quinta-feira, novembro 17, 2011

Isto não é um filme

Depois de confrontados com as características e as qualidades de uma série de livros e de filmes (hoje estreia o penúltimo) cuja receita se tornou no factor de peso quando falamos de Twilight, será que podemos descrever este fenómeno pela literatura e / ou pelo cinema? Evidentemente que não. Quando falamos hoje disso falamos não só de uma união de expectativa entre o seu público e comunicação social como também – e talvez sobretudo – do poder desequilibrado da imagem mediática.

domingo, novembro 13, 2011

A verdade e o falso contados pela ficção em Atonement

Em 2001, o escritor inglês Ian McEwan publicou “Atonement” (tradução portuguesa: “Expiação”), livro que viria a dar origem à homónima segunda longa-metragem do também britânico Joe Wright, seis anos depois. A história é simples: no dia mais quente do ano 1935, Briony Tallis, uma rapariga com pouco mais de 10 anos que aspira ser romancista, que, após ter assistido à tensão sexual vivida entre a irmã Cecilia e Robbie, filho da criada de quem a jovem tem uma paixoneta, assiste nessa noite à violação de uma prima e acusa falsamente Robbie de ter sido o responsável. A mentira de Briony separa a irmã de Robbie, visto que o conduz à prisão e, mais tarde, à França em tempos de Segunda Guerra Mundial, onde vem a falecer. Sentindo-se responsável pelo destino das duas personagens, Briony procura, ao longo da história, uma espécie de auto-penitência (ou, exactamente como indica o título, de expiação), algo que ocorre quando publica, aos 77 anos de idade, o seu último romance, Expiação, no qual descreve toda a história (com tudo aquilo que é “facto” e “ficção”) que precedentemente assistimos.


Se nos debruçarmos na adaptação do romance para cinema verificamos que o filme vive e sofre da dualidade verdade / mentira através de elementos que não são apenas dramatúrgicos. De facto, o Atonement de Joe Wright parece comprovar como a imagem cinematográfica (qualquer que ela seja) anula, de imediato, qualquer efeito de verdade. No primeiro plano do filme (em cima), aproximamo-nos, no seguimento de várias figuras em miniatura de animais, da personagem da criança Briony que, de costas para a câmara, acaba de escrever a sua primeira peça de teatro. 

O travelling impossibilita-nos de não deixarmos de recordar Gilles Deleuze que, em A Imagem-Tempo, declarou que “o artista é criador de verdade, porque a verdade não tem de ser atingida, encontrada nem reproduzida, tem de ser criada”. Porquê? Primeiro: porque a primeira imagem (a casa), reproduz, quase exactamente, o espaço em que o filme está a situado e filmado (imagem ao lado, que pertence à segunda cena), relembrando que a imagem tornada cinematográfica é, necessariamente, uma representação (ou melhor: uma transformação) do real e, por conseguinte, da verdade. Segundo: porque a imagem das miniaturas dos animais é simbólica, parecendo uma representação da própria criação do artista e que nos posiciona no filme não como criações, mas como espectadores, como quem assiste à criação. E por último: porque, ao observarmos a personagem do criador (Briony), pensamos, em segundo nível, no criador da personagem do criador (Joe Wright / Ian McEwan), que tornam possível, pela ficção, a existência de (uma) verdade. 

O primeiro plano (tal como todo o restante filme) virá a transformar-se, com maior evidência após tomarmos conhecimento de que todo o filme é uma construção da personagem protagonista (que a escreveu), num ponto de vista que, mais que subjectivo, apetece chamar de intra-narrativo. De modo a revelar esse lado, o filme de Joe Wright é conduzido por uma banda musical (da responsabilidade do italiano Dario Marianelli) com a presença constante do som da máquina de escrever e de uma cena final que, não obstante o seu lado comovente, é preenchida com uma carga de amarga ironia (de modo a que qualquer tipo de espectador pense: estou a ver algo que não é verdadeiro). E, por isso, questionamos: se toda e qualquer ficção é uma falsa construção, o que faz com que Atonement nos provoque este tipo de reflexão? Será legítimo que nos frustremos, no final, por nos termos apercebido de que caímos nas teias da mentira (ou da construção da verdade) do artista? O efeito perverso de quebra da transparência narrativa no final deste filme reposiciona e relembra a nossa condição de espectador que quer assistir a uma mentira – não podemos, por isso, reclamar a falsidade se nós a pedirmos. Nesse aspecto o cinema como o dito clássico foi sempre muito cuidadoso – havia que construir a mentira do início ao fim de modo a que se transfigurasse numa realidade e numa verdade fechadas. Contudo, o cinema moderno e contemporâneo têm dado exemplos de como a ficção pode repensar o duelo entre a verdade e a mentira (como o cinema de Michael Haneke) e de como podemos tomar a consciência de que adoptámos um ponto de vista [1], e que este “pertence tanto à coisa que a coisa não pára de se transformar num devir idêntico ao ponto de vista” (Deleuze).

