segunda-feira, setembro 05, 2011

Uma história do cinema queer (4/6):
Luzes e sombras

É frequente vermos a década de 80 retratada como um tempo de hedonismo, da pop de uns Duran Duran ou Wham! ao festim dançante da revolução na cultura de dança (com o surgimento das cena house e acid house), do clima de aventuras dos filmes de Indiana Jones ao aparecimento do Walkman ou do CD. Ecos da prosperidade económica em que então vivia o mundo ocidental, acabando por se reflectir no mapa emocional que algum cinema acabou por traduzir.

Daí o clima luminoso que passa, por exemplo, por Victor Victoria, de Blake Edwards, filme musical de 1982 vivido entre bastidores do espectáculo na Paris dos anos 20 que leva Julie Andrews a vestir o papel de um homem para conseguir emprego como cantor(a), um suposto conde que tem por maior amigo um homossexual (Robert Preston). Mas nem só de música e festa viveu uma época em que as representações de homossexualidade começaram a chegar com mais regularidade aos ecrãs e a cada vez maiores plateias...

Em Making Love (de 1982; foto), de Arthur Hiller, era levada pela primeira vez a plateias mainstream a história de relacionamento entre dois homens, naquele que terá sido um dos primeiros filmes românticos sobre o amor gay. Making Love começa por nos mostrar um jovem médico casado com uma executiva de televisão. Reprimindo o seu desejo, Zack não deixa de viver ocasionais encontros com outros homens, o filme colocando pela sua frente um caso que depois o abala mais que os furtivos conhecimentos nocturnos. Às plateias do mundo inteiro chegou também nos anos 80 o relato das memórias de um homossexual preso (interpretado por William Hurt) no filme O Beijo da Mulher Aranha, de Héctor Babenco. Igualmente com distribuição generalizada viveram dois filmes protagonizados por David Bowie, ambos com protagonistas vivendo histórias de desejo por pessoas do mesmo sexo.

Em Feliz Natal Mr Lawrence, de Nagisa Oshima (1983), Bowie é um militar preso num campo de concentração japonês, entre si e o comandante inimigo (Ryuichi Sakamoto) existindo uma puslão de desejo. Já em The Hunger (1983; foto), de Tony Scott, Bowie é o vampiro companheiro de uma outra vampira (Catherine Deneuve), esta vivendo a dada altura uma história de amor com uma mulher (Susan Sarandon). Em Silkwood (1985), de Mike Nichols, Cher veste a pele de uma lésbica que partilha a casa com os dois restantes protagonistas de uma história baseada num caso real de uma sindicalista norte-americana.

Com ingredientes de comédia e de drama, Paul Bogart adaptou ao cinema, em 1988, a peça musical de Harvey Fierstein Torch Song Trilogy. Estreado entre nós com o título Corações de Papel, apresenta-nos a vida de um travesti (interpretado pelo próprio autor da peça), a sua vida amorosa e relação com uma mãe dominadora (magnífica criação de Anne Bancroft), levantando a dada altura a temática da homoparentalidade.

Pela Europa as produções retratando vivências LGBT também se multiplicam. James Ivory adapta Maurice [primeira foto], filme de época baseado no romance com o mesmo título de E.M. Foster no qual se reflecte sobre a vida dos homossexuais na Inglaterra urbana e rural de inícios do século XX. Também filme de época, Another Country (1984), de Marek Kanievska, adapta a peça homónima de Jukian Mitchell, recordando a vida nos dias da universidade de um homem que, mais tarde, seria um espião a favor do bloco de Leste (na verdade a história é inspirada na vida do agente duplo Guy Burgess). Em Espanha, em 1987, Pedro Almodóvar assinava ainda, em A Lei do Desejo (com António Banderas no elenco), um dos clássicos maiores da história do cinema queer.

Ao mesmo tempo que as plateias pelo mundo fora descobriam estes (e outros) filmes, um arrepio gelado ia, aos poucos, atormentando a comunidade LGBT. A principio com os primeiros relatos de uma doença ainda sem nome. Doença mortal, que começa a ceifar primeiras vítimas há precisamente 30 anos, entre as quais uma maioria de homens homossexuais. Conhecem-se os nomes de algumas primeiras vítimas notáveis (entre as quais músicos como Klaus Nomi ou Patrick Cowley). A doença faz-se notícia, e com ela nascem novos episódios de discriminação, em muitos casos deitando por terra importantes conquistas realizadas nos anos 70. A morte de Rock Hudson dá, em 1985, um rosto mundialmente célebre à sida, a sua coragem nos últimos meses de vida representando um importante contributo para a visibilidade da doença nos media. As associações de activistas LGBT surgem então na linha da frente de campanhas de luta (contra a discriminação dos doentes e pelo financiamento do combate à sida). O cinema entra igualmente em cena. De resto, a sida será uma presença marcante em muita da cinematografia queer da segunda metade dos anos 80 e da década subsequente.

Um dos primeiros exemplos da presença da sida integrada numa narrativa cinematográfica chega-nos em 1986 em Parting Glances [foto]. Filme de Bill Sherwood, com Steve Buscemi no elenco, centra-se em torno de um casal que se vê temporariamente afastado (por motivos profissionais), o “ex” de um deles sendo um doente infectado com o VIH. A banda sonora inclui canções dos Bronski Beat, uma das primeiras bandas pop mainstream a lançar discos de temática abertamente gay. Entre outros primeiros exemplos de narrativas em que a sida é presença marcante no desenrolar das vidas de personagens contam-se os casos de filmes como Buddies (1985), de Arthur J Bressan Jr, Longtime Companion (1989), de Norman René ou o telefilme An Early Frost (1985). de John Erman. Em todos os casos retratam-se situações trágicas, quase todas na fronteira com a morte, reflectindo ainda uma etapa na qual os tratamentos disponíveis não se comparavam aos que hoje fazem da infecção pelo VIH um caso, não menos preocupante, mas clinicamente capaz de entender outros horizontes de vida.

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