra-prima de Terrence Malick em si? Mais que uma outra aparição nesta forma de expressão, este é um raro filme, sem distinções de público, que ambiciona redefinir-se como objecto de cinema e, para além disso, redefinir quem o percepciona. Então voltemos: como receber este filme que, a partir do momento extraordinário em que o vemos – ou, se nos quisermos aproximar mais da experiência, sentimos –, entramos dentro de nós, recordando afectos, sensações e uma vaga e passada aproximação com o divino, e imaginando respostas para as questões que nos assolam (e permanecem, porventura, silenciadas pelo esquecimento ou o medo)? The Tree of Life, se nos propusermos a mudar os seus contextos e figuras, podia ser um sonho nosso – e Malick parece construir exactamente isso, o seu derradeiro devaneio, uma visão da transcendência e uma ode de proporções cósmicas ao sentirmo-nos vivos, ao amor (esse misterioso sentimento), à família e ao alcance do sagrado por via da comunhão com a Natureza. O terreno serve de ponte para o que realmente interessa: despertar-nos para uma mudança interior e fazer-nos parecer, ao mesmo tempo e de maneira visceral, pequenos e grandes. Os protagonistas são fantasmas que emergem de nós – à luz do filme, não existem referências quando se quer sentir a Vida em estado de graça. The Tree of Life, um dos mais misteriosos filmes do século, é, para além de um hino à humanidade, uma essencial obra sobre o Fim, percorrendo uma busca incansável pela compreensão da morte ou pela aceitação do seu mistério. [texto]

A elaboração do top seguiu os seguintes critérios: 1) filmes que tiveram estreia comercial em sala em Portugal e em 2011 (excluindo, por isso, projecções em festivais de cinema exclusivamente) , 2) apenas longas-metragens.

quarta-feira, dezembro 28, 2011

Reviver Pocahontas

A convite do blogue sound + vision escrevi sobre aquele que, ainda que não sendo o meu preferido dos estúdios de animação Walt Disney, foi um dos filmes mais marcantes da minha experiência pessoal (quando mais não seja porque foi o primeiro que vi em sala), Pocahontas (1995). Aproveito para agradecer aos autores pelo convite. Poderão ler o texto na íntegra aqui.

terça-feira, dezembro 20, 2011

Um Filme Indiscreto


É certamente uma das imagens mais marcantes que pudemos ver este ano no que toca ao cinema português. Ainda que por aqui já tenhamos falado de Um Filme Português, de Levi Martins, Vitor Alves, Miguel Cipriano, Jorge Jácome, Vanessa Sousa Dias e Carlos Pereira, não é de esquecer que a matéria de um filme pode reflectir (sobre) tudo, até de ele mesmo. Curiosamente, ou talvez não, esta representação das vivências domésticas (alguém falou na Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock?) assinala um denominador comum – a televisão, portadora da correria desenfreada dos nossos tempos (vemos Oprah Winfrey em baixo, outro canal indistinto mais em cima…). A missão do cinema parece ser, por isso, antes de dar a ver, olhar e fixar-se no objecto filmado como se o tempo deixasse de correr. E essa capacidade, para além de ser exclusivamente cinematográfica, transcende qualquer proveniência geográfica.

sábado, dezembro 17, 2011

Double Feature [8]:
Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor e O Atalho

O Double Feature é um espaço de opinião sobre dois DVDs lançados (ou reeditados) pelas distribuidoras portuguesas. Os comentários que seguem foram publicados na edição n.º 38 (Novembro 2011), na revista Premiere.

Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor, de João Canijo
Midas Filmes 
Filme: ★★★ / Extras: 

Antes de João Canijo ter estreado em Portugal, no passado dia 5 de Outubro, o monumento cinematográfico Sangue do meu Sangue, a oitava edição do festival IndieLisboa apresentou, na secção Director’s Cut, este pequeno documentário que revela e reflecte o processo de criação entre o realizador e o elenco do qual nasceu o guião. É por isso que, através de um lado cronológico, ilustrativo e eminentemente lúdico (Canijo chegou a afirmar que o estudo deste objecto seria importante para as escolas de teatro e cinema, na antestreia do documentário em Lisboa que contou com a presença de Rita Blanco, Cleia Almeida e Nuno Lopes), acompanhamos o desenvolvimento das personagens e respectivos conflitos e cruzamentos dramatúrgicos. Muito embora tenhamos ficado com a sensação de que este filme, não obstante a sua relevância, não ficaria mal enquadrado como um extra de um DVD, parece difícil tornarmo-nos indiferentes à singularidade da metodologia incomum e empenho visionário dos actores de Sangue do meu Sangue

