quinta-feira, junho 30, 2011

A ilusão do ser social



A Eletronic Arts está a preparar o lançamento de uma extensão da franquia de videojogos “The Sims”… no Facebook. Denominado de “The Sims Social”, que é esperado com enorme ânsia na rede social, este jogo – ou, pelo menos, a forma de como o vídeo promocional (a ver em cima) sugere ser utilizado – não mostrará nada mais que um espelho da alienação que vivemos. Simulando a nossa própria vida (e não, ao contrário dos anteriores jogos multiplataforma, simulando a vida de uma pessoa ficcionada e criada por nós), “The Sims Social” propõe que vivamos as nossas relações muito mais além da utilização de redes sociais como o Facebook. Propõe, de forma mais assustadora que divertida, que a nossa vida altere e seja organizado de acordo com a virtualidade presente no ecrã de computador. Isto ajuda a demonstrar, para além da solidão a que incorremos cada vez mais, o nosso lado mais criativo e, ao mesmo tempo, patético.

Os números do cinema português

01 – «O Crime do Padre Amaro», Carlos Coelho da Silva (380.671 espectadores – 1,643 milhões de eur)
02 – «Filme da Treta», de José Sacramento (278.853 espectadores – 1,092 milhões de euros)
03 – «Call Girl», de António-Pedro Vasconcelos (232.581 espectadores – 1,034 milhões de euros)
04 – «Corrupção» (230.741 espectadores – 1 milhão de euros)
05 – «Amália – O Filme», de Carlos Coelho da Silva (214.259 espectadores – 929 mil euros)
06 – «Uma Aventura na Casa Assombrada», Carlos Coelho da Silva (124.936 espectadores – 558 mil eur)
07 – «A Bela e o Paparazzo», de António-Pedro Vasconcelos (98.748 espectadores – 435 mil euros)
08 – «Second Life», de Alexandre Valente e Miguel Gaudêncio (90.194 espectadores – 403 mil euros)
09 – «Contraluz», de Fernando Fragata (82.426 espectadores – 373 mil euros)
10 – «Sorte Nula», de Fernando Fragata (74.095 espectadores – 305 mil euros)
Carlos Coelho da Silva
No seguimento da publicação anterior, será interessante debruçarmo-nos sobre os filmes que mais receita e espectadores fizeram até agora no cinema português. Pedindo emprestadas as palavras de João Botelho, há uma falta de “educação” cultural que apetece dizer que é promovida pelo próprio Governo que, na minha perspectiva, deveria estar mais atento, para além de outros aspectos como as formas de distribuição, na divulgação do seu cinema como parte da identidade nacional. Ou será que o povo português é o espelho de “O Crime do Padre Amaro”, do “Filme da Treta” ou do “Call Girl”? A questão é contudo mais profunda do que aqui parece querer fazer-se parecer. Na verdade, António-Pedro Vasconcelos e Fernando Fragata representam a tentativa de transformar a pouca produção cinematográfica em Portugal em indústria, conceito que está a anos-luz de encontrar uma forma como a que existe nos Estados Unidos da América. E o escasso e comum consumidor do cinema português, alheio às produções independentes, procura aquilo que os exibidores mais gostam de projectar em sala, tendo em atenção o número de bilheteiras: uma fórmula próxima do protótipo norte-americano, que lhe garante entretenimento. Será por isso urgente, ao mesmo tempo que se implementem medidas baseadas na produção de mais filmes e sobretudo de jovens realizadores (e não tanto de veteranos), que a política governamental relativa ao cinema nacional co-relacione os sectores da Educação e da Cultura, implementando programas nas escolas que levem aos alunos, com a mesma urgência com que aprendem as ciências e a literatura, novas formas de artes visuais, como é o caso do cinema, divulgando a sua História, os seus principais objectos e aquilo que é o cinema português, expressão que se encontra cada vez mais esbatida pelo esquecimento, ódio e incompreensão.

quarta-feira, junho 29, 2011

Realizadores reagem aos novos critérios de apoio ao cinema


O novo Governo apresentou ontem um programa que prevê que o número de espectadores seja um dos critérios de apoio ao cinema. A sua ligação à televisão divide também opiniões em profissionais do sector. Este texto foi publicado originalmente hoje, dia 29 de Junho de 2011, no site Dinheiro Vivo, que integra o Diário de Notícias. Pode ser lido integralmente aqui.

Que luz é esta que abre e fecha A Árvore da Vida?


Encontrando paralelo com o enormíssimo destaque que a revista Cahiers du Cinema fez para este mês de Junho sobre o realizador (cuja obra recebeu classificações, por parte dos críticos que integram a sua redacção, que viajam da bola preta – “inutile de se déranger” – para as quatro estrelas – “chef d’oeuvre”), a revista semanal norte-americana The New Yorker publicou, na edição de 27 de Junho, um pequeno texto sobre a imagem com que a Palma de Ouro de Terrence Malick, que está a ser projectado em sala entre nós, abre e encerra. Segundo a publicação, os críticos variaram na sua interpretação dessa imagem, uma chama ondulante e cintilante encarnada e amarela, chamando-a “uma bolha de cor de gema” (Robert Koehler, Variety), “um grande o-que-é-isto” (Amy Taubin, ArtForum) e “um vislumbre de uma luz insondável” (Anthony Lane, The New Torker). Já A. O. Scott, do The New York Times, considera que “apenas pode representar o Criador”.

O conteúdo deste plano, atribuído erradamente ao (silencioso) Malick, é da responsabilidade do artista Thomas Wilfred (nascido na Dinamarca em 1889 e falecido em 1968 em Nova Iorque). Na sua “Opus 161” (1965-66; em cima), Wilfred cria mais uma das suas composições luminosas, obras de arte abstractas e etéreas gravadas a partir de uma série de lâmpadas e lentes, reflexões de espelhos e pedaços de metal e vidro pintados.

A produção de “A Árvore da Vida” contactou o coleccionador Eugene Epstein, que conheceu Wilfred nos tempos de estudante no MoMA, e que recorda o objectivo da equipa em “captar algo acerca da criação”. Permitindo a utilização da obra do artista, Epstein conheceu o realizador que estava acompanhado da sua mulher, considerando-o “um homem inteligente, muito cordial e nada pretensioso”.

Que levou, então, Terrence Malick a citar a obra de Thomas Wilfred, que pensava representar a “energia rítmica do universo”, para abrir e finalizar o seu filme? A bem dizer, esta imagem derradeira e desafiante provavelmente resume a beleza e, acima de tudo o resto, o mistério em que invariavelmente o filme se encerra e resume, confrontando o espectador com a sua angústia e necessidade de se transcender absolutas.

segunda-feira, junho 27, 2011

Filme de Spike Jonze e Arcade Fire disponível na Internet


O portal online MUBI junta-se às novas estratégias de distribuição cinematográfica (que passam invariavelmente pela Internet), lançando Scenes from the Suburbs, realizado por Spike Jonze (autor de Queres ser John Malkovich?, em 1999, Inadaptado, em 2002 e O Sítio das Coisas Selvagens, no ano seguinte) e produzido pelos Arcade Fire, que se juntam "para criar esta curta-metragem de trinta minutos inspirada no seu aclamado álbum, The Suburbs, e nos temas da guerra e a passagem para a fase adulta nos subúrbios. Co-escrito por Jonze e Win e Will Butler, dos Arcade Fire, esta peça que acompanha o álbum segue o narrador, que vive numa distopia suburbana, tentando juntar as peças das memórias fragmentadas da sua adolescência, e a vivência com os amigos que se vão separando gradualmente", podemos ler na ficha do filme. Um dos mais eficientes e interessantes motores de busca e classificação de filmes, o MUBI tem sido reconhecido por disponibilizado inúmeras longas e curtas-metragens (algumas que dificilmente encontramos à venda ou por outros sítios na rede), cobrando aos seus espectadores um preço mínimo. Desta vez, entre hoje (27 de Junho) e amanhã (28) poderemos vê-la em exclusivo. Em boa verdade, esta forma de chamamento de público, que permite uma clara interacção com os espectadores, serve de exemplo para os grandes estúdios (e também pequenos) que devem rever a sua distribuição face à inegável questão da pirataria, por muitas vezes já aqui discutida no blogue. Para ver o filme poderão clicar aqui, com legendas em português. O making of, com duração de 13 minutos, pode também ser visualizado aqui.

domingo, junho 26, 2011

Mosfilm no Youtube

A notícia não é nova, mas foi-me dada a conhecer (graças às redes sociais) pelo Paulo Soares. A enorme produtora cinematográfica da URSS e actual Rússia, Mosfilm, que perdura há uns extraordinários 87 anos, anunciou no passado mês de Abril uma parceria com o Youtube, disponibilizando aos seus utilizadores ver, integralmente, inúmeros filmes consagrados do estúdio num canal criado para o efeito. Karen Shakhnazarov, cineasta que está à frente da Mosfilm, fala da prevenção do uso ilegal da obra histórica da produtora, o que nos revela uma posição firme, activa e interessada face à proliferação da pirataria em redor de todo o mundo. Relembro que da colecção do estúdio russo, disponibilizado no Youtube, encontram-se os filmes de Andrei Tarkovsky, como A Infância de Ivan, Karen Shakhnazarov, Mikhail Romm ou de Vladimir Moty, alguns com legendas em inglês.