É, porventura, por essa demonstração da perspectiva que Atonement nos desafia com três imagens de Briony em confronto com a verdade (ao lado). Nos três planos acompanhamos as diferentes fases do filme e do conflito da protagonista: no primeiro, Briony conta a sua mentira, no segundo, lida com as suas consequências, no terceiro, chega por fim ao acto de expiação, que foi transformar os resultados da sua mentira na ficção, já que, como escreveu Deleuze, “a ficção não se refere a um ideal do verdadeiro que lhe constitui a veracidade, mas torna-se (…) uma ficção simuladora ou antes uma simulação de ficção”. Será curioso notar que todos eles, centrados na personagem, reflectem a imposição de um olhar sobre o do de Briony, dando importância ao acto de ver (que está, afinal, na origem do cinema). No terceiro momento, a imagem de cinema torna-se na de televisão (porque vemos a Briony com 77 anos a demonstrar a resolução do seu conflito numa entrevista para um programa de TV: continuar a mentir). Mas quererá isto significar que a imagem televisiva é portadora de verdade? Evidentemente que não e muito pelo contrário: apenas nos traz a grave evidência de que ela sofre de uma falsidade maior do que a do próprio cinema. 

[1] Sobre isso, Atonement filma repetições (com raccords perfeitos) de alguns momentos sobre vários pontos de vista, montando-os entre intervalos de acção (são caso disso, na primeira parte do filme, as cenas na fonte, na biblioteca ou quando Robbie é preso).

Trabalho realizado no âmbito da cadeira de Estética no Cinema 1, da Escola Superior de Teatro e Cinema.

terça-feira, novembro 08, 2011

Ver Tarkosky / ver Tarkovsky / ver Tarkovsky


Quando ontem, no Centro Cultural de Belém, na conferência (melhor será dizer: sessão de perguntas e respostas) de Andrei Tarkovsky (filho), acompanhado pelos comissários da exposição “Luz Instantânea – Fotografias, itinerários e saudades de Andrei TarkovskyAlberto Ruiz de Samaniego e José Manuel Mouriño, alguém denunciou a dificuldade de encontrar uma cópia de DVD com imagem fidedigna dos filmes do realizador soviético, falou-se sobretudo de respeito para com o realizador. 

Isto porquê? Primeiro: porque, aparentemente, existem inúmeras diferenças, de cópia para cópia, de um mesmo filme de Tarkovsky – sobretudo a nível da imagem (vide exemplo em cima: um fotograma de O Espelho, longa-metragem de 1975, decomposto em três versões distintas). Segundo: porque, de acordo com o que foi dito na sessão, só podemos respeitar o autor se virmos a obra de acordo com a versão (e visão) que foi originalmente idealizada. 

Neste caso e seguindo o raciocínio questionamo-nos: por que razão o CCB faz um ciclo de Andrei Tarkovsky exibindo DVDs comerciais e não as cópias de 35 mm (recuperadas e restauradas pela Fundação Andrei Tarkovsky, de Florença)? E, tomando como princípio de que o equipamento de projecção é inexistente, outra pergunta: por que é que a Cinemateca Portuguesa, cujo objectivo passa também pela “divulgação do património cinematográfico”, salvaguarda nos seus arquivos filmes que, muito raramente, vêem actualmente luz do dia e outros que, quase sempre todos os meses, são projectados? 

Este problema atira-nos para um debate ainda mais profundo (os critérios de programação e a missão da Cinemateca e a pertinência de um ciclo cinematográfico no CCB) e dispara, contra o espectador, uma certa frustração: se eu não consigo aceder às cópias de 35 mm dos filmes de Andrei Tarkovsky, como hei-de ficar próximo da sua concepção inicial e, por conseguinte, como posso não desrespeitá-lo? 

A conclusão a que nos obrigamos a chegar é simples mas infeliz: não existindo a sua divulgação o desrespeito é, em instância final, para com o espectador.

domingo, novembro 06, 2011

LEFFEST 2011 (2): A nossa necessidade de sermos amados

O que é um drama social? A questão não é propriamente ingénua – partindo de moldes muito definidos como podemos caracterizar a vaga do neo-realismo em Itália e suas diversificações, mais ou menos interessantes, por muitos outros territórios e que se mantêm contemporâneas, como podemos definir as personagens, a estética e a linguagem no cinema fora do seu contexto cultural (e social, político, económico…)? De qualquer das formas, fiquemos com a evidência de que qualquer rótulo e género se revelam, em instância final, inconsequentes. 

Tudo isto para falar dos irmãos Dardenne e do seu Miúdo da Bicicleta (título português de Le Gamin au Vélo, ontem exibido no segundo dia do Lisbon & Estoril Film Festival, no Cinema Monumental, em antestreia e sessão dupla às 21:30 e que foi acompanhada por uma masterclass com Luc Dardenne). Se ambos foram continuadamente associados ao conceito de drama social, apresentando as suas personagens afectadas pelos conflitos atómicos provocados pela profissão (ou a sua ausência) ou pela família (novamente: ou a sua ausência), então a longa-metragem mais recente dupla comprova o carácter redutor dessa mesma noção. Porquê? Porque o filme é “uma espécie de conto de fadas”, de acordo com as palavras de Luc e Jean-Pierre: há o herói, os “malfeitores que fazem o rapaz perder as ilusões” e “Samantha, que aparece como uma fada”. Não será, por isso, imponderado falarmos do magnífico filme de Vittorio De Sica, Ladrões de Bicicletas (1948), onde se retrata um certo tipo de infância, de relação familiar e a bicicleta como gancho dramatúrgico. 