O Atalho, de Kelly Reichardt
Alambique 
Filme: ★★★ / Extras:  

Se o minimalismo foi continuamente uma característica apontada ao cinema de Kelly Reichardt (autora de Wendy e Lucy), então O Atalho afirma-se possivelmente como o exemplo mais demonstrativo. Não nos importemos também de chamar a Reichardt uma paisagista norte-americana, cuja pulsão contemplativa (tornada real pela direcção de fotografia de Christopher Blauvelt) encontra alguma semelhança com a de pintores como Frederic Church (1826-1900). Assim, a narrativa, inspirada num caso verídico situado em meados do século XIX, segue três famílias guiadas por Stephen Meek, um explorador que contratam e que afirma conhecer um atalho para a sua viagem (este percurso está identificado entre os trilhos históricos do Oregon). Apesar de registar um espírito histórico e primitivo de povoamento, união e descoberta, a câmara desta cineasta é consciente do seu tempo e não deixa de filmar algo que permanece profundamente contemporâneo: como o ser humano reage (e se revela) face ao desconhecido e a situações-limite.

É uma brincadeira

Apareceu no Festival de Cannes como um extra-terrestre – Alain Cavalier, que com Thérèse, drama espiritual sobre a freira carmelita Teresa de Lisieux, venceu o prémio do júri em 1986, apresentava Pater (na secção competitiva), que foi reconhecido como o OVNI da passada edição do festival e que teve direito a estreia nas salas de cinema portuguesas (a 20 de Outubro). 

Aqui, Cavalier e Vincent Lindon, amigos próximos, decidem vestir um fato e uma gravata, filmar-se e interpretar as suas próprias personagens (realizador e actor), acabando por dialogar um com o outro fingindo serem presidente da república e primeiro-ministro. “É uma brincadeira”, resumiu o realizador e protagonista, sendo que a questão ontológica fundamental quanto a este objecto básico, à partida respondida, parece restar-se a “é tudo a fingir?” (tal e qual Cópia Certificada, de Abbas Kiarostami). 

Será uma brincadeira com o espectador? Após um divórcio com a ficção, o autor de Pater parece demasiado preocupado com a mentira quer na indústria do cinema como na França de Nicolas Sarkozy. Anulando a transparência de que teorizou André Bazin e afundando-se numa mise en abyme pouco original, Cavalier esconde-se por detrás das câmaras digitais de vídeo à procura de uma verdade que nunca parece ser atingida. 

Sem nunca esquecermos a sua intenção e liberdade conceptual, este making of e filme ao mesmo tempo nunca nos chega a despertar o interesse – não pela sua forma aparentemente inédita, mas por ser, apenas e só, preenchido por um jogo de diálogos vazios e um retrato de uma amizade que tudo tem de palavroso e de falso.

Esta crítica foi publicada originalmente na revista Premiere (n.º 38 / Novembro 2011).

O filho de mil mulheres

Acompanhamo-lo como uma lenda viva e conhecemos o seu universo de fio a pavio. Mas com o tempo “ficou mais austero – quase japonês”, garante António Banderas. Ele é Pedro Almodóvar, que se revela com A Pele Que Habito, [que estreou no mês passado] entre nós. Este artigo foi publicado originalmente na revista Premiere (n.º 38 / Novembro 2011).
Quando a última edição do Festival de Cannes projectou e aplaudiu o thriller dramático A Pele Que Habito, sobre um cirurgião plástico que procura vingar-se da violação da filha, pairou a sensação de que o abandono do pastiche não era inesperado ou acidental (há dois anos, o melodrama com toques de noir Abraços Desfeitos fazia já pressentir uma viragem de retórica narrativa). No entanto, ao regressar, pela quinta vez, à secção competitiva do festival, Pedro Almodóvar admitiu, em conferência de imprensa, que, apesar da sua “vontade de aceder a outros géneros cinematográficos”, pensa que regressará ao género que o celebrizou em redor do mundo – a comédia pop