Apesar da boa notícia, será interessante voltarmos a Tarkovsky como exemplo e atentar no caso do canal de Youtube SubtitledRusMovies que, em comparação com o da Mosfilm, ganha pontos disponibilizando integralmente Solaris, StalkerNostalgia e O Sacrifício, com legendagem até em português. A ténue linha que cruza a divulgação com a pirataria começa a partir deste canal de merecido mérito, que já viu o seu conteúdo bloqueado pelo Youtube (por ordem da Mosfilm), como foi o caso de O Espelho.

sábado, junho 25, 2011

Música com Cinema (3): Blur e Sigur Rós


The Universal, dos Blur
Realização: Jonathan Glazer
1995

Autores de uma das mais consistentes obras discográficas do pop/rock alternativo dos anos 90, os Blur cedo descobriram uma forma igualmente competente de encarar a imagem como complemento directo para as suas canções. As capas dos primeiros singles e álbum sugeriam já esse relacionamento que, com o tempo (e os orçamentos mais nutritivos que o sucesso lhes deu), ganhou forma ainda mais notável em telediscos nos quais vincaram a vontade de expressão de um olhar cinematográfico. Em To The End, assinado por David Mould em 1994, citaram em concreto o clássico O Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais. Mais tarde, em No Distance Left To Run (1999), chamaram Thomas Vinterberg a assinar a realização de um teledisco que observa os quatro elementos da banda de noite, às escuras, durante o sono. Entre os seus feitos maiores da sua videografia conta-se ainda The Universal, teledisco rodado por Jonathan Glazer (então ainda longe de se estrear na realização de longas-metragens). Tomando como evidente referência visual o espaço do Korowa Milk Bar de A Laranja Mecânica de Stanley Kubrick, o teledisco faz dos quatro elementos do grupo uma materialização da memória do pequeno “gang” que vemos no filme. Mas mais interessante ainda que este jogo de citações é a construção de um conjunto de situações centradas numa mão cheia de personagens que, sem experimentar sequer uma ideia narrativa, constroem em conjunto um quadro que define assim um ambiente e caracteriza um espaço. Há legendas que sugerem fragmentos de diálogos, olhares que traduzem estados de alma e, perto do final, um segredo que vemos, mas não escutamos, e que desencadeia um momento que podia morar num instante de um filme. Notas igualmente de destaque para a soberba direcção de fotografia e para um trabalho de montagem que sabe, mesmo numa canção de toada lenta, manter vibrante o ritmo dos olhares, gentes e gestos que se cruzam durante o teledisco.


O disco

Em meados dos anos 90 os Blur eram já um nome de absoluto primeiro plano da pop à escala mundial. No Reino Unido viviam então uma “batalha” (mais mediática que real) contra os Oasis, em tempos de euforia brit pop. Parklife, o seu terceiro álbum, editado em 1994, cimentara esse estatuto de protagonismo no panorama pop/rock, sem que tal representasse um instante de cedência por parte da banda quanto às intenções da sua obra e formas a expressar na sua música. De longe o menos esforçado dos álbuns do grupo, The Great Escape foi então (em 1995) um disco mais de continuidade que feito de olhares lançados adiante. Mesmo assim há no alinhamento do quinto álbum de originais dos Blur alguns instantes dignos de morar entre as peças de referência da sua obra. Entre eles The Universal, canção escolhida para ser o segundo single extraído do alinhamento desse disco. Uma balada eloquente, de carga sinfonista (e com um magnífico arranjo para cordas), The Universal tornou-se com o tempo num dos temas-chave da obra dos Blur e é, claramente, uma das mais belas canções pop, com travo clássico, dos anos 90.

Nuno Galopim


Viðrar vel til loftárása, dos Sigur Rós
Realização: Stefán Árni Þorgeirsson e Sigurður Kjartansson
2001

Contextualizado na Islândia dos anos 50, dois clubes júnior de futebol confrontam-se em campo e, ao vencer o jogo, dois colegas da mesma equipa celebram beijando-se, expondo a sua intimidade aos pais, que os separam. A ideia partiu de Ágúst Ævar Gunnarsson, baterista fundador da banda Sigur Rós (que, entretanto, desiste em integrar o grupo em 1999, antes do seu sucesso internacional), e foi concretizada pela dupla de realizadores Stefán Árni Þorgeirsson e Sigurður Kjartansson. Teledisco sobre o amor e a violência, este é um dos grandes casos de como a forma poética da música (e da respectiva letra, como a tradução em inglês do teledisco disponibilizado em cima nos faz compreender) encontra paralelo com a do vídeo. A separação do protagonista das suas bonecas feita pelo pai representa assim a antítese que vive neste pequeno filme: o comportamento natural contra o que é imposto; o colectivo contra o individual; a sociedade contra um certo tipo de amor. A bela fotografia (situada em Reiquiavique), e o slow motion (que existe do início ao fim) parece querer chamar a atenção para estes pequenos acontecimentos, comportamentos e sentimentos – e são os próprios Sigur Rós, apologistas da liberdade, a apresentarem-se como parte dessa observação, surgindo no teledisco em diversos cameo. Jón “Jónsi” Þór Birgisson (vocalista e guitarrista) é o treinador da equipa vencedora; Georg "Goggi" Holm (baixista) é o árbitro; Kjartan "Kjarri" Sveinsson (teclista) é um dos espectadores; Orri Páll Dýrason (baterista) é quem aponta os golos. Este é ainda citado como um dos telediscos mais relevantes para a comunidade homossexual, por mostrar a pureza e a violentação do seu amor.

Um Verão feito de sequelas no cinema


Novos episódios de casos de sucesso entre os filmes candidatos a fazer os números mais fortes das bilheteiras portuguesas este Verão.

O Verão, nas salas de cinema portuguesas, vai ser dominado sobretudo pelas sequelas dos grandes sucessos comerciais de Hollywood. “Carros 2” (veja o trailer), “Harry Potter e os Talismãs da Morte: Parte 2” (veja o trailer) e “O Último Destino 5” são alguns exemplos do que poderemos ver em cartaz nos próximos meses.

“Transformers 3”, a estrear já no próximo dia 30, é um blockbuster mais uma vez assinado por Michael Bay que dá seguimento à franquia produzida por Steven Spielberg, iniciada em 2007.

O mês de Julho abrirá com o filme de Verão da Pixar e da Disney: a sequela da animação “Carros”, cuja estreia precede aquele que é um dos títulos mais esperados do ano: a segunda parte do sétimo capítulo de “Harry Potter”, com data de lançamento prevista para 14 de Julho, e que promete, como os episódios anteriores, ser mais um impressionante sucesso de bilheteiras. A adaptação, assinada por David Yates, encerra no grande ecrã as aventuras daquele que se tornou um dos feiticeiros mais conhecidos em todo o mundo.

“Super 8” (veja o trailer), o novo filme escrito e realizado J. J. Abrams (que também assinou  “Star Trek”), produzido por Steven Spielberg, não é, todavia, uma sequela. O blockbuster, que estreia no dia 28 de Julho e que se centra num grupo de amigos que testemunha um grave acidente, é uma aventura que já fez sucesso nos EUA, posicionando-se ali, neste momento, no primeiro lugar do box-office.

