terça-feira, maio 31, 2011

Até ao fim dos tempos








Sendo final do mês, é tempo para encerrar o destaque que, ao longo das últimas semanas, tem vindo preencher a agenda do blogue. Terrence Malick foi, através de diferentes pontos de vista e autores, analisado pela sua obra (quando quisermos recordar as publicações sobre o autor que rechearam o mês estaremos sempre à distância de um clique), antecipando o recém-estreado A Árvore da Vida, a sua quinta longa-metragem consagrada com a Palma de Ouro na 64ª edição do Festival de Cannes. Finalizada a sondagem sobre o melhor filme do cineasta, a preferência da maioria dos leitores vai para A Barreira Invisível (1998), que recolheu 28 votos, sendo que o segundo lugar ficou reservado a Noivos Sangrentos (1973) e a Dias do Paraíso (1978), que foram ambos seleccionados por 15 pessoas. Por último, O Novo Mundo (2005) foi votado por 11 pessoas e o recente A Árvore da Vida por 5. Obrigado a todos os que participaram.

Parece, após vermos The Tree of Life, devidamente sem ideias pré-concebidas, impor-se uma questão: como pode o espectador receber um meteorito metacinematográfico como este que se propõe a questionar toda a sua existência? Que efeito terá a obra-prima de Terrence Malick em si? Mais que uma outra aparição nesta forma de expressão, este é um raro filme, sem distinções de público, que ambiciona redefinir-se como objecto de cinema e, para além disso, redefinir quem o percepciona. Então voltemos: como receber este filme que, a partir do momento extraordinário em que o vemos – ou, se nos quisermos aproximar mais da experiência, sentimos –, entramos dentro de nós, recordando afectos, sensações e uma vaga e passada aproximação com o divino, e imaginando respostas para as questões que nos assolam (e permanecem, porventura, silenciadas pelo esquecimento ou o medo)? The Tree of Life, se nos propusermos a mudar os seus contextos e figuras, podia ser um sonho nosso – e Malick parece construir exactamente isso, o seu derradeiro devaneio, uma visão da transcendência e uma ode de proporções cósmicas ao sentirmo-nos vivos, ao amor (esse misterioso sentimento), à família e ao alcance do sagrado por via da comunhão com a Natureza. O terreno serve de ponte para o que realmente interessa: despertar-nos para uma mudança interior e fazer-nos parecer, ao mesmo tempo e de maneira visceral, pequenos e grandes. Os protagonistas são fantasmas que emergem de nós – à luz do filme, não existem referências quando se quer sentir a Vida em estado de graça. The Tree of Life, um dos mais misteriosos filmes do século, é, para além de um hino à humanidade, uma essencial obra sobre o Fim, percorrendo uma busca incansável pela compreensão da morte ou pela aceitação do seu mistério.

segunda-feira, maio 30, 2011

Rebeldes com uma causa

Após ter estreado entre nós Banksy - Pinta a Parede! no cinema, como podemos voltar a olhar a arte urbana que preenche as nossas ruas?

Aportuguesada de arte urbana, a art underground redefiniu, nas passadas décadas, as fronteiras e a subjectividade da expressão artística, colocando-a no limiar do vandalismo. Banksy, pseudónimo do célebre e misterioso artista de rua britânico, chega a Portugal lançando um documentário que, à semelhança do seu trabalho presente nas paredes de todo o mundo, é instintivo e carismático, embora impositivo e ilegal.