Tal como escreveu Thomas Sotinel, crítico de cinema do Le Monde, a relação dos franceses com o realizador foi sempre curiosa. Grande parte do público e da crítica viram-no como um pequeno fenómeno latino até 1988, ano em que estreia Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos. Ainda três anos antes, Almodóvar criticara publicamente os programadores de Cannes de ignorarem o cinema espanhol. Contudo, esta comédia “nervosa” tornou-se no seu primeiro grande êxito de bilheteira. Em França, foi vista por cerca de 600 mil espectadores e, nos EUA, acumulou uma receita bruta de 7 milhões de dólares (aproximadamente 5 milhões de euros, o que equivale nada mais, nada menos que 10 vezes mais do orçamento com que o filme foi produzido). Foi também com esse filme que Pedro Almodóvar viu, pela primeira vez, uma obra da sua autoria ser nomeada para o Óscar de melhor filme estrangeiro (nesse ano, foi levado pelo dinamarquês Pelle, O Conquistador, de Bille August). Mais tarde, em 1999, Cannes render-se-ia por fim ao fenómeno almodóvariano, colocando Tudo sobre a minha Mãe em competição. Apesar do prémio para melhor realizador, Almodóvar não se contentou por não levado a Palma de Ouro (que galardoou os irmãos Dardenne com a sua Rosetta) e, para além de ter acusado David Cronenberg, então júri da competição oficial, de inveja (como recorda Thomas Sotinel em Masters of Cinema – Pedro Almodóvar), impediu que Fala com Ela (Óscar para melhor argumento) fosse seleccionado para a edição de 2002 do festival. 

Em vésperas do final do século XX, quando Cannes viu, pela primeira vez, um filme de Almodóvar, na verdade encontrava no ecrã uma síntese amadurecida do que havia sido o seu cinema até então. A crítica de cinema do LA Weekly Ella Taylor chegou a escrever, para o livro 1001 Filmes para ver antes de morrer, que Tudo sobre a Minha Mãe contém, não obstante o seu “tom mais contemplativo, sombrio e tranquilo” característico de obras como A Flor do meu Segredo (1995) e Fala com Ela, “sequências repletas de honestidade e balbúrdia à semelhança das obras iniciais do realizador” e uma “definição elástica de feminilidade proposta por Almodóvar e pelo seu espírito conciliador”. 

Efectivamente, a ligação entre a mulher como protagonista e Pedro Almodóvar parece ser indissociável (salvo raras excepções, como é o caso deste mais recente A Pele Que Habito, a ter, entre nós, antestreia na [passada] edição do Lisbon & Estoril Film Festival e estreia comercial [no] dia 17 de Novembro), desde logo na sua infância. Nascido em princípios dos anos 50 (não se conhece o ano exacto), em plena época de ditadura franquista e de opressão social e cultural (exibiam-se produções de Hollywood e, quando espanholas, eram sentimentalistas), Pedro foi o terceiro filho de António Almodóvar, um condutor de carroças, e de Francesca Caballero. Segundo o realizador revelou no dia depois da sua morte, em 1999, a mãe criara, tal e qual a longa-metragem Central do Brasil de Walter Salles (lançada um ano antes), um negócio que envolvia o processo de leitura e escrita de cartas (experiência que marcaria o cinema de Almodóvar que, de acordo com as suas palavras, lhe mostrou “como a realidade precisa da ficção para ser completa, mais agradável e tolerável”). Em Fevereiro de 1989, Carmen Maura, uma das actrizes que mais colaborou com o autor espanhol, revelou, numa entrevista publicada no Le Monde, que “o segredo de Pedro é a sua mãe”, uma “mulher trabalhadora” e humilde que “nunca quis ver os filmes do filho”, apesar de “se contentar com os prémios que vence e traz para ela”, tendo-os colocado na parede ou em cima da lareira. 