Agosto será mais centrado em histórias com super-heróis. “Capitão América: O Primeiro Vingador” abre o mês no dia 4, seguido da adaptação em 3D para o grande ecrã de “Os Smurfs” e da prequela do “Planeta dos Macacos”, no dia 11 de Agosto.

A segunda metade do mês é assinalada pela ficção científica “Lanterna Verde”, a estrear dia 18 de Agosto, e que marca o regresso de Ryan Reynolds ao cinema. “Cowboys e Aliens” e o filme de acção “Conan” em 3D são lançados no dia 25 do mesmo mês.

Todas estas estreias seguem-se aos lançamentos que ocuparam os lugares cimeiros das bilheteiras do mês de Junho. Foram elas o quarto capítulo de “Piratas das Caraíbas” (lançado ainda em Maio), as segundas partes de “A Ressaca” e de “O Panda do Kung Fu” e a prequela de “X-Men”.

As estreias do Verão que agora começa revelam a tendência actual do cinema de Hollywood em apostar em continuações dos filmes que melhores resultados obtiveram no mercado. Esta lógica irá manter-se para lá do Verão, antevendo outras estreias com as quais podemos contar até o final do ano: “O Último Destino 5”, “O Regresso de Johnny English”, “Footloose”, “Actividade Paranormal 3”, “A Saga Twilight: Amanhecer: Parte 1”, “O Gato das Botas”, “Happy Feet 2”, “Missão: Impossível: Operação Fantasma” e “Sherlock Holmes 2”.

(PS: as datas indicadas poderão sofrer alterações pelos respectivos distribuidores)

Esta notícia foi publicada originalmente no dia 23 de Junho de 2011, no site Dinheiro Vivo.

sábado, junho 18, 2011

Um ano da morte de José Saramago


No dia em que se comemora um ano da morte do Prémio Nobel Português José Saramago e a Cinemateca prepara uma homenagem ao lado da FNAC e da SIC, chegam boas notícias: Clarabóia, romance inédito escrito pelo escritor em 1953 (e depois caído no esquecimento quando entregue à presente editora), será publicado entre Outubro e Novembro deste ano pela Caminho. Debruçando-se sobre a vivência dos habitantes de um prédio (cujo último andar é iluminado por uma clarabóia), "nota-se que já tem ali algumas coisas que o José Saramago viria a desenvolver mais tarde... e tem até um personagem que, de alguma maneira, é o Saramago debatendo-se com os seus próprios problemas e, nomeadamente, com um problema que ele nunca resolveu, que é o optimismo e o pessimismo: se a humanidade é recuperável ou não", diz Zeferino Coelho à Lusa. Em 2012, será também publicado as primeiras 20 páginas do novo romance que Saramago preparava sobre o comércio de armas: Alabardas, Alabardas! Espingardas, Espingardas!, que cita um verso de Gil Vicente. Depois da 23ª edição de Viagem a Portugal, será publicada a correspondência completa entre o escritor e os seus leitores; Palavras para José Saramago (que reúne textos publicados após a sua morte); e o infantil O Silêncio da Água (retiro dAs Pequenas Memórias). Ainda falta decidir o que fazer com "contos inéditos" e "peças de teatro incompletas".

Quanto ao cinema, e numa breve recordação a um post antigo, lembro qual era o cinema predilecto do escritor:

O Sal da Terra (1954)
Helbert Biberman
"vi em Paris no final dos anos 70 e que me comoveu até às lágrimas: a história da greve dos mineiros chicanos e das suas corajosas mulheres abalou-me até ao mais profundo do espírito."


Blade Runner (1982)
Ridley Scott
"visto também em Paris num pequeno cinema do Quartier Latin pouco tempo depois da sua estreia mundial e que, nessa altura, não parecia prometer um grande futuro"


Amarcord (1973)
Federico Fellini
"desse, ninguém teve nunca dúvidas, estava ali uma obra-prima absoluta, para mim talvez o melhor dos filmes do mestre italiano."



A Regra do Jogo (1939)
Jean Renoir
"(...) que me deslumbrou pela montagem impecável, pela direcção de actores, pelo ritmo, pela finura, pelo “tempo”, enfim"



Pat & Patachon
"um filme que me acode à memória como se viesse da primeira noite da história dos contos à lareira, “Pat & Patachon” moleiros, aqueles sublimes (não exagero) actores dinamarquese que me fizeram rir (tinha então seis ou sete anos) como nenhum outro. Nem Chaplin, nem Buster Keaton, nem Harold Lloyd, nem Laurel e Hardy. Quem não viu Pat & Patachon não pode saber o que perdeu…"

O Peregrino (1923)
Charles Chaplin
"O sorriso de Chaplin não é um sorriso feliz, pelo contrário, aventuro-me a dizer, sabendo ao que me arrisco, que é tão inquietante que ficaria bem na boca de qualquer drácula. Se eu fosse mulher, fugiria de um homem que me sorrisse assim. Aqueles incisivos, demasiado grandes, demasiado regulares, demasiado brancos, assustam. São um esgar no enquadramento rígido dos lábios. Sei de antemão que pouquíssimos vão estar de acordo comigo. O caso é que, uma vez que foi decidido que Chaplin é um actor cómico, ninguém lhe olha para a cara. Creiam no que lhes digo. Olhem-no de frente sem ideias feitas, observem aquelas feições uma por uma, esqueçam por um momento a dança dos pezinhos, e digam-me depois o que viram. Chaplin levaria todos os seus filmes a chorar se pudesse."

Volver - Voltar (2006)
Pedro Almodóvar
"(...)creio não equivocar-me muito imaginando Pedro Almodóvar, referente por excelência da “movida” madrilena, a perguntar à sua pequena alma (as almas são todas pequenas, praticamente invisíveis): “Que faço eu aqui?” A resposta vem dando-a ele nos seus filmes, esses que nos fazem rir ao mesmo tempo que nos põem um nó na garganta, esses que nos insinuam que por trás das imagens há coisas a pedir que as nomeemos. Quando vi “Volver” enviei a Pedro uma mensagem em que lhe dizia: “Tocaste a beleza absoluta”. Talvez (seguramente) por pudor, não me respondeu."

sexta-feira, junho 17, 2011

Para recordar José Saramago

Amanhã, no dia em que se assinala o aniversário da morte de José Saramago, a Cinemateca Portuguesa projectará no seu auditório principal a longa-metragem premiada de Miguel Gonçalves Mendes, José e Pilar, com a presença desta última e do realizador. Ao mesmo tempo, decorrerá o lançamento oficial do filme em DVD e da respectiva banda sonora (que conta com temas de Adriana Calcanhotto, Camané, Luís Cília, Noiserv, Pedro Gonçalves, dos Dead Combo, e Pedro Granato) em todas as FNACs do país. A homenagem ao Prémio Nobel da Literatura passa também pela SIC, onde a primeira parte do filme será exibida pelas 23:35. No domingo, segue-se à mesma hora a segunda parte.

quinta-feira, junho 16, 2011

Cinema para quem quer e para quem não quer pagar

Pouco depois de um estudo ter mostrado que Portugal está entre os países com maior índice de pirataria e de se terem reforçados os apelos contra o descarregamento ilegal de filmes, uma dupla de australianos ousou lançar The Tunnel pela Internet – e quem quiser não paga

Para além de uma poderosíssima ferramenta de comunicação, informação e entretenimento, a Internet, que redefiniu toda a sociedade nas últimas décadas, trouxe ao ser humano contemporâneo uma facilidade renovada na partilha das suas criações, permitindo-o expressar-se para o planeta como nenhum outro meio o havia feito. Sendo as redes sociais o maior exemplo dessa projecção virtual, será pertinente questionar de que forma é que outros sectores foram afectados com a proeminência, cada vez mais imperativa, da utilização da Internet.

Muito à semelhança do universo da música, o cinema tem sido dos espaços mais afectados no que respeita o retorno financeiro. Vitimizado pela pirataria, surgiu recentemente uma alternativa original e inédita que poderá vir a revolucionar a forma como entendemos a legalidade da partilha de ficheiros e as próprias estratégias de distribuição cinematográfica. Referimo-nos a The Tunnel, filme de terror estreado no dia 19 de Maio… na Internet. Permitindo o descarregamento pago ou gratuito (portanto, sem que se violem os direitos de autor), de acordo com a preferência (e possibilidades) do espectador. Esta solução transforma, quase por completo, a visão malévola da Internet, o principal problema do cinema da actualidade.