Porta-voz de todo um movimento libertário, Banksy prefere falar pouco de si. Surge na penumbra, impelido a manter o anonimato, provando que não é a auto-imagem a força motriz da projecção mediática. Ao contrário do que o autêntico protagonista deste filme acreditava ser (que é bem real e vingou na vida mostrando-se à população), Bansky é um verdadeiro fantasma. Espectro de uma geração inconformada, política e socialmente activa e subversiva, não olha a meios para expor a sua obra: para além de espalhar diversas pinturas e mensagens humorísticas em stencil (técnica de aplicação de uma figura através da pintura numa base recortada), substituiu em vários museus nova-iorquinos obras de arte expostas por outras adulteradas; grafitou nove partes do Muro da Cisjordânia; trocou, em 47 lojas de Inglaterra, os originais do álbum debutante de Paris Hilton por cópias falsas com outras músicas; pintou um elefante antes de o colocar dentro de uma exibição pública (aludindo à expressão inglesa “elephant in the room”, criando uma espécie de statement que significaria que a verdade está diante dos olhos de todos, ainda que seja ignorada); e expôs, ao lado de uma montanha russa da Disneyland em Califórnia, um boneco insuflável de um prisioneiro do Guantánamo. Criticando os problemas da contemporaneidade explorando uma ideologia anarquista, pacifista, anti-capitalista e absurda, assim se tratam os seus trabalhos: eficazes e provocantes, apesar de serem falíveis à passagem do tempo e ao desaparecimento. A luta pela presença e pela eternização parece ter-se consolidado, depois de uma aparição na televisão (em que idealizou a entrada e alguns cenários de um dos episódios da série The Simpsons), com o cinema: e é neste primeiro filme que Bansky, embora queira eternizar tudo aquilo que parecia destinado a permanecer na memória e no passado, traça a história de um homem que passa da sua obsessão por filmar tudo o que lhe rodeia (com vista a proteger a vida em cassetes com as quais a pudesse rever) para a arte de rua (marginal e provisória e que transforma as ruas em galerias de arte).

Banksy – Pinta a Parede! (ou, no seu original, Exit through the gift shop) não é, no entanto, uma longa-metragem sobre um dos mais famosos artistas de rua. Apesar de se colocar sob a sua influência omnipresente, vive à luz da história de vida de como Thierry Guetta, humilde imigrante francês, casado, pai e obcecado por registar toda a sua vida na câmara amadora que leva na mão, se transforma no famoso artista underground Mr. Brainwash, que termina no filme por fazer a capa do álbum Celebration, de Madonna. Numas férias de verão em França, Thierry descobre que o sobrinho é um reputado artista underground apelidado de Invader e que coloca, nas ruas, ilegalmente, mosaicos inspirados do videojogo Space Invaders. A partir deste episódio, percebemos que a vida de Thierry dá uma volta de 180 graus. Apoiando-se nos registos audiovisuais que o amigo foi captando desenfreadamente, Banksy propõe-se a dar a ver como um homem simples e sem ambições se transforma num activo realizador, em busca do ideal de um filme perfeito sobre a arte de rua e, depois, num criador de sucesso. É precisamente nessa camada que se mascara o documentário que seguimos do princípio: no acompanhamento do processo de construção de outra criação cinematográfica.

Trespassando, livremente, a barreira da realidade e da ficção, Exit through the gift shop se não fosse um filme estaria, certamente, pintado numa parede.

Este artigo foi originalmente publicado na revista Notícias Sábado que integra o Diário de Notícias e o Jornal de Notícias, no dia 28 de Maio de 2011.

domingo, maio 29, 2011

No princípio era a Imagem


Vencedor da Palma de Ouro, Terrence Malick é quase tão misterioso quanto o seu último filme, A Árvore da Vida, que acaba de estrear nas salas de cinema portuguesas

Ainda o Festival de Cannes não tinha dado a conhecer o cartaz da sua 64ª edição e já o público cinéfilo se rodeava da esperança de que A Árvore da Vida, a quinta longa-metragem do realizador norte-americano Terrence Malick, anunciada há quatro anos atrás, pudesse marcar presença naquela que é considerada a maior festa do cinema do mundo. Embora os detalhes do filme fossem, progressiva e cautelosamente, divulgados ano após ano, entre adiamentos consecutivos, o secretismo em torno desta obra manteve-se até a primeira projecção, originalmente prevista para se enquadrar na selecção de 2010 do mesmo festival. Apesar da disputa entre aplausos e apupos da crítica perante o mais ambicioso dos projectos do realizador quando finalmente ali foi exibido já este mês, o júri, presidido pelo actor Robert DeNiro, confirmou que este era realmente o ano de Malick, contemplando A Árvore da Vida com a Palma de Ouro, possivelmente o mais prestigiante dos prémios de cinema.