Este lado modesto da mãe, fortalecido por uma afectividade eminentemente latina com a qual o cineasta conviveu durante os primeiros anos de vida, poderá estar, eventualmente, na origem da sua forma de olhar a mulher contemporânea desde as primeiras e subversivas curtas-metragens que filmou com uma câmara Super 8, mesmo antes da queda do regime. A criação dos objectos fílmicos, cuja narrativa, baixíssimo orçamento e utilização de recursos denunciavam o seu amadorismo inerente, decorreu numa altura em que Pedro Almodóvar tinha acabado de deixar a família e passado a viver em Madrid onde era reconhecido como hippie (participava como figurante em filmes, vendia bugigangas flower power na rua, usava o cabelo comprido e convivia com um círculo íntimo de amigos composto por toxicodependentes e fãs de David Bowie). Viviam-se então os tempos fulgurantes da Movida, um entusiasmado movimento contracultura, liberal e underground que, para além de ter coincidido com a morte de Franco em 1975 e com a subida ao poder do socialismo na capital, confirmou Pedro Almodóvar como um dos seus protagonistas. Após se ter estreado, em 1978, nas longas-metragens, com Folle… Folle… Fólleme Tim!, Pedro Almodóvar deixou, dois anos depois, o amadorismo de parte e lançou-se para uma produção com maior organização e orçamento, cujo título Pepi, Luci, Bom e Outras Tipas do Grupo descortinava o núcleo principal de personagens femininas (e feministas) da narrativa. Curiosamente, o realizador resumiu o filme (enquadrado fora de competição no festival de cinema de San Sebastián) ao jornal espanhol El País como um “policial”, uma “comédia sobre mulheres”, um “filme pop” (por causa do seu “ritmo, superficialidade e luminosidade”) e um filme de Bergman e de Cukor, tudo ao mesmo tempo. A presença da mulher forte, superior e cáustica ficaria desde então reconhecida, até o dia de hoje, como uma distintiva dominante da sua obra – de tal modo que, em 2006, quando apresentou Volver – Voltar no Festival de Cannes, viu todo o seu elenco constituído predominantemente por mulheres receber um prémio conjunto de melhor interpretação feminina. 

Por sua vez, Volver – Voltar é um daqueles casos em que Pedro Almodóvar representa um dos seus temas mais queridos – o retorno às origens e ao passado. E, curiosamente, o autor reuniu-se aqui com grande parte das actrizes que dirigiu, colocando lado a lado aquelas que foram, com o tempo, apresentadas como as suas “musas”: Carmen Maura e Penélope Cruz. Nesta longa-metragem, o autor realiza um exercício de memória que relembra a sua mãe, a infância passada em La Mancha e as fortes imagens que lhe ficaram gravadas no pensamento nessa época (tomemos como exemplo o ritual da cena inicial, na qual um grupo de mulheres lavam, num cemitério, com fascinante energia, os jazigos dos familiares). 

Também Má Educação (que abriu, fora da competição oficial, a edição de Cannes de 2004) se assumiu como uma representação do passado autobiográfico de Pedro Almodóvar, ainda que numa esfera dramatúrgica completamente diferente. Regressando aos seus dez anos de idade (que foi, em boa verdade, o número de anos que precisou para escrever o guião), Almodóvar demonstrou como a sua adolescência foi assombrada pelo colégio religioso de Salesianos que frequentou. Tendo cantado a solo ao lado do coro de crianças (onde cantou uma versão da música napolitana Torna a Surriento, que é inclusive interpretada no filme, numa das cenas mais tensas), o então jovem Pedro testemunhou, com silencioso horror, casos de abuso sexual que foram denunciados em Má Educação

Contrariando as expectativas dos habituais espectadores, o realizador e argumentista afastou aqui, por inteiro, a presença da mulher – mas não da feminilidade. De facto, esta característica inédita permitiu que Almodóvar, declaradamente gay, explorasse, com mais profundidade, o seu imaginário queer, o que acabou por se materializar na representação da descoberta sexual, do universo da prostituição homossexual e dos travestis e respectivos espectáculos, com o actor Gael García Bernal a vestir, como um camaleão, diferentes papéis. Em filmes anteriores, o autor havia já abordado a questão da sexualidade não-normativa, como foram os casos de Tudo sobre a minha Mãe e, sobretudo, A Lei do Desejo (de 1987), filme inclusivamente anterior à vaga de produções que, em inícios dos anos 90, colocou em vários festivais de primeiro plano títulos que tratassem esta temática. 