Assim, e ao contrário da desilusão que Oslo, 31 de Agosto (segunda longa-metragem de Joachim Trier que, enquadrando-se na competição oficial do festival, foi ontem exibido no Espaço Nimas às 22:00) demonstrou ser (já que, salvo pelo menos duas cenas de excepcional beleza – como o plano-sequência final –, se perde num ritmo excessivamente palavroso e pouco convincente), os irmãos Dardenne comprovaram que é possível, na moral e nos tempos que correm, pensar uma dura realidade a partir de uma ficção que demonstre que as pessoas se podem preocupar umas com as outras. Ou em poucas palavras: que a nossa necessidade de sermos amados pode ser consumada. 

E, para o reforçar, há a introdução insólita da música não diegética no cinema dardenniano. “Pareceu-nos que a música, em certos momentos, poderia agir como uma carícia tranquilizadora para Cyril” (o protagonista), declararam num comunicado de imprensa. Tendo escolhido um excerto do adágio do Concerto Nº 5 para Piano e Orquestra – Imperador de Beethoven (que disponibilizo em baixo), os irmãos parecem transfigurar o impossível – o real, a ficção e aquilo que há pelo meio.


sábado, novembro 05, 2011

LEFFEST 2011 (1): Gus Van Sant contra o mundo

Se o cinema pode ser um mecanismo que permita que observemos e exploremos a vida, Gus Van Sant parece então ter descoberto a forma de fazer o mesmo com a coisa misteriosa que é, para si, a morte. Restless (título original; que estreia no próximo dia 10 de Novembro e foi exibido ontem em antestreia no Cinema Monumental no âmbito do primeiro dia do Lisbon & Estoril Film Festival – sessão dupla às dez e à meia-noite) começa por nos expor, então, um dilema que é, sobretudo, eminentemente cinematográfico: como representar aquilo que é invisível ou, por outro lado, aquilo que não existe? Continuando a filmar os vivos, evidentemente. 

Para o realizador norte-americano a morte não é um tabu. Demonstrara-o já na sua “trilogia da morte” (Gerry, em 2002, Elephant, Palma de Ouro de 2003, e Last Days – Últimos Dias, em 2005) e em Paranoid Park, apresentado em 2007, ponto de equilíbrio (ou assim quisemos acreditar) entre o cinema independente e mainstream. Mas Gus Van Sant parece não estar interessado em participar nesse duelo, tanto que Inquietos (título da versão portuguesa) se afirma claramente (pela transparência e um certo convencionalismo dramatúrgicos, muito embora o argumento não siga o arco arquetípico dos filmes clássicos, dado que não há qualquer ponta de objectivos per se) como um filme para o público (e não para um público), sem que isso equivalha ao abandono das suas ideias e da sua omnipresença enquanto autor. 

Na sua mais recente longa-metragem, a morte volta a estar no núcleo temático, a par do protagonismo nostálgico dos adolescentes. Partindo de uma amizade que, tão rápida como lentamente, se transfigura no princípio de uma relação amorosa, Inquietos segue Mia Wasikowska como Annabel, doente de um cancro terminal, e o filho de Dennis Hopper (mítico realizador e actor a quem o filme é no fim dedicado), Henry Hopper, como Enoch, assombrado, literalmente, pelos fantasmas do passado. Aqui, a proximidade do fim sofre da dicotomia entre a angústia e a indiferença. E isso é, porventura, a característica que transforma o filme distinto – quer de qualquer um que Gus Van Sant tenha realizado, como também de qualquer outro que tenhamos visto enquadrado num certo tipo de estética que um filme como Inquietos pode ser rotulado (mal, naturalmente). Angústia pelos vivos que partem (Annabel) e pelos vivos que ficam (Enoch); indiferença pela evidência da inexistência de algo pós-vida e, como consequência, pelo absurdo da vida. Há duas cenas particularmente chocantes em Inquietos: numa delas, Enoch confronta a namorada com o facto de não existir nada quando morremos; noutra, Gus Van Sant ousa em nos apresentar a sua visão da morte (um plano completamente negro). Importa, de igual modo, descrever como esse choque com o espectador se distingue do horror mediático que é nosso familiar contemporâneo. Ao vermos cenas do ataque nuclear em Nagazaki, ocorrido em Agosto de 1945, somos confrontados com a nossa indiferença face ao massacre que assistimos diariamente nos meios de comunicação social – perante esse estado de espírito, Gus Van Sant prefere não nos dar a morte, mas aquilo que temos por viver (e é isso que nos deixa em desassossego, em restless, precisamente). 