A Internet não se apresenta, apesar de tudo, como o primeiro obstáculo que a sétima arte enfrentou. Desde o seu nascimento, as inovações tecnológicas acompanharam o esforço de chamar o público para as salas de projecção. Foi o caso do som, em 1927 (com o lançamento do primeiro filme sonoro, O Cantor de Jazz, que rivalizou com um modelo de imagem muda que julgava estar seguro) ou da cor. No entanto quando, a partir dos anos 50, a televisão surgiu como inimigo número um do cinema, a crise na indústria cinematográfica escalou a um outro nível. Obrigando os estúdios a repensar as estratégias de distribuição, assistimos ao florescimento de temas mais apelativos, à criação dos cinemas ao ar livre “drive-in” nos EUA, ao “cinerama” (sistema que envolvia a junção de três projectores de 35 mm que permitia uma visão mais alargada e periférica da imagem mas que, pelos custos envolvidos, teve pouca duração), ao CinemaScope (processo descoberto em 1953 e que expandia o tamanho do ecrã) e ao 3D, utilizado pela primeira vez em 1952 (com o filme Bwana Devil) e que prometia ao espectador uma realidade inédita e mais “natural” (mas que por obrigar o espectador a utilizar óculos de cartão Polaroid imperfeitos, desconfortáveis e com malefícios à sua saúde, passou rapidamente da moda).

Será, contudo, impossível falarmos de imagem a três dimensões sem nos lembrarmos do projecto titânico de James Cameron, “Avatar” (2009). Voltou a falar-se do 3D, a par do cinema digital, como a “salvação” da indústria em tempos de crise, num tempo quem que o grande público tem vindo a demonstrar alguma preferência pelo conforto da casa (importa recordar os desenvolvimentos do “home cinema”, a nível de som e de imagem envolventes), pela facilidade de ver um filme cujos direitos foram adquiridos por um canal de televisão, de o alugar em videoclubes (hoje em dia existentes nos serviços portugueses de televisão) e de o comprar em suporte DVD, Blu-Ray ou em formato electrónico (através de lojas virtuais). O inimigo actual do cinema é, no entanto, maior que todo o conjunto acima mencionado, considerado pelos produtores, distribuidores, autoridades e criadores como um problema fracturante e ilegal.

A partilha ilegal de filmes pela Internet, à qual chamamos de pirataria e que infringe os direitos de autor detidos por uma obra cinematográfica, começou a ser desenvolvida em grande escala depois do final dos anos 90 quando o programador Shawn Fanning criou o “Napster”, o primeiro programa na Internet de partilha de ficheiros de música em rede “peer-to-peer” (isto é, “de parceiro a parceiro”, traduzindo de forma livre). Bastou pouco tempo para que o que se via na indústria da música se transferisse para o cinema: o protocolo de rede BitTorrent, lançado no dia 2 de Julho de 2001, permitiu a distribuição de arquivos por “torrents”. Quanto mais pessoas “semeassem” (isto é, pusessem em activo) um ficheiro em particular, mas facilidade teria um internauta em ir buscá-lo. Assim se promoveu, ilicitamente, uma rede colossal de gente que, em redor do planeta, descarregava para o computador, e entre si, ficheiros de vídeo, de música, etc. A actividade à margem da lei começou a ser de tal forma preocupante que os governos se viram obrigados a promover uma atitude anti-pirataria junto de quem, em seu entender, não estaria ciente do seu comportamento. Nos cinemas e DVDs portugueses, antes que os filmes começassem, tornou-se natural ver o aviso que advertia que “o download não autorizado é ilegal”, e que o mesmo era “punível até 3 anos de prisão”. Mas continua a haver quem faça downloads ilegais, nota-se uma queda das receitas das bilheteiras e houve notícias da falência de videoclubes. A mediatização deste problema (que avança continuadamente sem fim à vista) cresceu com a penalização do descarregamento ilegal em vários países (como a França); com a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar o autor do site BTuga no passado Abril, ou com a criação da rede dos Partidos Pirata depois de 2006, primeiro na Suécia e, depois de outros países, já em Portugal, tendo sido o PPP (Partido Pirata Português) fundado no dia 12 de Maio de 2009 por alunos de Engenharia Informática, lutando contra as leis dos direitos de autor.

Sensível ao debate que se impôs sobre a pirataria, uma dupla de produtores argumentistas australianos decidiram iniciar o “135k Project”, que consistia em criar um filme com 135 mil fotogramas (o que equivale a 90 minutos) e lançá-lo via online, permitindo ao espectador descarregá-lo legalmente, fazendo-o decidir ainda se quer contribuir para o filme. Caso seja esse o seu intento, então este pode escolher entre pagar um dólar por um fotograma, ou pagar o DVD do filme original. The Tunnel, filme de terror lançado na Internet no dia 19 de Maio deste ano, abriu caminho para um tipo de distribuição cinematográfica completamente moderno e para uma solução inédita para o problema da partilha ilegal de filmes. Em questão põe-se, para além da liberdade de lançamento dos filmes, a generosidade do público, que só se vê impelido a pagar por aquilo que consume porque assim é obrigado.

Um telefilme mascarado de acontecimento cinematográfico

Ao contrário da originalidade da estratégia de distribuição do filme na Internet, The Tunnel, realizado pelo australiano Carlo Ledesma e escrito pelos produtores Julian Harvey e Enzo Tedeschi, apresenta-se como um objecto reciclado da fórmula gasta do “falso documentário” de terror, tomando como exemplo The Blair Witch Project (1999), [REC] (2007), Cloverfield (2008) ou Paranormal Activity (2007). Seguindo a história de uma jornalista e da sua equipa de filmagem que investiga os túneis subterrâneos de Sidney e a razão o seu acesso é interdito, esta é uma obra previsível desde o primeiro minuto, desinteressante e recheada de lugares-comuns e que a torna num autêntico telefilme sem qualquer mérito.

Este texto foi publicado originalmente no dia 11 de Junho de 2011 na revista Notícias Sábado do DN e JN.

segunda-feira, junho 13, 2011

Música com Cinema (2): Pet Shop Boys e Janelle Monáe


It’s a Sin, dos Pet Shop Boys
Realização: Derek Jarman
1987

A relação de Derek Jarman (autor de filmes como Caravaggio, Wittgenstein ou Sebastiane) com a música não se esgotou em Jubilee, longa-metragem de 1977 que olha, de perto, e com conhecimento de causa, vivências da Inglaterra punk de então. Ainda em finais dos anos 70 Jarman assinou a realização de telediscos para Marianne Faithfull, que então renascia ao som de Broken English. Já nos oitentas trabalhou para nomes como Marc Almond, The Smiths ou Orange Juice, seguindo-se depois uma sucessão de filmes para canções dos Pet Shop Boys. Para estes, e antes das curtas expressamente rodadas para exibição durante a primeira digressão da banda, realizou um trio de telediscos, todos eles para canções do álbum Actually, de 1987. O primeiro foi precisamente It’s A Sin. Explorando o sentido da expressão “pecado”, projectou Neil Tennant e Chris Lowe em cenário que evoca os dias da Inquisição, o teledisco respirando depois uma familiaridade com o que era então a linguagem cinematográfica de Jarman, apresentando inclusivamente afinidades com ambientes que podemos ver no filme Edward II, de 1991. It’s A Sin é um teledisco ambicioso na produção, sugerindo (mais que relatando) traços de uma narrativa que assim cruza ocasionais ideias com a letra da canção (sem contudo nela procurando um “argumento”). Mais um pequeno filme que um vídeo musical, It’s A Sin conta, além dos elementos do duo, com a participação, no elenco, do actor Ron Moody.

O disco

Single de apresentação de Actually (o segundo álbum de originais dos Pet Shop Boys, editado em 1987), It’s A Sin revelava primeiros sinais de uma ideia de sinfonismo pop que o grupo mais tarde levaria a patamares ainda mais sofisticados com canções como Left to My Own Devices ou Jealousy. Entre os elementos usados na construção da canção contam-se sons captados na Abadia de Westminster. Lançado em Junho de 1987, o single deu aos Pet Shop Boys o seu segundo êxito de primeiro plano à escala global.