A par da descoberta da sexualidade, Má Educação apresenta, de igual forma, a descoberta do cinema (como ocorreu com o realizador nos anos 60), colando-se a ele ao ponto de o tornar parte da narrativa (de certa maneira, estamos diante de um caso de um filme dentro de outro filme). No que toca às referências, Pedro Almodóvar nunca guardou segredos, confessando a sua admiração pelo visual de Rainer Werner Fassbinder, o lado absurdo, anticlerical e transgressor de Luis Buñuel e o burlesco de Federico Fellini. Para além do mais, será impossível deixar de reconhecer na sofisticação melodramática dos filmes do espanhol a influência decisiva que teve o cinema moderno de Alfred Hitchcock e a obra de Andy Warhol. Para verificarmos a sua inspiração basta, apenas, que atentemos nas cores agressivas, quentes e “espanholas” dos cenários e do guarda-roupa, e na direcção artística luminosamente kitsch e pop

António Banderas, personagem principal de A Pele Que Habito, garantiu numa entrevista à agência de notícia Reuters que Almodóvar “amadureceu como realizador e como pessoa”, tendo ficado “mais austero - quase japonês”. Hoje preparámo-nos, sem receios, para descobrir a nova pele que habita o autor e que elevou, depois de Carlos Saura, o cinema espanhol a outro patamar. E continuaremos a acompanhá-lo como uma lenda, cuja vida e obra parecem ainda ter muito que nos dar a ver. 

Uma obra entre colaborações

“Voltar a trabalhar com o Pedro foi como regressar às minhas raízes. Foi ele que fez a minha educação artística”, confessou António Banderas na conferência de imprensa de A Pele Que Habito na mais recente edição do Festival de Cannes. Com esta longa-metragem, o casamento profissional entre os dois foi realizado pela quinta vez, após se terem encontrado na última metade dos anos 80 em Matador (1986), A Lei do Desejo (1987), Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) e Ata-me! (1990). Mas esta é apenas uma das muitas colaborações que podemos assinalar no cinema de Pedro Almodóvar. Vem-nos à memória uma das mais antigas – entre ele e o próprio irmão Agustín, com quem fundou em 1985 a produtora El Deseo, que viria desde então a produzir todos os seus filmes. Logo depois, como uma inevitabilidade, a actriz-fetiche Carmen Maura, que participou em Folle… Folle… Fólleme Tim! (1985), Pepi, Luci, Bom e Outras Tipas do Grupo (1980), Negros Hábitos (1983), Que Fiz Eu Para Merecer Isto? (1984), Matador, A Lei do Desejo, Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos e, após uma misteriosa separação que perdurou por 17 anos, Volver – Voltar (2006). Por sua vez, Penélope Cruz, a sua “musa” mais recente, estreou-se na sua obra com Em Carne Viva (1997), tendo trabalhado ainda em Tudo Sobre a Minha Mãe (1999), Volver – Voltar e em Abraços Desfeitos (2009). Podemos ainda apontar nomes como Cecilia Roth (Pepi, Luci, Bom e Outras Tipas do Grupo, Labirinto de Paixão, de 1982, Negros Hábitos, Que Fiz Eu Para Merecer Isto?, Tudo Sobre a Minha Mãe e um papel de figurante em Fala com Ela, de 2002), Chus Lampreave (Negros Hábitos, Que Fiz Eu Para Merecer Isto?, Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, A Flor do meu Segredo, de 1995, Fala com Ela, Volver – Voltar e Abraços Desfeitos) e Marisa Paredes (Negros Hábitos, Saltos Altos, de 1991, A Flor do meu Segredo, Tudo Sobre a Minha Mãe, um papel de figurante em Fala com Ela e, mais recentemente, uma colaboração em A Pele Que Habito). Também Blanca Portillo, Lola Dueñas e Lluís Homar são nomes que encontram alguma presença na obra de Pedro Almodóvar.