É por isso que a convivência com a morte não deixa de requerer, necessariamente, um lado ao mesmo tempo espiritual e, à falta de melhor palavra, realista. Primeiro: porque o sagrado, materializado na figura do fantasma Hiroshi, serve de ponte para nos relacionarmos com aqueles que não já são e, por conseguinte, atenuarmos um certo sentimento de solidão; segundo: porque a natureza no seu estado bruto, observada por Annabel, proporciona que entendamos a vida num constante estado de espanto e deslumbramento. Ou, melhor dizendo, de felicidade. Porque, como recorda a personagem encarnada por Mia Wasikowska, o pássaro canta de manhã porque se apercebe que ainda está vivo (reparemos, já agora, na frequente presença dos sons dos pássaros nos últimos filmes de Gus Van Sant – em Elephant, Last Days, Paranoid Park e, agora, em Restless –, associados sempre à morte). E, se por si só a utilização invulgar do som nos bastava para descrever o cinema simbólico de Gus Van Sant, associemos toda aquela atmosfera plácida e tranquila (fruto da colaboração com o director de fotografia Harris Savides e o compositor Danny Elfman, responsáveis pela imagem e pela banda musical de Milk, respectivamente) ao contexto do Outono (já visto em Elephant), estação agora associada ao realizador. 

Muito embora possamos pensá-lo um filme sobre a morte será melhor desenganarmo-nos. Parece ser sobre uma questão ainda mais fundamental: como viver a vida ou, sem redundâncias, como viver? Porque, como aqui ouvimos, a morte é fácil, o amor (ou toda a vida, não nos importemos de acrescentar) é que é difícil. Em Inquietos chora-se – mas pelos vivos. No plano final do filme percebemos que a memória é o recurso que nos é mais caro para lidarmos com tudo aquilo que é efémero, tudo aquilo que já não é.

sexta-feira, novembro 04, 2011

25 anos depois, o regresso do escultor do tempo



Justapor uma pessoa com uma envolvente que seja ilimitada, reuni-la com um número incontável de pessoas a passar ao pé dela e ao longe, relacionar uma pessoa com o mundo todo, esse é o significado do cinema. 
 Andrei Tarkovsky
Em vésperas daquele que podemos seguramente reconhecer como o maior evento cinematográfico do ano em Portugal, tomei a liberdade de reunir uma série de artigos sobre o maior dos cineastas soviéticos: Andrei Tarkovsky. O realizador merecerá um ciclo em Belém (Lisboa) com a exibição da sua obra integral (os sete filmes apresentados por ordem cronológica: "A Infância de Ivan" (1962), "Andrei Rubliov" (1969), "Solaris" (1972), "O Espelho" (1975), "Stalker" (1979), "Nostalgia" (1983) e "O Sacrifício" (1986)) e de um documentário de Chris Marker (“Une journée d’Andrei Arsenevich” (1999)); um concerto pelo pianista François Couturier e pelo Tarkovsky Quartet; a exposição de fotografia com mais de 300 polaroides “Luz Instantânea - Fotografias, Itinerários e Saudades de Andrei Tarkovsky", comissariada por Manuel Mouriño e Alberto Ruiz de Samaniego, e, por fim, uma série de conferências, uma delas por Andrei Tarkovsky-filho. O Centro Cultural de Belém (CCB), que se encontra a organizar “Andrei Tarkovsky – Esculpir o Tempo” de 7 de Novembro a 7 de Dezembro, criou um jornal que acompanha o ciclo e que inclui textos como o de Augusto M. Seabra, e que disponibilizo, na íntegra, a seguir a este parágrafo. Aproveito para relembrar alguns artigos já publicados n’O Sétimo Continente, como “As raízes do colectivo social no indivíduo, segundo Dovzhenko e Tarkovsky”, “Tarkovsky ou o ícone do cinematógrafo” e a biografia “Um passeio tarkovskyano”.

Tarkovsky no seu próprio mundo
Centro Cultural de Belém

Numa entrevista concedida a Ian Christie, durante uma visita a Inglaterra, em 1981, Andrei Tarkovsky disse: “O meu objetivo é criar o meu próprio mundo e estas imagens que criamos não significam nada, para lá das imagens que são.” Desde a sua morte, em 1986, aos cinquenta e quatro anos de idade, que a obra cinematográfica de Tarkovsky tem vindo a ser reapreciada nesta perspetiva: o seu mundo, o que ele criou em sete filmes incomparáveis, é inconfundível e a sua linguagem (as suas imagens) constituem um constante desafio não tanto à imaginação dos espectadores mas à sua capacidade de verem o que lá está – e o que está para lá do espelho. O cinema de Tarkovsky seria apenas perturbante, se não se desse o caso de o seu mundo, aquele que ele quis construir, tocar cordas profundas da sensibilidade humana. A relação do espectador com o filme não é, assim, uma interrogação dirigida à superfície do que é mostrado, às puras formas, mas a um sentido mais íntimo que nos situa fora do nosso universo de referências habituais. Está lá tudo o que nos permitiria, teoricamente, ler uma teia de imagens, sentimentos e ideias que nos é conhecida; mas tudo o que lá está é (e não é) parte de um processo de aprendizagem que nos coloca um desafio maior: o que nos falta para sermos figuras deste universo de sombras e espetros? A sua obra fotográfica, mais de 300 polaroides tiradas a partir do final dos anos setenta, faz parte dessa construção de um mundo pessoal e intransmissível. A escolha de umas largas dezenas de provas desse espólio fotográfico permite-nos, pela primeira vez em Portugal, abordar uma outra dimensão do seu trabalho de reelaboração do real, que acabará por se reconhecer como instrumento útil de alargamento da nossa visão do que foi o mundo que ele criou. Ao propor um ciclo sobre o cinema e a obra fotográfica de Andrei Tarkovsky, o CCB pretende evocar, vinte e cinco anos depois da sua morte, um dos mais perturbantes criadores do século XX. À medida que o tempo passa, a obra de Tarkovsky ganha cada vez maior densidade e espessura: é como se as suas imagens se fossem transformando lentamente, quase ser darmos por isso, em esculturas arrancadas a uma matéria sem corpo nem idade – o tempo, precisamente. É do escultor do tempo que foi Tarkovsky que falamos neste ciclo.