Consagrar o filme com o prémio máximo em Cannes ajudou a confirmar, de certa forma, a dimensão mítica que Terrence Malick inspira no seu público. Se quisermos incorrer em comparações, o norte-americano, que provém e se subleva numa indústria cinematográfica baseada ainda no chamado “star stystem”, afigura-se como o perfeito oposto de Jafar Pahani, realizador que, estando preso no Irão, e portanto impedido pelas autoridades de sair do seu país, apresentou em Cannes um filme (fora de competição) sobre si mesmo. Podemos assim, em oposição, considerar Malick como um realizador igualmente recluso, porém dentro do seu próprio universo, negando continuadamente a exposição mediática da sua imagem pública. Recusando ceder veementemente a qualquer tipo de entrevistas, aparições públicas, fotografias ou trabalhos biográficos, foi sem surpresa que, quando anunciada a Palma de Ouro, não tenhamos visto sequer a sombra de Malick, como já acontecera, para grande frustração dos jornalistas, na conferência de imprensa que se seguiu ao visionamento do filme em Cannes. “Ele até vai à casa-de-banho”, certificou, jocoso, o actor Brad Pitt, quando confrontado pelo interesse da comunicação social presente no festival sobre a personalidade do realizador.

A existência de um eremita como Terrence Malick é um caso singular, mais raro ainda nestes tempos que correm de profunda curiosidade e projecção de uma imagem pública que justifique o trabalho apresentado. A decepção de parte do público e da crítica, perante um filme que Malick não pretende discutir, mas “que o público o receba como um poema e que cada um possa interpretá-lo como quiser” (segundo as palavras do produtor Bill Pohlad), advém da falsa crença, cada vez mais robustecida pelos media, de que tem que existir uma justificação do autor sobre aquilo que cria. Porém, se face às suas intenções dermos tempo para reflectir sobre a sua atitude “tímida”, concluímos que a interacção com o espectador está ainda mais presente que um filme cujo conteúdo seja triturado pelo seu realizador. E, de qualquer das maneiras, um cineasta não saberá falar de outra coisa do que de si próprio e das questões interiores e temas que o assolam e seduzem.

Malick é um pródigo perfeccionista tendo, com 67 anos de idade e mais de 35 anos de carreira no cinema, realizado apenas cinco filmes. Nascido a 30 de Novembro de 1943, viu no Texas um mundo de amadurecimento e descoberta (e que filma na sua obra recente), região onde cresceu concluindo estudos numa escola eclesiástica privada. Estudou, com excelentes resultados, Filosofia na Universidade de Harvard, traduziu Heidegger e foi professor universitário de Filosofia enquanto escrevia para jornais como freelancer. Estudando cinema em Los Angeles, realizou em 1973 Noivos Sangrentos, um primeiro filme, após ter escrito e coordenado vários argumentos. Na verdade tinha já assinado um primeiro filme antes deste que hoje se aponta como sendo a sua estreia. Ainda como estudante realiza, escreve, compõe e representa Lanton Mills, um western de 17 minutos que hoje apenas pode ser consultado, pessoalmente, nas instalações da escola. Noivos Sangrentos recebeu uma atenção incomum da crítica, que esperou ansiosamente, em 1978, por Dias do Paraíso, com Richard Gere que consolidou Malick como um autor raro no panorama do cinema dos EUA de então. Para chegar à Árvore da Vida, Malick escapou da indústria para desenvolver “Q”, um projecto que apresentasse as origens do universo. A ambição não ficou adormecida: passados vinte anos, o mundo voltou a ver Malick em A Barreira Invisível, filme anti-guerra com inúmeras estrelas de Hollywood nomeado para sete Óscares da Academia e com sensibilidade para a relação do homem com a natureza. O tom contemplativo é explorado em 2005, quando lança O Novo Mundo, inspirado na vida da princesa índia Pocahontas. Nos intervalos entre os filmes que realizou dedicou muito do seu tempo a outros espaços no mundo do cinema, ora escrevendo argumentos, ora trabalhando como produtor.