Premiere de Dezembro já está nas bancas

O número 39 da revista de cinema Premiere já está nas bancas. Lá poderão encontrar da minha autoria, para além do quadro das classificações de filmes em sala, a cobertura, com críticas e entrevistas, que fiz do festival doclisboa com Basílio Martins, a crítica ao novo filme dos irmãos Dardenne, O Miúdo da Bicicleta, que estreia este mês e a crítica a dois lançamentos recentes em DVD, Isto não é um Filme, de Jafar Pahani, e Muriel ou o Tempo de um Regresso, de Alain Resnais.

quinta-feira, dezembro 08, 2011

A antinomia em Morrer como um Homem

Após ter passado pelo Festival de Cannes e ter sido o filme de abertura no Festival Queer Lisboa, Morrer como um Homem, a terceira longa-metragem de João Pedro Rodrigues, foi por ele anunciada da seguinte forma: “O meu filme não pretende ser um retrato nem dos travestis nem dos transsexuais, é uma ficção.” E, com isto assente, o autor falou da protagonista do filme, Tónia, um travesti já veterano que teme ser destronado do estatuto de prima donna no local onde dá espectáculos e que, apesar de se vestir e de se comportar como uma mulher no dia-a-dia, rejeita a eventualidade de uma operação de mudança de sexo porque quer morrer como um homem. “Para mim a Tónia é como a Lola Montès que, no filme de Max Ophüls com o mesmo nome, representa o espectáculo da sua própria vida. No fim do meu filme a Tónia representa o espectáculo da sua própria morte” (suplemento Ípsilon do jornal Público, 14 de Outubro de 2009). 

Estas declarações servem de ponto de partida para que reparemos nesta longa-metragem como uma obra em que o corpo e o comportamento são filmados de modo a transparecer uma interioridade antónima e de como o conflito entre os dois (corpo versus pensamento) pode ser (é) tornado tema. 

A noção de espectáculo de que o autor falou e a imagem da/do protagonista fazem-nos recordar o que Gilles Deleuze escreveu em A Imagem-Tempo sobre a ligação do cinema de Andy Warhol com o corpo. Caso o substituíssemos por este Morrer como um Homem ficaríamos com uma ideia muito acertada do que este trata: “Ao fazer de marginais as personagens do seu cinema, o underground atribuía-se os meios de uma quotidianidade que não parava de escorrer nos preparativas de uma cerimónia estereotipada, droga, prostituição, travestismo. As atitudes e as posturas passam nesta lenta teatralização quotidiana do corpo (…)” Posto isto, consideramos com justeza a personagem da Tónia (e, por que não, do seu namorado toxicodependente) como elementos fundamentais “de um cinema dos corpos”, como precisamente o de Warhol, visto que, em parte (importante reforçar isto), “a personagem é reduzida às suas próprias atitudes corporais”, saindo “o gestus, isto é, um «espectáculo», uma teatralização ou uma dramatização que vale para qualquer intriga”. 

Contudo, não é de esquecer que o filme português é, em primeira instância e quanto ao seu género, um melodrama cuja teatralização do corpo protagonista (e suas atitudes e posturas) encontra correspondência directa com a mise-en-scène

E porquê? Em primeiro lugar porque, atendendo à art direction (assinada por João Rui Guerra da Mata), reparamos que “os décors são muitas vezes feitos em função das atitudes do corpo que eles comandam e graus de liberdade que lhes deixam” (por exemplo: o camarim colorido de Tónia com o guarda-roupa e distintivas da sua profissão bem como outras fotografias caracterizadores do seu carácter; o seu quarto, com um “altar” com um motivo religioso que assinala a sua devoção; a casa da Maria Bakker escondida na floresta, cuja decoração posicionada com uma rigorosa harmonia a afirma como uma personagem também ela severa e precisa nos movimentos). 