Andrei Tarkovsky, a busca da transcendência
Augusto M. Seabra

Quando descobri os primeiros filmes de Andrei Tarkovsky foi para mim um milagre. Encontrei-me, de súbito, perante a porta de um quarto de que a chave me faltara até então. Um quarto onde eu sempre tinha querido penetrar e onde ele se sentia completamente à vontade. Senti-me encorajado e estimulado: alguém tinha expresso o que eu sempre tinha querido dizer sem saber como. Se Tarkovsky é para mim o maior, é porque ele traz ao cinematógrafo – na sua especificidade – uma nova linguagem que lhe permite de agarrar a vida como aparência, a vida como sonho.
Ingmar Bergman

Filho do poeta Arseny Tarkovsky, influência marcante na sua obra, Andrei Tarkovsky (04-04-1932/29-12-1986) realizou sete longas-metragens em 25 anos: A Infância de Ivan, Andrei Rubliov, Solaris, O Espelho, Stalker, Nosthalgia e O Sacrifício. Na união soviética viu-se a braços com dificuldades várias, tendo a divulgação dos seus filmes sido feita após anos de retenção – caso de Andrei Roubliov – ou num circuito muito restrito, e sujeito a “críticas oficiais” – caso de O Espelho. Quando optou por se radicar no Ocidente, em 1984, Tarkovsky sempre afirmou que as razões do seu afastamento não eram políticas (recusando o epíteto de “dissidente”) mas sim artísticas. 

Poucos terão sido ou são os cineastas contemporâneos a terem assim reivindicado uma condição de “artista” que se diria, senão desacreditada, pelo menos desvalorizada. Nesta perspetiva, o seu confronto com o sistema soviético era inevitável. Tarkovsky não podia ser nunca um “transmissor de mensagens” politicamente determinadas – o seu cinema era espaço de uma profunda interrogação sobre o ser e o tempo: “O cinema deve ser um meio de explorar os mais complexos problemas do nosso tempo, tão vital como aqueles que durante séculos foram os temas da literatura, da música e da pintura. É apenas uma questão de procurar, buscando de cada vez o trilho, o canal, para ser seguido pelo cinema.” 

Para além das fronteiras políticas dos sistemas, há que reconhecer que também a receção no Ocidente do cinema de Tarkovsky não foi uma “questão fácil”. O seu sistema de valores – sempre afirmado e reafirmado –, os longos discursos em que o explicitava, a invocação latente ou explícita de uma ordem ou de entidade transcendental, tudo isso eram características herdadas da cultura russa (e quantas vezes não se invocou – e ele invocou – o nome de Dostoievski) que não poderiam deixar de ser profundamente estranhas às nossas sensibilidades ocidentais. 

Mas o “milagre” do seu cinema foi o de a cada momento se transfigurar. Tarkovsky foi um cineasta que aliou a maior das abstrações a uma prodigiosa reinvenção da matéria. A este respeito é particularmente significativa e axial à sua arte cinematográfica a conceção de “escultura no tempo”. 

“Quais são as forças determinantes do cinema, e o que delas emerge? Qual o potencial, os meios, as imagens não apenas formalmente, mas também espiritualmente? E com que material trabalha o diretor? […] Pela primeira vez na história das artes, na história da cultura, o homem encontrou os meios de dar uma impressão de tempo. E simultaneamente a possibilidade de reproduzir esse tempo no ecrã quantas vezes quiser, repetindo-o e a ele voltando. Assim o homem adquiriu uma matriz para o tempo real. […] O tempo, impresso em formas factuais e manifestações, é essa a suprema ideia do cinema como arte, levando-nos a pensar sobre a riqueza das múltiplas possibilidades do filme, sobre o seu futuro colossal. Foi sobre esta ideia que construí as minhas hipóteses de trabalho, tanto teóricas como práticas. Qual é a essência do trabalho do realizador? Podemos defini-lo como esculpindo no tempo. Tal como o escultor toma um amontoado de mármore e modela-lhe conscientemente as formas da peça acabada e remove tudo o que não faz parte disso, também o cineasta, de um ‘amontoado de tempo’ feito de um enorme e sólido complexo de factos vivos, corta e retira tudo de que não necessita, deixando apenas o que é um elemento do filme acabado, que se tornará em parte integral da imagem cinemática.” 

Recusando os métodos dominantes de montagem, Tarkovsky privilegiou as transformações internas ao plano, nos seus extraordinários planos-sequências (desenrolando-se longamente no tempo, pois), como se num tempo concordante com o tempo real da perceção do espectador se operasse nos seres, nos objetos e na matéria em geral, as metamorfoses que indiciavam um “outro sentido”. 