É com os filmes e a sua sensibilidade que Terrence Malick perigosamente se expõe a um mundo faminto pela invasão de privacidade. Mas, como Brad Pitt declarou, “este filme é universal” e “espera comover todas as culturas”. O enigma da vida do realizador parecerá infinitamente pequeno se nos conseguirmos confrontar, na Palma de Ouro de 2011, com o derradeiro mistério da nossa própria existência.

Noivos Sangrentos
Estreia de Terrence Malick no cinema, esta é a história verídica de Charles Starkweather (Kit, interpretado por Martin Sheen) e Caril Fugate (Holly, interpretada por Sissy Spacek), um casal improvável que é perseguido por ter assassinado dez pessoas. O tom ingénuo da narração, assistido pelos temas musicais de Carl Orff ou Erik Satie, desenha os protagonistas de forma lírica e trágica, situando-os em planos preferencialmente gerais de um fantasmagórico midwest. Não obstante a brutalidade dos actos, Malick contempla, calmo e distanciado, a decadência do destino de ambos de forma calma, salientando a inocência presente na paixão que os une e que demonstra ser o motor de condução do filme. Um dos momentos maiores do cinema norte-americano dos anos 70.

Dias do Paraíso
Vencedor do prémio de melhor realizador no Festival de Cannes e do Óscar de melhor fotografia, o cineasta consegue, com este segundo filme, um extraordinário feito estético. Debruçando-se sobre um triângulo amoroso e os sentimentos nutridos pelas personagens representadas por Richard Gere e Brooke Adams, Malick evidencia o gosto pela economia de diálogos e a valorização da acção do homem entre os campos onde trabalha. A obra, que também demonstra as primeiras ideias políticas de Malick, relacionadas com a condição precária do proletário, é essencialmente bela e comovente. Para além da fotografia (chegou a despedir-se dois directores de fotografia para se conseguir o efeito idealizado), Ennio Morricone mostra-se como a última peça chave para a experiência sensorial que Dias do Paraíso proporciona.

A Barreira Invisível
Depois de um longo hiato, Terrence Malick regressa vinte anos depois do último filme para adaptar o romance de James Jones e realizar um dos melhores filmes de guerra alguma vez feitos, vencedor do Urso de Ouro em Berlim e sete nomeações para os Óscares da Academia. Comandando um elenco repleto de estrelas (Sean Penn, Adrien Brody, Jared Leto, John Travolta, George Clooney, entre outros), o cineasta, pela primeira vez torna mais evidente o seu interesse e paixão pelo valor da vida, o peso da morte e a relação espiritual com a natureza. Simultaneamente horrível, realista e poético, esta é a jornada de um grupo de soldados que, em pleno Pacífico, na II Guerra Mundial, enfrenta o inferno que é construído pelas suas próprias mãos.

O Novo Mundo
Baseado na história de vida da princesa índia Pocahontas, Terrence Malick regressa em 2005 ao cinema com Colin Farrel, Christian Bale e Q'orianka Kilcher, santificando, como nunca antes o fizera, a natureza, um dos principais motivos do seu cinema (simbolizado nos planos que filma da água, das árvores e do sol). Contemplativo e panteísta, este é também um dos mais silenciosos dos filmes do realizador, que coloca o amor pelo outro como o sentimento mais elevado do ser humano. Apesar de mal recebido pela crítica, este filme é dotado de uma beleza repleta de harmonia e de uma sensação, incomum no universo da indústria cinematográfica, de paz. Sentir O Novo Mundo é, em boa verdade, redescobrir, ao som de Wagner, o mundo em que vivemos e questionar a nossa concentração pelo material e o artifício.