Em segundo lugar porque Morrer como um Homem, tal como Deleuze fala sobre o cinema de Jean-Luc Godard, “vai das atitudes do corpo, visuais e sonoras” (ligadas, neste filme, desde o espectáculo profissional ao da própria vida de Tónia) “até ao gestus pluridimensional, pictórico, musical, que constitui a cerimónia, a liturgia, o ordenamento estético”. Para exemplificar esta transfiguração podemos pensar no extraordinário plano-sequência da silenciosa Tónia e do namorado que canta no cemitério. Fazendo citação a Jacques Demy (em Os Chapéus de Chuva de Cherburgo há um plano que, em termos puramente formais, é muito semelhante), João Pedro Rodrigues “petrifica” as duas personagens e fá-las desfilar por cima de uma passerelle, filmando-as num travelling recto (fotograma em baixo). 


Entre os múltiplos significantes desta sequência podemos retirar a sua artificialidade e musicalidade [1] inerentes (ligada a toda a restante estética do filme e que tem, em grande parte, que ver com o próprio mundo em que vive a protagonista) e, provavelmente como consequência do irrealismo, a noção de espiritualidade: já o cemitério se apresenta como local que, ao fazer transparecer (de novo a ideia de espaço exterior como ponte de acesso à interioridade e a de que “as paisagens são estados mentais”), nos relembra o conflito essencial de Tónia – querer viver como mulher mas não poder morrer como tal aos olhos de Deus. Porque, e tal como Deleuze escreveu, “mesmo se decidir por ela, não muda nada. O seu corpo conserva sempre a impressão de uma indecidibilidade que não era senão a passagem da vida”. 

Todo o comportamento, as posturas e decisões de Tónia revelam, em si mesmos, a ambiguidade, característica do cinema moderno, que serve de motor de progressão deste filme. O método de João Pedro Rodrigues parece ser, como o autor de A Imagem-Tempo descreveu o de Antonioni, observar “o interior pelo comportamento, já não a experiência, mas «o que resta das experiências passadas», «o que vem depois, quando tudo foi dito»”. 

Morrer como um Homem é, por isso, um objecto singular no sentido em que, ao mesmo tempo, o corpo e o pensamento (neste caso do / da herói / heroína – e só esta ambivalência é suficientemente demonstrativa) coexistem e se anulam através de um modo de viver (como homem ou como mulher, é indiferente) à frente da câmara e de um modo de filmar essa vida trágica e indecisa. 

[1] A Cinemateca Portuguesa programou, em Novembro, um ciclo de filmes ligados à noção de musicalidade no cinema, tendo incluindo Morrer como um Homem na selecção. Na sessão de apresentação, João Pedro Rodrigues referiu a cena “tingida” de vermelho em que ouvimos, com as personagens paralisadas do filme, a canção Calvary, de Baby Dee.


Trabalho realizado no âmbito da cadeira de Estética no Cinema 1, da Escola Superior de Teatro e Cinema.

terça-feira, dezembro 06, 2011

Para os Cahiers temos Moretti

Já se tornou num hábito. Desde 1951 (com alguns anos em branco), no final do ano, a revista de cinema francesa Cahiers du Cinéma lista e divulga aqueles que considera serem os dez melhores filmes do ano. Os de 2011 já estão escolhidos e elegem “Habemos Papam – Temos Papa”, a mais recente longa-metragem de Nanni Moretti que está, actualmente, nas nossas salas de cinema, como o melhor dos melhores. A surpresa (que, em boa verdade, o deixou de ser com a passagem dos anos) é que, em segundo posição e em ex-aequo com a Palma de Ouro A Árvore da Vida, de Terrence Malick, encontramos O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira.

As curiosidades? Primeiro: nos três anos passados os Cahiers fizeram menção a filmes portugueses (em 2010, a Morrer como um Homem, de João Pedro Rodrigues, em 2009, a Singularidades de uma Rapariga Loira, de Manoel de Oliveira e, em 2008, a Juventude em Marcha, de Pedro Costa). Segundo: o cineasta português veterano já foi mencionado nas listas da mítica publicação francesa 10 vezes (em 1981, com Francisca, que esteve na primeira posição; em 1989, com Os Canibais; em 1990, com Non ou a Vã Glória de Mandar; em 1993, com Vale Abraão; em 1998, com Inquietude; em 1999, com A Carta; em 2001, com Vou Para Casa; em 2002, com O Princípio da Incerteza; em 2009 e em 2011).