Para além de todas as referências específicas da cultura russa, no seu cinema conjugaram-se duas fortes referências – a transparência idealizada da pintura renascentista italiana (Leonardo Da Vinci, sobretudo) e a condensação temporal e a subtileza de sentido de um haiku japonês. 

Mas para além dessas referências, importa salientar outro aspeto, crucial: visando ainda valores transcendentais, o cinema de Tarkovsky é espantosamente sensorial (sensível e para ser sentido) com as suas matérias elementares e atmosferas: a terra, a água, a lama, o nevoeiro. O Espelho, o mais “pessoal” dos seus filmes, num sentido autobiográfico, e Stalker, são a este respeito exponenciais. 

Mas foi provavelmente no derradeiro O Sacrifício, feito na Suécia, que o cinema de Tarkovsky teve o seu momento mais paradigmático. Aí está presente, sem dúvida, a interrogação mais radical da sua obra: no final, quando o pai emudece, em cumprimento de uma promessa por o dia ter amanhecido sem que se tivesse declarado a guerra mundial durante a noite anunciada, a criança, até então muda, pergunta: “Ao princípio era o verbo… porquê, pai?” Nunca antes o cinema de Tarkovsky havia sido tão liminarmente espaço de um humano ato, que solicita a demanda de um outro espaço, o da transcendência. 

Para um artista do tempo, e tão radicalmente explorador do tempo, esculpindo-o, um outro tipo de imagem, fotográfico, pode afigurar-se contraditório, justamente na medida em que enclausura o tempo, fixa-o. Elas são-nos também ora presentes. Algumas são fotos de família, com a sua mulher, Larissa Kizilova, e o seu filho, Andrei, às vezes com ele próprio, Tarkovsky, incluindo um autorretrato fotografando-se. mas a luz, as névoas, as ruínas, a “datcha”, remetem-nos inevitavelmente para O Espelho e Stalker – e o cão, o cão de Stalker! – nalguns aspetos prefigurando ainda O sacrifício. 

Se falta o tempo, dimensão fulcral do cinema de Andrei Tarkovsky, ainda assim em muitas destas fotografias, quais complementos aos fotogramas cinematográficos, reencontramos a matéria sensível que é outra das dimensões distintivas da sua arte – e na matéria, a busca da transcendência.



Alberto Ruiz de Samaniego e José Manuel Mouriño | Tradução de Ana Sampaio


No dia 14 de agosto de 1979, quando se encontrava em Itália a rodar o documentário para a RAI intitulado Tempo di Viaggio, Tarkovsky escreveu no seu diário: “Telefonámos a Tovoli para lhe pedir que me compre uma Polaroid. Quero fazer uns instantâneos. [...] gostava de tirar umas fotografias da minha janela em diferentes momentos do dia. A paisagem matutina, logo ao amanhecer...” [1] Esta sugestão poderia perfeitamente ser confundida com o conhecido exercício de recolha de impressões monetiano, mas, na prática, aquilo que Tarkovsky realmente fez com a câmara que pediu a Luciano Tovoli [2] foi perseguir a luz de outra forma. A série de fotografias que começa com enquadramentos feitos a partir da janela transforma-se num percurso em que, numa espécie de travelling, se regista a chegada da luz vinda da paisagem ao interior do quarto. Acompanha-se a luz, no seu lento movimento, ao longo dos caixilhos e do peitoril da janela [3], depois pelos ladrilhos do quarto e pelas folhas e objectos abandonados ao acaso; pelo mobiliário, subindo por uma imagem da Madonna de Vladimir antes de pousar sobre a mesa ou no sítio onde Tarkovsky abandonou por um momento o pequeno-almoço para obter mais um instantâneo: a luz percorrendo a jarra de flores, o pão, a água turva, a fruta no prato. É um travelling mitigado, como aqueles que encontramos nos seus filmes, que depois continua pelas garrafas e as ténues cortinas da casa abandonada, pelo gato que dorme enroscado numa almofada, por Tonino Guerra, que escreve ou medita na igreja de Bagno Vignoni... 

O travelling leva-nos, por fim, a um autorretrato do próprio Tarkovsky banhado por essa mesma luz, perseguida, sentado junto à cama. Está de pijama e quase parece um menino (à espera). Está ao fundo, frente ao espelho. recuperado de entre as sombras que o rodeiam, segura a câmara enquanto (nos) olha a partir desse mesmo fundo, tirando a última fotografia deste lento movimento de câmara. um menino que (se) descobre, então, concebendo um lugar para a ausência, pondo em jogo, através da insistência nos vazios e nas penumbras, a experiência privada de uma dialética fundamental, a da elaboração e reflexão constantemente contornada e modulada da conivência entre o ver e o perder – jogo que remete, seguramente, para o espaço natal da mãe e da casa ausentes. Nessa margem, permanecem também os dois principais blocos que constituem a exposição: os instantâneos italianos que documentam um exercício cinematográfico (exercício que, na realidade, é algo mais, um sinal, um sintoma, uma premonição...) e os “contactos” arrebatadores da paisagem russa, algo que paulatinamente se evola da bruma matinal em miasnoe, como se se soubesse já nesse momento espetro e não apenas fotografia. 