A Árvore da Vida
A quinta longa-metragem de Terrence Malick é uma viagem interior e onírica carregada de angústia e nostalgia de Jack (Sean Penn) à sua infância perdida, passada nos anos 50 no Texas com o pai (Brad Pitt), a mãe (Jessica Chastain) e os dois irmãos mais novos. Construído como se de uma sinfonia tratasse, o filme explora, muito para além dos conflitos que o protagonista tem com o pai e o irmão, as questões fundamentais do ser humano. Para isso, Malick constrói uma ode à vida, elevando-a como um milagre e valor absolutos e demonstrando uma visão da origem do mundo sem precedentes. Longe de ser uma simples experiência de cinema, A Árvore da Vida propõe-se a redescobrir o cinema como um meio de contacto com o sagrado. São imagens conjugadas que, ao mesmo tempo, são capazes de questionar por que existimos e de responder transcendendo o nível da razão. Dotada de uma técnica e de uma banda musical sublimes, esta é uma obra-prima singular na História do cinema, cuja ambição se posiciona, certamente, ao nível de um “2001: Odisseia no Espaço”, de Stanley Kubrick.

Este artigo foi originalmente publicado no Diário de Notícias, no dia 28 de Maio de 2011.

sábado, maio 28, 2011

A dúvida e a incerteza em Malick: uma observação

Com o mês de Terrence Malick n'O Sétimo Continente a chegar ao fim publico hoje uma reflexão pessoal sobre a sua obra, escrita por Rúben Gonçalves. Um muito obrigado por esta colaboração.
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Power dwells apart in its tranquility,
Remote, serene and inaccessible,
And this the naked countenance of earth
On which I gaze, even these primeval mountains,
Teach the adverting mind.

Percy Bysshe Shelley
Conheci Malick numa altura em que não fazia ideia do que era o cinema. Já se passaram anos desde que vi pela primeira vez “The New World”, e, embora me seja difícil descrever a impressão que o filme me suscitou logo depois dos créditos finais, tenho a certeza de a experimentar, renovada, sempre que o revejo. Não me preocupo muito em tentar precisar no que consiste essa impressão, mas o hábito – e a visualização de obras de semelhante calibre – mostrou-me aos poucos que é ela o meu único critério para avaliar um filme, ou o que dele em mim ecoa: esses momentos imediatamente a seguir à última imagem e ao último som, em que me sinto como que renascido, ridiculamente omnipotente e desperto – a grandeza deixa-me sempre assim. E, com a suspeita de me ter sido revelada uma qualquer verdade que, embora oculta até aí, de alguma forma sempre existiu em mim – como todas as verdades merecedoras do nosso esforço de as descobrirmos –, desligo a televisão (só o “Tree of Life” tive oportunidade de ver em grande ecrã) e despeço-me da vida, pois que é ela senão esses breves contactos com a beleza?

Ora, não se pode falar deste realizador sem se mencionar aquilo que parece ser o tema de onde partem todos os seus filmes, e sobre o qual cada um oferece novas perspectivas: a relação que o homem – o soldado solitário, o forasteiro a descobrir o que aparenta ser o paraíso perdido, o amante em fuga – estabelece com a natureza. As suas personagens são constantemente atormentadas por um desejo de evasão, uma necessidade de se refugiarem daquilo que provoca a manifestação das suas facetas malignas, a busca pela redenção através da familiarização com a natureza, com as origens, que coincide, por vezes, com a promessa de um novo começo. A catarse – ou a possibilidade dela – reside em Malick na paisagem, no confronto com os elementos que universalmente constituem todos os seres, as leis que tudo regem, confronto esse que resulta, não raramente, na negação das ilusões que as personagens vinham acalentando e consequente constatação de que a verdade é afinal aquilo de que eles procuravam fugir. Tal acontece em “Days Of Heaven”, em que o retiro da cidade, da civilização – embora não por completo, como vemos, por exemplo, em “Badlands” – não mitiga os impulsos homicidas do protagonista vivido por Richard Gere, envolvendo-o, em vez disso, numa intriga de mentiras que culmina em morte, aquilo que precisamente desencadeara a sua partida para o campo, ou em “The New World”, em que a condição como que virginal das terras onde chegam os marinheiros parece encerrar augúrios de felicidade e abundância, que a acção do homem, por si só, se apressa contudo em contrariar, a natureza surgindo assim como um estado primitivo – a mãe de todas as coisas – que a presença do homem invariavelmente perturba, ou, antes, que reflecte aquilo de que ela mesma se compõe, pois, admitindo, como em “The Thin Red Line”, a guerra como parte integrante dos fenómenos ocorridos na natureza, a aceitando-a como indispensável para manter a ordem estabelecida das coisas, onde a luta pela sobrevivência ocupa um dos primeiros lugares – senão mesmo o primeiro, juntamente com a conservação da espécie – e a morte surge como condição necessária para a vida, para a regeneração, rejeita-se a concepção de Rousseau segundo a qual a bondade, inerente à condição humana, é corrompida pela vida em sociedade. O homem aparece, então, como manifestação última, como voz, da natureza, e a sua busca pela recuperação dos laços que a ela o unem revela-lhe uma certeza apenas – a existência inegável do caos –, a aceitação dela revelando-se a maior aprendizagem que as personagens podem colher dessa busca.