A lista deste ano faz menção ainda a filmes como Hors Satan, de Bruno Dumont, Melancolia, de Lars Von Trier, e a Super 8, de J. J. Abrams:


1. Habemus Papam - Temos Papa, de Nanni Moretti
2. O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira 
em ex-aequo com A Árvore da Vida, de Terrence Malick 
4. Hors Satan, de Bruno Dumont 
em ex-aequo com Essential Killing - Matar para Viver, de Jerzy Skolimowski 
6. Melancolia, de Lars Von Trier 
em ex-aequo com Un été brûlant, de Philippe Garrel 
8. Super 8, de J.J. Abrams 
em ex-aequo com L'Apollonide, de Bertrand Bonello 
e com O Atalho, de Kelly Reichardt

quinta-feira, dezembro 01, 2011

O que é o cinema (versão 3D)?

[ver também Que futuro para o 3D?]

No passado dia 27 de Novembro, o portal Deadline publicou uma entrevista com Martin Scorsese centrada na sua mais recente longa-metragem, A Invenção de Hugo (que tem estreia nacional no dia 16 de Fevereiro do próximo ano). Nela, o autor de filmes como Touro Enraivecido ou Shutter Island confessa ter desejado trabalhar com as três dimensões no cinema desde 1953 (ano em que viu o primeiro filme a três dimensões) e ter sido sempre fascinado pelas possibilidades do 3D (que “deve ser encarado como um elemento e uma ferramenta narrativos sérios, sobretudo contando uma história com profundidade como narrativa”). Agora que concluiu Hugo (título original; trailer aqui), Scorsese admitiu preferir filmar, no futuro, apenas com esta tecnologia pensando que, caso tivessem sido produzidos dessa forma, as narrativas de Taxi Driver e O Aviador teriam sido beneficiadas. 

Comecemos por ignorar as possíveis reacções de tom provinciano que ou 1) justificassem as declarações do cineasta com o facto de poder estar, única e exclusivamente, a promover o seu filme, ou 2) rejeitassem a validade das respostas por desagrado pessoal ao 3D. E pensemos: quando Martin Scorsese compara as três dimensões com o Technicolor (que durante mais de uma década “foi relegado para musicais, comédias e westerns. Não era destinado aos géneros sérios, mas agora tudo é a cores”), quando comparamos (nós) o advento do som com o 3D, que quer tudo isto significar? Scorsese só tem uma resposta: que os filmes estereoscópicos são uma evolução da própria imagem cinematográfica. "A tecnologia avançando e podendo eliminar os óculos, que são um empecilho para alguns espectadores, então por que não? É apenas uma progressão natural". 

Posto isto, e tendo presente que a noção de imagem cinematográfica se transformou ao longo do seu tempo de existência, questionamos: para onde caminha o cinema? Ou, mais uma vez, uma questão-limite: o que é o cinema? 

As ideias de tridimensionalidade e de profundidade estiveram, desde a sua origem, sempre assentes naquilo que entendemos que é o cinema. E o 3D parece apenas revelar uma espécie de desejo de imersão, que atenue o distanciamento entre o espectador e as imagem e/ou narrativa apreendidas e que auxilie aquilo que conhecemos como suspensão voluntária da descrença

Assim sendo, importa que estejamos permanentemente atentos à evolução da tecnologia relativa à realidade virtual, cujos testes e resultados têm sido mais notórios na área ligada ao videojogo. E porquê? Porque é a sua evolução determinante que poderá responder aos limites que poderão existir, ou não, na imagem cinematográfica. No futuro, poderemos considerar cinema um espaço virtual conceptualizado por um individuo, no qual decorra algum tipo de narrativa e que possamos assistir “estando” lá? As possibilidades são infinitas. 

Para já, temos as notícias que envolvem a progressão da realidade virtual e seus derivados e obras invulgares, que nos fazem repensar tudo aquilo que é audiovisual, como a do francês Maurice Benayoun. Não querendo, contudo, ir mais além daquilo que temos (o 3D), ficamos com a ideia de que o 3D é, tão-somente, um indício de que o cinema ainda não parou na busca de uma definição e das suas fronteiras.