Nuno Galopim



Cold War, de Janelle Monáe
Realização: Wendy Morgan
2010

O segundo single do álbum “The ArchAndroid” da cantora norte-americana Janelle Monáe pretende ser um teledisco que vai contra a maré dos telediscos ambiciosos, repletos de elipses temporais e espaciais e montados em função das mesmas. Por sua vez, “Cold War”, realizado por Wendy Morgan, emana uma simplicidade tão invulgar no universo dos mais recentes vídeos que foi completo logo no primeiro (e único) take. Como refere o intertítulo “take 1”, observamos, meramente, de um plano sequência e de um grande plano de Monáe. Não podemos, contudo, descurar a interessante complexidade que se mascara por detrás desta criação. O plano único sugere as origens primitivas do cinema – a fotografia, captadora de um momento e expressão. Neste autêntico retrato foto-cinematográfico, vemos não uma mas várias emoções representadas da cantora. A sua nudez sugere, antes de gratuitidade, uma sinceridade que está ausente neste tipo de obra, aliada à metragem situada no canto do teledisco e à forma como Monáe canta – e ouve – a sua própria canção. De facto, é curioso notar a denúncia do playback na extraordinária passagem das manifestações interiores da cantora, representadas particularmente no seu olhar que agarra a totalidade do vídeo como se tratasse de uma verdadeira Mona Lisa.

domingo, junho 12, 2011

Entrevista a Bruno Dumont


Bruno Dumont, um dos mais interessantes cineastas contemporâneos, respondeu a uma série de questões que lancei que serviu de base para escrever este artigo publicado no Diário de Notícias. Publico de seguida a entrevista integral ao realizador francês.

Como relaciona este filme com a França actual, onde o debate religioso é tão visível, especialmente agora que a lei não permite determinados aspectos da prática religiosa (como a utilização pública das burcas)?
Hadewijch é mais uma tentativa de fazer tábua rasa às instituições religiosas e políticas – mostrando a sua violência intrínseca e a alienação dessa superstição – para uma procura espiritual nova e laica.

Acredita que a laicidade política pode promover intolerância religiosa?
A crença em Deus e as religiões são para mim arcaísmos que deveriam estar fora do alcance da política. Mas a política actual é em si uma outra forma desse arcaísmo autoritário que deve ser ultrapassado.

Tem alguma relação pessoal com Deus?
Nenhum. Estou apenas a tentar quebrar o que abrange esse conceito e explorar o seu mistério.

Em Hadewijch, as personagens vão da fé extrema para serem extremistas. Será a fé a razão pela qual as coisas escalam a este ponto ou será o mundo em volta deles o gatilho que faz com as que pessoas se comportem desta forma?
A fé é uma forma alienada de desenvolvimento espiritual do homem: um anel totalitário que contém nos seus germes o poder destrutivo de uma acção terrorista, a sua manifestação extrema.

De que forma vê Hadewijch como uma catarse e metáfora para o interior da alma?
Hadewijch é Puro Amor e é a parte de cada um de nós que deseja desesperadamente Amar e Ser Amado. Hadewijch é este pequeno teatro que parte de nós mesmos, pelo que o filme é a visão e a representação umas vezes em catarse e outras em metáfora.

O Nassir fala sobre o invisível. O que é o invisível para si? Como o considera no cinema?
O invisível é todo a área da interioridade que é irrepresentável para nós, salvo através do cinema que, a par das coisas visíveis, consegue descobrir as proporções certas e, assim, dar-nos visões e, logo, representações.

A violência é inevitável ao comportamento humano?
Sim, mas pode e deve ser transformado pela cultura, pela civilização: pacificado por eles.

Apesar da violência, haverá algum sinal de esperança na última sequência do filme? E pelo que devemos ter esperança?
Hadewijch é testada e mostra o caminho espiritual: a única forma nova de amor humano, longe de Deus.

Hadewijch é uma mística do século XII. Por que escolheu esta referência?
Foi ela que, através dos seus poemas e das suas Visões, me deu a ver a forma mística do amor puro.

O que o fez decidir levar a protagonista do filme para um lugar do mundo árabe a um certo ponto do filme? Onde era já agora?
É um dado artificial num contexto histórico. É partir de uma certa comunidade para uma outra contrária e inimiga. Num western americano dos 50 ou 60 seria como estar entre os índios. É como não estar em nenhuma parte ou em todas ao mesmo tempo.

James Quandt, um jornalista, classificou o seu trabalhou como uma força motriz do chamado “Novo Cinema Francês Extremista”. Como se relaciona com esta ideia? Vê a sua obra como parte de um movimento?
Não posso ter essa perspectiva, encontro-me no meio do que fiz e não na extremidade de qualquer coisa. O jornalista fala provavelmente partindo de onde se encontra e do seu ponto de vista.

Toma o minimalismo de Bresson e a intensidade psicológica de Bergman como referências do seu cinema? Que cineastas admira mais?
Não penso nisso e entretanto o tempo passou. Olho para mim sem saber exactamente por onde e por quem já passei. Todos nós somos formas acumuladas de cinema e somos humildemente o seu movimento perpétuo.

Como passou da Filosofia para o Cinema?
Como não conseguia passar pela porta, fui pela janela.

«Hors Satan», o novo filme que acabou de apresentar em Cannes, parece ser mais radical. Pode falar-me disso?
Hors Satan é o resultando de Hadewijch: face a um novo mundo longe de Deus, o combate contra Satanás, nas paisagens sagradas dos nossos jardins espirituais.

Por uma nova demanda espiritual


Pouco depois de ter apresentado no Festival de Cannes 'Hors Satan', o seu filme mais recente, o realizador francês fala-nos sobre 'Hadewijch', que acaba de estrear em Portugal.

Bruno Dumont é um cineasta que cultiva o silêncio. Evidentemente, esta característica não significa que, na economia das palavras, não acabe por reflectir a plenitude do pensamento que descreve a sua obra. Tomemos como exemplo Hadewijch, que nos mostra a palavra como ditadora da religião e da mentira em contraste com o silêncio, revelador da verdade e do mistério espiritual que parece rodear-nos.

Nascido em 1958 no Norte de França, Bruno Dumont realiza o seu primeiro filme apenas aos 39 anos. Sendo-lhe vedada a admissão a uma das mais conceituadas escolas de cinema francesas, foi professor de Filosofia enquanto filmava anúncios para o nicho da indústria pesada e da maquinaria. É curioso como, durante este período de descoberta de como absolutamente tudo se podia tornar interessante se filmado, Dumont tenta desenvolver as suas questões interiores não na filosofia mas na literatura, chegando a escrever, como um romance, La vie de Jésus. Só depois o transforma em filme, quando, ao tentar vender o projecto aos produtores, é impulsionado a realizá-lo (e fê-lo tão bem que foi contemplado com o Prémio Jean Vigo, em Cannes). "Como não conseguia passar pela porta, fui pela janela", diz-nos Dumont, sobre a sua passagem da filosofia para o cinema.

Em 1999, Dumont dirige L'Humanité (Grande Prémio, Melhor Actor e Melhor Actriz no Festival de Cannes) sob o signo da última cena da sua estreia cinematográfica, girando em torno de um polícia que sofre por não se poder expressar e, mais tarde, em 2003, Twentynine Palms, projecto que, ao contrário dos filmes precedentes, escreve em apenas duas semanas e filma na Califórnia. Profundamente violento, implacável e por vezes gráfico nas suas imagens, Bruno Dumont foi considerado pelo jornalista James Quandt como uma das principais figuras do movimento do Novo Cinema Extremista Francês. Porém, ainda que Dumont considere que a violência é inevitável ao comportamento humano, devendo este ser "transformado pela cultura, pela civilização", revela-nos: "Não posso ter essa perspectiva; encontro-me no meio do que fiz e não na extremidade de qualquer coisa." Da mesma forma, rejeita as ligações do seu cinema com os de outros autores, como o de Robert Bresson ou de Ingmar Bergman. "Olho para mim sem saber exactamente por onde e por quem já passei. Todos somos formas acumuladas de cinema e somos, humildemente, o seu movimento perpétuo."