A propósito de Malick utilizam-se muitas vezes os adjectivos “lírico” ou “poético”, e se tal se deve, sem dúvida, à forma particular com que ele filma a paisagem, tal descrição decorrerá também do recurso à metáfora como figura de estilo por excelência na construção do sentido. Lembremo-nos, por exemplo, do momento em que um dinossauro ataca outro, já caído, mas que não chega a matar, em “The Tree of Life”, e como esse gesto materializa a relação de poder e subordinação que o pai estabelece com os seus três filhos; ou os planos dos animais nas searas, em “Days Of Heaven”, como lembrança de que a recolha do trigo para garantir o alimento do homem representa igualmente a destruição de um habitat.

A metáfora está presente, de resto, nos muitos voice-overs que acompanham as suas obras, e que, nunca parecendo pleonásticos, acrescentam outras camadas àquilo que vemos, conferindo uma outra ambiência ao filme através do carácter quase sinfónico que reveste estes diálogos que as personagens, deslocadas do universo material, vão mantendo entre si, nestas momentâneas manifestações de consciência num plano dir-se-ia abstracto, o do pensamento.

E, claro, o amor. Poder-se-ia dizer que todas as histórias são histórias de amor, na medida em que testemunham essa entrega e esforço de perseverança que estão sempre implicadas na sua concepção, e em Malick não é diferente. Seria legítimo, porém, afirmar que é o amor aquilo que motiva as personagens nas suas acções? Provavelmente não será assim tão linear, mas, observando de perto, não é difícil perceber qual o lugar que tal sentimento ocupa na vida dos seus protagonistas – é o amor, afinal, que impele a personagem do Brad Pitt em “The Tree of Life” a submeter os filhos a uma educação tão rígida e intransigente, pois será isso que os conduzirá, a seu ver, ao caminho do bem (ele personificando, juntamente com a figura materna vivida por Jessica Chastain, essa dualidade entre a via da natureza e a via da graça que está na base da história); é o amor, também, que permite ao soldado interpretado por Ben Chaplin em “The Thin Red Line” enfrentar os pesadelos e os horrores da guerra, vivido sob a forma de uma correspondência que, antevendo um reencontro no futuro, torna suportável um presente de distância; e que é senão o amor que possibilita à Pocahontas do “The New World” enfrentar o desconhecido, pondo em causa a protecção que lhe garante a sua tribo, e alcançar depois a maturidade emocional com a experiência da maternidade? Em “Badlands”, no meio de toda a alienação em que as personagens principais gradualmente mergulham, parece, de igual forma, ser o amor que os une a sua única certeza.

Enfim, como se posiciona Malick em relação a tudo isto? Antes de tentar impor ideologias, questiona-se. Contempla. Sabe que o julgamento é inimigo de todo o retrato do ser humano que se queira fidedigno e, por isso, observa. Não pode fazer mais do que exteriorizar as suas dúvidas e, assim, tentar dissipá-las para si; quanto a nós, é através da sua dúvidas que nos permitimos duvidar, e esse será porventura o primeiro passo do caminho para o qual a sua filmografia nos aponta, um caminho em que a dúvida é condição indispensável e a ausência de certezas absolutas uma realidade inevitável – e não é esse, em suma, o caminho da vida?