Toda a série de Luz instantânea revela continuamente a nostalgia dessa morada perdida: a terra abriu-se e, nesse momento crítico que é, simultaneamente, um abrasamento momentâneo de luz, o indizível revela-se poeticamente como aquilo que quebra o próprio discurso, impondo o silêncio tenso da aura. Benjamin tinha razão: só remata a obra aquele que em primeiro lugar a quebra, dela fazendo uma obra despedaçada, fragmento do verdadeiro mundo, resquício de um símbolo [4]. As polaroides são então fragmentos, resíduos, pálidas moradas de paraísos revelados instantaneamente: o próprio facto de ser fotografia duplica o sentido de vestígio. se a aura é a aparição de uma lonjura, por mais próxima que esta seja, este carácter súbito da polaroide leva a que nela se imponha duplamente a aura, se possível, na medida em que o próprio processo de geração da imagem permanece quase como um segredo milagroso, algo inatingível, semelhante ao fascínio pelas imagens que o passado faz irradiar em aura. Imagens que parecem, como testemunha o forte exemplo de verónica, objetos concebidos para que se acredite não terem sido realizados por mãos humanas.

1 - Andrei Tarkovski, Diari. Martirologio 1970-1986, Edizioni della meridiana, Florença, 2002, p. 272.
2 - Director de fotografía de Tempo di Viaggio.
3 - Não há nenhuma fotografia, entre aquelas que tirou a partir da janela do quarto do hotel, onde o enquadramento da paisagem marque o próprio corte fotográfico. Nestas fotografias, a paisagem está sempre emoldurada pela janela e o interior do quarto. Por outro lado, deve notar-se que as fotografias de paisagens (exteriores) feitas em Itália são, na sua maioria, imagens muito menos líricas do que as realizadas em espaços interiores. Isso deve-se, em parte, ao facto de Tarkovski utilizar também as imagens Polaroid de uma forma prática, como um registo ilustrativo de lugares que poderiam vir a interessá-lo posteriormente (no processo de procura de locais para o futuro filme).
4 - Cf. “Prefácio epistemocrítico” de A origem do drama barroco alemão, de Walter Benjamin (1924)

O Mundo Interior
Charles H. De Brantes

Gostava-se de música em casa dos Tarkovsky. Cantava-se, tocavam-se instrumentos, viam-se muitos artistas lá em casa em Moscovo nos anos sessenta e setenta, até ao exílio de Andrei Tarkovsky em 1982, para oeste da “cortina de ferro”. Por coincidência, tornei-me guardião, durante algum tempo, em Paris, da sua discoteca pessoal, cujas velhas capas de cartão soviético cheiravam bem. Todos os fundamentais da grande música europeia estavam lá, os Schütz, Bach, Pergolesi, Mozart, Schostakovich… mas Andrei também se interessava por música oriental, pelos Beatles, pelos sons da natureza, pelo seu silêncio… e pela criação contemporânea com o compositor de música eletrónica Edouard Artemiev, que contribuiu para três dos seus filmes: Solaris, Le Miroir e Stalker. Recebi com verdadeira alegria o terceiro disco de François Couturier, depois de Nostalghia e Un jour si blanc, que ele nos diz ambos inspirados pela emoção artística que sentiu ao ver o seu “primeiro Tarkovsky”: Andreï Roublev

Há, claro, os títulos de cada uma das doze composições incluídas neste Tarkovsky Quartet que prenunciam o mesmo número de homenagens… Aos anjos, que preenchem, visíveis ou invisíveis, tanto a obra do pai-poeta Arseni, como a do filho-cineasta Andrei. A Tiapa, nome afetuoso que Tarkovsky dava ao seu filho mais novo, que as autoridades soviéticas proibiam de ir ter com o pai ao Ocidente. A San Galgano, essa abadia toscana em ruínas de Nostalghia, assim como era a barragem hidroeléctrica de Stalker. A Maroussia, doce alcunha dada à sua mãe, que ele fez entrar no seu Miroir na altura em que a voz do seu pai lia o seu próprio poema. A Mychkine, o herói de Dostoievsky que ele muitas vezes evocou como ideia para um filme. A Mouchette, o filme de Bresson de que Tarkovsky mais gostava. La passion selon Andreï, título original da longa-metragem da obra-prima histórica Andreï Roublev. O Apocalipse, último livro da Bíblia que impregna os últimos três filmes de Tarkovsky, com o inolvidável excerto lido por uma voz de mulher que sai a rir, sobre um fundo aquático cheio de imagens perdidas. Doktor Faustus, o romance de Thomas Mann que ele gostaria de ter adaptado ao ecrã. Sardor, o tajik-western cujo guião Tarkovsky escreveu, mas que nunca pode realizar. La main et l’oiseau, essa breve cena de Miroir que Tarkovsky designou mais tarde como o seu autorretrato. Enfim, De lautre côté du miroir, piscar de olho a todos os imaginários… 

Mas encontrei sobretudo o mundo interior onde François Couturier e o Tarkovsky Quartet com Anja Lechner, Jean-Louis Matinier e Jean-Marc Larché excelam em nos fazer penetrar. Doze baladas poéticas onde o piano, o violoncelo, o acordeão, o saxofone se erguem, se respondem, se abraçam, se apagam, voltam… Onde o batimento, como o de um coração, e os sons mais impercetíveis traçam um mundo onde plana a alma, o seu apelo, o seu sonho. Grandes asas se abrem, se estendem, se fecham. A imagem de dançarinos vem-nos à memória. Todo um espaço interior protegido por longos silêncios alargados, onde, milagre!, a improvisação permanece rainha. É sem dúvida isto que mais nos aproxima dessa “liberdade absoluta do potencial espiritual do homem” que Andrei Tarkovsky designava como a função própria da arte.