Após ter lançado Flandres no grande ecrã em 2006 (Grande Prémio no Festival de Cannes), Bruno Dumont regressa ao cinema em 2009 com Hadewijch, filme sobre a decadência de uma jovem católica devota que, após ter sido expulsa do convento, responde pelo nome da mística Hadewijch do século XIII ("foi ela que, através dos seus poemas e das suas visões, me deu a ver a forma mística do amor puro", diz Dumont) e vê a sua relação com Deus posta à prova quando trava amizade com um radical islâmico que a convence a preparar um atentado terrorista. "Hadewijch é mais uma tentativa de fazer tábua rasa às instituições religiosas e políticas - mostrando a sua violência intrínseca e a alienação dessa superstição - para uma demanda espiritual nova e laica", explica-nos o cineasta, face ao surgimento do seu filme num tempo em que a França de Sarkozy proibiu a utilização de burcas. "A crença em Deus e as religiões são para mim arcaísmos que deveriam estar fora do alcance da política. Mas a política actual é em si uma outra forma desse arcaísmo autoritário que deve ser ultrapassado", admite.

Empenhado em "explorar o seu mistério", Hadewijch é um filme que lida de forma muito particular com a fé, que o autor descrente considera ser "uma forma alienada de desenvolvimento espiritual do homem, um anel totalitário que contém nos seus germes o poder destrutivo de uma acção terrorista, a sua manifestação extrema".

No final, apesar da perdição, contemplamos uma ténue noção de esperança: "Hadewijch é testada e mostra o caminho espiritual: a única forma nova de amor humano, longe de Deus." Hors Satan, o seu novo filme, ainda sem data de estreia entre nós, é o seguimento de Hadewijch: "Face a um novo mundo longe de Deus, o combate contra Satanás."

Este artigo foi originalmente publicado no Diário de Notícias, no dia 11 de Junho de 2011.

sexta-feira, junho 10, 2011

Amanhã, com o Diário de Notícias

No dia depois do dia de Portugal, terei com o Diário de Notícias, no DN Gente, um artigo sobre Bruno Dumont escrito a partir de uma entrevista exclusiva com o realizador e a propósito do seu filme Hadewijch, e na Revista Notícias Sábado terei dois artigos publicados, um sobre uma forma nova e original de distribuição e outro sobre o novo filme de Jerzy Skolimowski, Matar para Viver.

quinta-feira, junho 09, 2011

Double Feature [2]: Cisne Negro e Caché - Nada a Esconder

O Double Feature é um espaço de opinião regular sobre dois DVDs lançados (ou reeditados) pelas distribuidoras portuguesas. O comentário que segue foi publicado no dia 4 de Junho de 2011, na revista Notícias Sábado integrante do Diário de Notícias e do Jornal de Notícias.

Cisne Negro, de Darren Aronofsky
Fox
★★★

Foi depois de Pi, do avassalador A Vida não é um Sonho e do fracasso de bilheteira de O Último Capítulo que Darren Aronofsky decidiu partir para um cinema voltado para as personagens, materializando os seus maiores conflitos na sua relação com o corpo. Cisne Negro é, por isso, uma continuação, felizmente mais interessante, do que o realizador fez com O Wrestler. Caminhando pelos trilhos do melodrama maniqueísta, que acaba por se esgotar ao fim do deslumbre que proporciona um primeiro visionamento, este thriller psico-sexual não deixa de ser um interessante exemplo da extraordinária capacidade de montagem de Aronofsky e de filmar a decadência das suas personagens. Vencedora do Óscar de melhor actriz, Natalie Portman apresenta-nos aqui o melhor papel da sua carreira.

Caché – Nada a Esconder, de Michael Haneke
Atalanta
★★★


A rigidez com que Michael Haneke, um dos autores actuais mais interessantes, filma esta obra-prima (que mereceu reedição em DVD) pode facilmente equiparar-se à de uma câmara de segurança. No entanto, o espectador adopta o terrífico (e activo) papel de vigilante ou, se quisermos ir mais perto da verdade, de espião. Baseado num documentário sobre o massacre de imigrantes da Algéria na França de 1961, acompanhamos uma família que começa a receber, em casa, cassetes de vídeo que mostram o protagonista a ser secretamente filmado e desenhos perturbantes e pessoais. Politicamente crítico, Haneke constrói uma pertinente reflexão sobre a sociedade ocidental contemporânea, observando a violência, a intolerância, a privacidade e a omnipresença da comunicação social.

À procura de Deus


Visto pelo realizador como “uma metáfora para o interior da alma”, Hedweijch, a quinta longa-metragem de Bruno Dumont que acaba de estrear entre nós, é uma autêntica resposta à alienação religiosa
Foi o jornalista James Quandt quem em 2004, na revista norte-americana ‘Artforum’, assinalou o surgimento de uma nova corrente cinematográfica perante a proliferação de filmes franceses com narrativas que aliassem a violência e a sexualidade gráficas, chamando-a de “The New French Extremism” (que podemos traduzir como Novo Cinema Extremista Francês). Dessa nova vaga, esteve como protagonista, para além de Gaspar Noé (‘Irreversível’, em 2002) ou Catherine Breillat (‘Romance’, em 1999), Bruno Dumont.

O realizador, que iniciou carreira leccionando Filosofia, estreia-se no cinema com 39 anos em 1997, com o controverso ‘La Vie de Jésus’ (galardoado com a Câmara de Ouro no Festival de Cannes), definindo de ora em diante a sua obra e visão. Inspirado pelo cinema de Pasolini, Rosselini e Bergman, realizou então mais três longas-metragens: ‘L’Humanité’, em 1999 (Grande Prémio, Melhor Actor e Actriz em Cannes); ‘Twentynine Palm’s, em 2003, e ‘Flandres’ (Grande Prémio), em 2006. Profundamente interessado nos conflitos interiores das suas personagens, Dumont ajudou a esbater a ténue fronteira entre a pornografia e o cinema de autor. No entanto, ao enquadrar o sexo, serve-se dele para demonstrar a animalidade das acções humanas e não o prazer que delas se pode extrair. O radicalismo do seu cinema, que se justifica em parte por um cruel realismo e minimalismo, é também resultante da ausência da expressão de sentimentos dos protagonistas, que os vivem intensamente dentro de si. É, por isso, um cinema de ideias sobre o vazio, voltado para dentro do indivíduo.

Na sua quinta longa-metragem, Dumont exacerba ao máximo o extremismo psicológico, debruçando-se sobre a fé. Inspirado em Hadewijch da Antuérpia (mística flamenga do século XIII), que serve de título para o filme e de nome que Céline, a protagonista, assume após ter sido expulsa do convento por causa do seu fanatismo, Dumont constrói uma jornada decadente que coloca à prova o seu amor por Deus. A partir do contacto com o mundo, o realizador observa, distante e cauteloso, Hadewijch, que trava amizade com um radical islâmico (que, à sua semelhança, acredita viver num mundo afastado do divino) e prepara um atentado terrorista.

É interessante como os olhos que filmam esta espécie de Joana d’Arc devota não são os mesmos de Dreyer. Bruno Dumont, ao contrário de si, é descrente e propõe-se a mostrar como a loucura leva Hadewijch à perdição. Em paralelo a ‘Twentynine Palms’, este é um filme que ganha um fôlego renovado nos últimos minutos, remendando pontas que foi livremente soltando ao longo da obra. Apesar de todo a violência e absurdo religiosos, parecemos descobrir, pela primeira vez, a esperança numa humanidade distante de Deus.

Este texto foi publicado originalmente no dia 4 de Junho de 2011 na revista Notícias Sábado do DN e JN.

quarta-feira, junho 08, 2011

Por que vamos ainda ao cinema?

Perguntei no Facebook, há pouco tempo atrás, a razão pela qual vamos ainda ao cinema. Com a multiplicidade de meios de consumo (entendam-se: os DVDs, os Blu-Ray, os alugueres e, por último mas certamente mais relevante, a pirataria, que se prontifica a “apresentar” os filmes mesmo antes da sua estreia entre nós), o simples acto de ter que abandonar o conforto e a privacidade da casa, de nos dirigirmos para uma sala de cinema e pagarmos quatro, cinco ou seis euros por cada bilhete tornou-se, de repente, questionável. Mais ainda se considerarmos a experiência de partilhar um visionamento ao lado de quem não mastigue silenciosamente ou de quem queira, ainda antes do filme acabado, comentá-lo logo com os pares.