Rúben Gonçalves

sexta-feira, maio 27, 2011

Jaime - entre a poesia e a loucura



António Ferreira Gonçalves dos Reis foi um realizador português. Nascido a 27 de Agosto de 1927, em Vila Nova de Gaia (na freguesia de Valadares), foi um auto-didacta no que diz respeito às Belas Artes. Nos anos 60, começou a exercer o cineclubismo (na Cinemateca do Porto), e a produção cinematográfica (em 1962 é assistente de realização de Manoel de Oliveira, com o filme O Acto da Primavera).

Após ter feito dois documentários e passado pela poesia e literatura, António Reis realiza o primeiro filme, objecto de estudo neste trabalho: «Jaime», que viria a estrear em 1974. Apoiado pelo Centro Português de Cinema, o realizador português colabora pela primeira vez com a sua mulher, Margarida Martins Cordeiro , figura que estará doravante mais presente na sua obra. No genérico, surge como assiste de som e montadora – dois aspectos fundamentais para compreendermos a obra ímpar que é «Jaime».

Jaime Fernandes, que cede o primeiro nome para título do filme que é feito posteriormente à sua morte, nasceu em Barco (Beira Baixo), foi beirão e trabalhador rural, passando, ainda, pela pintura e desenho. Aos 38 anos de idade, foi internado durante mais de três décadas no Hospital Miguel Bombarda por ser esquizofrénico-paranóico. Bastaram cinco anos para considerarem o pobre camponês um génio, logo após especialistas em artes plásticas analisarem toda a sua obra.

António Reis descobriu, aparentemente por um acaso, em 1971 (passavam dois anos da morte de Jaime Fernandes), um desenho da sua autoria num gabinete clínico do Hospital e partiu à investigação. Reuniu mais cem desenhos do autor e propôs um documentário que se propusesse a retratar a sua existência. Podemos, porém, dificilmente entender este filme na categoria de documentário. «Não conheci o Jaime e no decurso de todas as investigações que fiz, ele escapou-me sempre», confessa o realizador.

Apesar disto, o filme, quando estreado e lançado em festivais de cinema, foi deveras aclamado, posicionando-o como um dos maiores exemplos do Novo Cinema Português. Venceu inclusive diversos prémios. Entre eles contam-se o Prémio Melhor Filme de Curta Metragem no Festival Locarno, o Grande Prémio à Curta Metragem no Festival de Toulon, ou o Prémio Melhor Filme, no Festival Méridiens, em França, marcando ainda presença na Grécia ou Edimburgo. Financiado pela Fundação Gulbenkian e pela Telecine Moro, o filme, de 35 mm a cores, tem a duração aproximada de 40 minutos. Trespassando as barreiras do documentário e mesmo da ficção, António Reis faz questão de assinalar que «Também não é um filme de artes plásticas. É o Jaime, um homem preso entre a memória e a imaginação, livre, apesar de prisioneiro da doença...».

Como devemos entender, portanto, esta obra cinematográfica de excepcional importância? Se fugirmos à facilidade de incorrermos à categorização em género, como devemos pensar «Jaime», o filme, como devemos entendê-lo à luz do seu criador, António Reis, e do protagonista, o Jaime ele mesmo? É a esta questão que me proponho reflectir de seguida na continuidade deste texto, apoiando-me na obra de Jaime Fernandes, as opiniões de António Reis sobre o mesmo e, evidentemente, nas minhas próprias considerações pessoais sobre a média-metragem, intercalando-as com as de dois autores sobre a arte em geral: Charles Baudelaire e Paul Klee.