Almodóvar, Cavalier, Canijo e Reichardt na nova Premiere

A nova Premiere já está nas bancas e assinala o início da minha colaboração com a revista de cinema. Na edição do mês presente escrevo uma retrospectiva de Pedro Almodóvar (motivada pela estreia de 'A Pele Onde Eu Vivo' em Portugal e integrada no especial Heróis Independentes), uma crítica de 'Pater', de Alain Cavalier, outra de 'Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor', de João Canijo e, por fim, de 'O Atalho', de Kelly Reichardt.

quinta-feira, novembro 03, 2011

Dois cartazes sem vergonha



Ainda não foi lançado nem tem data de estreia prevista em Portugal mas já é um dos filmes mais aguardados do ano e que acabou de ganhar mais um cartaz (o da esquerda, poster francês divulgado recentemente). Ambos exprimem, com delicada e sóbria simplicidade, a ideia de corpo, de intimidade e de pudor – noções que, bem vistas as coisas, acabam por participar numa contradição fascinante e, sobretudo, humana. Parece que é isto que a segunda longa-metragem de Steve McQueen quer explorar: a solidão anónima dos corpos (neste caso da metrópole esmagadora que é Nova Iorque).

Shame (que conta com o protagonismo de Michael Fassbender) é, muito à semelhança do que o autor fez com o anterior Fome, a palavra-chave que serve de ponto de partida para a narrativa (ou de chegada, como reflectiu Kieron Corless num artigo da edição do presente mês da revista Sight & Sound sobre o Festival de Veneza e no qual expõe as impressões agridoces sobre o tom aparentemente demasiado moralista e decalcado desta longa-metragem). No entanto, McQueen tem uma resposta pronta para esse tipo de leituras. Tal como foi registado em Veneza: “Toda a gente me dizia que eu não devia fazer um filme como Shame. Por causa do tema. Hoje, ao ver as reacções das pessoas, só posso confirmar que há um público à espera de filmes como este. Como é que podemos competir com a TV e com os jogos de vídeo? Só fazendo filmes que levem as pessoas a colocar questões. Dizem-me que sou moralista. Mas não somos todos? Sou. No sentido em que quero reflectir sobre o que se passa. Mas não sou um santo. É isso que o cinema deve ser. Tem que ser essencial. Tem de ser uma necessidade. É o que eu quero fazer.” 

Com um trailer (em baixo) já à vista, podemos, para além disso, espreitar para dois pequenos clipes do filme, aqui e aqui.

Box office: Um sucesso chamado Tintin

Estreou há sete dias e foi o filme mais visto da semana em Portugal, divulgou o Instituto do Cinema e Audiovisual. Os números do extraordinário As Aventuras de Tintin: O Segredo do Licorne, realizado por Steven Spielberg e produzido por Peter Jackson, são claros: lançado em 134 ecrãs, acumulou uma receita bruta de 931.857,21 euros e levou às salas nada menos que 156.205 espectadores. Previsível? Certamente que sim e não nos admirará se a posição na lista do box office nacional voltar a ser a mesma na próxima semana. 

Será, apesar de tudo, interessante (e pertinente) confrontar os 70.282,32 euros que fazem de Sangue do meu Sangue o filme português mais visto do ano (encontrando-se, por sua vez, na 31º posição dos portugueses mais vistos desde 2004, prestes a ultrapassar Odete, de João Pedro Rodrigues) com os do Tintin. Se, por um lado, temos um número que é fruto de uma acumulação de 29 dias em sala (como é o caso da obra de João Canijo), por outro deparamo-nos com uma diferença brutal na ordem dos 861.574,89 euros, somados por um filme que esteve, “apenas”, 7 dias em exibição. Ambos são verdadeiros acontecimentos multi-versões à escolha do espectador: Tintin tem cinco versões – original em inglês e legendada em português (2D e 3D), dobrada em português (2D e 3D) e dobrada em francês e legendada em português (2D) – e Sangue do meu Sangue duas (brevemente mais uma, em televisão) – uma de 140 minutos, outra de 190. Mas, questionamo-nos, será o número de escolhas a justificação para a diferença, praticamente violenta, dos números? Não nos permitamos a ser ingénuos – face ao 3D, a duração não tem o mesmo efeito sedutor para o grande público. Contudo, outra diferença: Tintin foi lançado em 134 salas de cinema (em contraponto com o português, que estreou em… 14). Um é norte-americano, outro é português; um é realizado por Steven Spielberg, outro é realizado por João Canijo… Mas o que quer isto dizer? Para efeitos práticos, não muito que não saibamos ou que não esperássemos, tanto que tudo isto nos passa com grave despreocupação. 

A maior diferença, muito provavelmente, reside no facto de nos ligarmos mais rapidamente à receita bruta modesta de 70 mil euros de Sangue do meu Sangue e de olharmos com a maior das indiferenças ao quase milhão de euros de Tintin.