A própria exibição, distribuição e produção têm estado sensíveis às preferências e atenção do espectador, entrando numa guerra muda contra o “home cinema”, apostando na ditadura da “comida para consumir no cinema” (pipocas, refrigerantes e afins), na promessa de novidade da tecnologia 3D (que, avaliando pela receita dos últimos filmes, tem dado frutos), e na promoção de filmes “familiares”, que levam ao cinema pais, filhos, amigos e namorados todos juntos.

Como pude prever, as respostas à pergunta na rede social variaram e justificaram-se, por um lado, pelo poder de imersão de um filme visto em sala. Em tempos, o próprio cinema clássico de Hollywood desempenhou o importante papel escapista para um público afectado pela Grande Depressão que, na sala escura, se alienava da sua realidade. Não obstante, há algo que vai além do deslumbre do grande ecrã e da qualidade de som e que justifica este comportamento. Ver um filme no cinema é, tal como também me puderam referir e o realizador iraniano Abbas Kiarostami demonstrou em “Shirin” (2008), participar numa experiência social – e é precisamente a esse tipo de congregação que o espectador não consegue escapar. Ver uma obra, sentindo-a ao lado de um anónimo, era já natural na época do teatro da Grécia Antiga. E lembro que o próprio cinema apenas nasceu no momento da sua projecção pública, em 1895.

Por isso, não há, perante a apregoada decadência das salas de cinema, qualquer razão para alarme. E parece-me que a cultura de pagarmos para vermos um filme no cinema desaparecerá apenas quando este também deixar de existir.

segunda-feira, junho 06, 2011

As bandas musicais [i]: Alice (2005)


O jornalista e crítico de música João Moço abre “As Bandas Musicais”, rubrica mensal em que um convidado escreverá sobre uma das suas bandas musicais de eleição. Muito obrigado ao autor por esta colaboração no blogue.
Em Portugal é raro a música para cinema chegar a ser editada em CD. Inexplicavelmente colocada no segundo plano de acção, quando tantas vezes tem um lugar fulcral para uma assimilação mais profunda daquilo que o realizador nos quer contar por imagens. A banda sonora de Alice, primeira longa-metragem de Marco Martins, foi uma excepção. Não só pelo facto da música que Bernardo Sassetti compôs para o filme ter ganho uma outra vida em CD, tornando-a uma força que vale por si só, mas principalmente pelo nível de excelência que aqui se ouve. Em movimentos circulares Bernardo Sassetti vai revelando ao piano a obsessão de um pai numa busca incessante pela filha, desaparecida numa Lisboa que se mostra desencantada, sofrida. Essa Lisboa envolve a música de Sassetti pela inclusão dos ambientes da sonoplastia do filme. O mesmo tema repete-se, encontrando novos olhares em diferentes variações harmónicas e movimentos musicais, como se víssemos este pai voltando obsessivamente aos mesmos lugares na esperança de encontrar algo que preencha o vazio da perda que sofre. Assim Bernardo Sassetti conseguiu criar uma música que consegue espelhar toda a angústia que atravessa o pai de Alice (interpretado no filme exemplarmente por Nuno Lopes). Não a vemos, mas Alice está sempre lá, numa voz perdida sugerida pelo clarinete de Rui Rosa, que se ouve entre os passos repetitivos (quase como um ritual) deste pai, representados no piano de Sassetti. É impossível pensar no filme de Marco Martins sem a música de Bernardo Sassetti. Quando isto acontece é porque estamos perante uma obra maior.

João Moço

domingo, junho 05, 2011

Chamaram-lhe o Sr. Hulot


Autor de uma obra inconfundível e um dos maiores nomes do cinema francês, Jacques Tati é recordado numa série de edições em DVD que apresentam as suas quatro primeiras longas-metragens
Não foi pelo cinema que primeiro se quis projectar ao público. Na verdade, o realizador, nascido como Jacques Tatischeff, perto de Paris, no dia 9 de Outubro de 1908, altura em que o cinema começava a estabelecer-se como uma nova ferramenta de entretenimento, apaixonou-se na adolescência pelo râguebi, praticando ainda ténis e boxe. Depois dos jogos, passava a sua energia para os balneários, que transformava em palcos para os seus espectáculos pantomímicos. Em meados dos anos 30, convencido do seu talento, o francês abandonou o desporto e seguiu carreira como mimo, acabando por ter sucesso pelas suas caricaturas às estrelas desportivas. O trabalho com o corpo, que caracteriza a vida profissional do cineasta, foi pela primeira vez registado em curtas-metragens como Oscar, champion de tennis, em 1932, ou Cuida do teu ganho esquerdo, em 1936 (filme que integra a nova edição em DVD de O Meu Tio).

Após ter prestado serviço militar na Segunda Guerra Mundial, Jacques Tati regressa em 1945 ao cinema, aparecendo em papéis secundários de dois filmes de Claude Autant-Lara (Sylvie et le Fantôme, em 1945, e Le Diable au Corps, em 46). Apenas depois decide aventurar-se na criação de um filme, em 1947, quando escreve, realiza e protagoniza a curta-metragem de 13 minutos A Escola dos Carteiros, uma homenagem às célebres figuras do cinema norte-americano Buster Keaton e Charlie Chaplin.

Satisfeito pelo sucesso com o público, Jacques Tati sente-se impelido a refazer o filme, transformando--o na sua primeira longa-metragem: Há Festa na Aldeia, que já apresenta o estilo da obra do cineasta e lhe valeu o prémio para melhor realizador no Festival de Veneza, em 1949. Apesar de o pai ter ficado desiludido por Tati não seguir o negócio profissional da família ligado ao restauro e emolduramento de quadros antigos (primeiro ofício em que trabalhou), podemos considerar o seu cinema como um alargamento desta actividade. O enquadramento expressivo e “arquitectado” dos seus filmes demonstra um tacto invulgar e uma composição visual inédita, que viria a tornar-se objecto de estudo no campo da teoria cinematográfica. Para além disso, passam a servir o laço temático que une todo o trabalho satírico do realizador francês: a frieza da tecnologia e a insensibilidade moderna. Dotado de uma narrativa praticamente ausente, aposta-se numa descrição das acções baseada na criação de contextos (o dia de festa; as férias do protagonista; a chegada do tio…) e, sobretudo, baseada no corpo e na sua movimentação, à semelhança da pantomima ou dos filmes mudos dos anos 20. Tati traça, além disto, uma espécie de microcosmos, isto é, de cenários, como a aldeia no seu primeiro filme, onde se deslocam as personagens. Aqui, o realizador preferiu dirigir actores não profissionais, extraindo deles diálogos mínimos, não raras vezes sobrepostos com outros sons que os interrompem, como se fizessem parte do ruído de fundo ou não tivessem qualquer significado para aquilo que Tati se propõe mostrar. Muito pelo contrário, o interesse pela utilização do som não é, contudo, negligenciado nas comédias do realizador. Em harmonia com a música que, curiosamente, contradiz muitas vezes o tom daquilo que é mostrado, o som amplifica o relevo dos detalhes manifestos nas imagens (sirvamo-nos, a título de exemplo, do som da porta do hotel que se impõe sobre tudo o resto em As Férias do Sr. Hulot).

Esta foi a sua segunda longa-metragem, que voltou a escrever, realizar e protagonizar em 1953. Bastaram-lhe quatro anos para que pudesse apresentar aquela que viria a tornar-se a sua figura mais icónica e que interpretaria até o fim da carreira em cinema. Chamou-lhe Sr. Hulot, o homem altíssimo e estouvado que levava sempre consigo o cachimbo que o caracterizava. Apesar do público reconhecer a partir desse filme Sr. Hulot como sinónimo de Jacques Tati, o cineasta (que, ao contrário da personagem, era perfeccionista e obcecado por concretizar as suas imagens idealizadas) não se mostrou satisfeito com a identificação efectuada, como comprovam os dois filmes seguintes que realiza, onde se mistura com as outras personagem sem se destacar.

Em 1958, o Sr. Hulot surge em O Meu Tio, terceira longa-metragem que vale a Tati o Prémio do Júri no Festival de Cannes e o Óscar de Melhor Filme Estrangeiro. Quase uma década depois, o cineasta volta com a sua personagem no seu projecto mais ambicioso: Playtime – Vida Moderna (1967). Esta obra-prima viria, no entanto, a destruir-lhe a carreira no cinema. A megalomania e estilo incompreensíveis para o grande público resultaram num fracasso de bilheteira e que o obrigou a pagar dívidas até a sua morte. Apesar das dificuldades financeiras, Jacques Tati cria ainda Trafic em 1971 e Parade em 74, que, contrariamente ao que desejava, nunca chega a estrear nas salas de cinema.

Jacques Tati morreu no dia 5 de Novembro de 1982, vítima de embolia pulmonar, quando, ainda que sentindo ter perdido a sua liberdade como artista, preparava o seu último filme, Confusion.

Redescobrir a magia de um ícone
Jacques Tati deixou por filmar O Mágico, um argumento comovente que o cineasta escreveu em forma de mensagem para a sua filha adolescente e que o realizador Sylvain Chomet (criador de Belleville Rendez-Vous) adaptou para o grande ecrã em 2010. Nomeado para o Óscar de Melhor Filme de Animação, Chomet homenageia toda a obra do francês, traçando a vida de um mágico de palco que anseia por trabalhar e proporcionar a Alice, uma rapariga que conhece na Escócia e que passa a acompanhá-lo, a melhor vida possível.

Há Festa na Aldeia (1949)
Nomeado para o Leão de Ouro, vencedor do prémio para Melhor Realizador no Festival de Veneza e recordado hoje como um dos primeiros filmes a cores (embora tenha sido, na altura do lançamento, mostrada uma versão a preto e branco), a estreia do cineasta nas longas-metragens situa-nos, como diz o título, numa aldeia francesa em dia de festa. Tati interpreta François, um simples carteiro que decide, depois de se ter embebedado e de ter sido troçado pelos habitantes que viram um deslumbrante filme sobre os correios eficientes dos EUA, entregar a correspondência da maneira mais rápida possível. Esta comédia, com gags que viriam a ser reproduzidos nos filmes procedentes, é já caracterizadora das ambições no estilo e nos temas do cinema deste autor.

As Férias do Sr. Hulot (1953)
A comédia que Tati realizou em 1953 serviu de estreia para a personagem que viria a interpretar toda a sua vida no cinema: o Sr. Hulot. Ouvimos, pela primeira vez, o seu nome quando, em altura de férias de Verão, faz o check-in no Hôtel de la Plage junto ao mar da Bretanha. Jacques Tati filma o seu alter-ego sem fazer grandes planos e denunciando a sua grande estatura. À semelhança do que faz com os outros, neste filme transforma a sua inaptidão social num meio para ridicularizar não o Sr. Hulot mas as pessoas “normais” que o rodeiam, com todas as suas respectivas manias e formas de comportamento. Divertido, episódico e com pouquíssimos diálogos, o realizador começa já a acentuar o poder do som no espectador, como é o caso da porta do hotel quando abre e fecha.

O Meu Tio (1958)
Esta terceira longa-metragem de Jacques Tati evidencia a sua clara intenção de mostrar a urgência de uma visão menos séria e tecnocrática da sociedade. O jovem Gérard, sobrinho do Sr. Hulot, protagoniza o pensamento idílico e infantil que contrasta com a casa futurista em que vive e que serve de principal cenário do filme. Este é um filme de contrastes: em paralelo com a obra posterior, vive tanto dos detalhes e da riqueza criada do universo mecanizado (no qual habitam os pais da criança), como também da completa inaptidão simples e ingénua característica da personagem de Tati. Este filme impressionante foi vencedor do Grande Prémio do Júri no Festival de Cannes em 1958 e do Óscar da Academia para Melhor Filme Estrangeiro no ano seguinte.

Playtime - Vida Moderna (1967)
A obra-prima de Jacques Tati, que lhe comprometeu a carreira como autor por não ter recebido a devida atenção do grande público, é um ambicioso quadro animado de uma sociedade perdida na tecnologia, na alienação, no anonimato e na perda de valores que o cineasta considera serem essenciais nas relações humanas e que no filme estão ausentes. Não é dado ao Sr. Hulot mais destaque que a quaisquer outras personagens presentes numa Paris futurista. Assustadoramente actual (talvez ainda mais agora que na altura da estreia) e crítico da imposição norte-americana na cultura ocidental (o título em inglês não é nenhum acaso), a composição estética singular de Playtime é resultante da concepção arquitectónica genial de todo o universo moderno imaginado pelo realizador.

Este artigo foi originalmente publicado no Diário de Notícias, no dia 4de Junho de 2011.

sábado, junho 04, 2011

Música com Cinema (1): Bob Dylan e James Blake

Porque os telediscos também podem ser uma força de expressão cinematográfica, inicia-se hoje, no blogue, a rubrica Música com Cinema, assinada pelo jornalista, crítico de música e um dos autores do sound+vision Nuno Galopim e por mim.

Subterranean Homesick Blues, de Bob Dylan
Realização: D.A. Pennebaker
1965


Muitas vezes apontado como o primeiro filme promocional musical da história (chamemos-lhe teledisco, para usar um termo que entre nós fez escola), o pequeno “clip” que acompanha Subterranean Homesick Blues nasceu, originalmente, para o cinema (em concreto para Don’t Look Back, o histórico documentário sobre Bob Dylan assinado por D. A. Pennebaker).

Numa pequena viela londrina vemos Bob Dylan num plano único. Nas mãos tem uma série de cartões nos quais vamos lendo palavras-chave do poema que faz a canção, o músico atirando-os para o lado à medida que a letra avança... Há gralhas e erros propositados, não representando estas palavras a tradução fiel de elementos que a voz canta. Os cartões foram, ao que parece, escritos à mão pelo próprio Dylan, com ajuda de, entre outros, Donovan e Allen Ginsberg, este último surgindo bem evidente no canto esquerdo da imagem, atravessando a rua nos segundos finais do pequeno filme. Em Don’t Look Back estas imagens surgem cruzadas com outras, pensadas sob lógica idêntica, mas captadas em outros lugares da mesma cidade. Isolado, este plano único tornar-se-ia naquele que acabaria reconhecido como o primeiro “teledisco” da história.

A força da ideia ganhou com os anos um estatuto de referência e conheceu inúmeras citações e revisitações em telediscos posteriores, entre os quais Misfit dos Curiosity Killed The Cat ou Scream and Run Away dos Gothic Archies (um dos projectos paralelos de Stephin Merritt dos Magnetic Fields).

O disco

Subterranean Homesick Blues foi o primeiro “êxito” de Bob Dylan no formato de single (facto que se mede por ter representado a sua primeira entrada nos 40 lugares mais altos do Hot 100 da revista Billboard). Originalmente lançado como single em Março de 1965, a canção surgiu depois no alinhamento do álbum Bring It All Back Home, do mesmo ano. Subterranean Homesick Blues corresponde a uma das primeiras composições “eléctricas” de Bob Dylan.

Nuno Galopim

Lindisfarne, de James Blake
Realização: Martin de Thurah
2011


Lindisfarne é o terceiro teledisco de James Blake (sendo que os dois anteriores são Limit to Your Love, realizado por Martin de Thurah que aqui regressa, e Wilhelms Scream, dirigido por Alexander Brown, autor do teledisco Umbrella Beach, de Owl City), uma das maiores revelações na música electrónica britânica deste ano. Acompanhando a estranheza proporcionada pela música (e a letra), de Thurah fala-nos da última noite que um grupo de amigos passa junto. Aproximando-se a partida da protagonista, o grupo resolve realizar uma espécie de ritual simbólico e no qual a rapariga se une com os companheiros. A figura do cantor aparece como um fantasma que observa, neutro, a cerimónia. Ritmando com as batidas da canção (que congrega as duas partes presentes no álbum James Blake), Lindisfarne é sobre o amor por uma irmandade e a privacidade secreta da amizade. Bizarro e profundamente intimista, Blake e de Thurah mostram aqui, a partir de uma bela e suave fotografia, o melhor que se consegue fazer nos telediscos contemporâneos.