Antes de mais, o filme «Jaime» inicia-se e encerra-se com fotografias de Jaime Fernandes. Esta é uma obra sobre um artista. Tal como a mulher do realizador (assistente de realização aqui) afirma na monografia do Cineclube de Faro em 1997: «Não pudemos falar do homem, fizemos um filme à volta do Jaime e daquilo que ele tinha deixado. (...) não podendo abordar o homem, não podendo abordar médicos ou enfermeiros que dessem um testemunho válido, nós utilizámos o material que ele deixou, os lugares onde ele viveu e um pouco a família (a esposa) e o Rio Zêzere. E fizemos uma coisa o mais honesta possível, sem estar a “puxar” pela análise psiquiátrica. Foi o respeito pelo doente, pela pessoa. Um respeito por um artista.» Por esta declaração, surgem-me duas ideias em pensamento. A primeira delas: a visão do criador sobre a existência de Jaime faz-se pelo seu trabalho porquanto o vê, sobre tudo o resto, como um artista. E isto reforça a segunda ideia a ser reflectida: António Reis parece adoptar a postura humilde, porventura envergonhada ou zeladora pela privacidade, de Jaime Fernandes (a fim de evitar um qualquer «abuso» de invasão da sua privacidade), de querer fugir de si mesmo como artista, como intérprete ou como figura autoral omnipresente que um realizador, nesta vaga cinematográfica contemporânea, deveria metaforizar.

É curioso perceber, no entanto que, caso tenha sido esta a tentativa de António Reis (a de não se mostrar ele mesmo como artista, mas expor exclusivamente a figura mítica de Jaime), foi então um esforço infrutífero. Isto na medida em que António Reis não se consegue dar a esconder: para perceber quem é Jaime, fá-lo através dos seus desenhos e olha o mundo na perspectiva alucinada e genial deles. Dito de outro modo, para perceber quem foi Jaime, Reis junta-se a ele fundindo-se como uma verdadeira metamorfose. O cineasta olha os olhos de um louco e olha o mundo com os olhos de um louco: porque aquele estilo, em termos de imagem, som e montagem, denuncia uma simbólica adequação da forma com a mente do artista-Jaime, denunciando que o realizador entra e está nele, Jaime e António como se fossem um só. A arte presente neste filme é, por isso, dupla: há, numa primeira camada, a sensibilidade presente nos trabalhos pictóricos do internado, apresentando Jaime como um artista; numa segunda camada, há a visão de António Reis sobre essa pessoa, tão original que o posiciona como autor.


Invisíveis ao espectador, ambos parecem experimentar a vida ao mesmo tempo: Jaime como um espectro presente no trabalho e nas deambulações imagéticas do realizador; e António como sombra de Jaime, querendo (sobre)viver, olhar e sentir de acordo com as suas normas (ou a sua própria inexistência…). Podemos, pois, entender «Jaime», antes de qualquer outra coisa, como uma experiência. Se pudermos pedir emprestadas as palavras da realizadora Agnés Varda, «nesta respiga de imagens, de impressões, de emoções não há legislação. Em sentido figurado, respigar é uma actividade mental. Respigar factos, respigar actos, respigar informação. Para mim, que tenho uma memória fraca, são as coisas que recolho que resumem as viagens que faço». Ajustando a «Jaime», podemos dizer que há uma “respiga” de impressões (por parte do realizador) que definem parte da existência e obra artística de Jaime Fernandes e que remodelam a do próprio Reis.

Sem fugir a esta ideia de fusão autoral, recordemos Charles Baudelaire que, por sua vez, nos apresenta o Sr. G. «Para dizer a verdade, desenhava como um bárbaro, como uma criança (…)». Enquanto, com o Sr. G., senhor que não assinava as suas criações, realizando-as compulsiva e obcecadamente, uma atrás de outro (à semelhança do protagonista deste filme), Jaime, ao contrário dele, manteve-se num estado dir-se-ia quase “primitivo”. Portanto, podemos para já dizer que Sr. G. é igual a Jaime na ausência de correspondência de uma assinatura que designasse que era o autor da obra, mas, no entanto, Sr. G. é diferente no sentido em que, ainda que tenha descoberto «por si mesmo todos os pequenos truques do ofício», teve uma evolução no campo da criação, ao contrário de Jaime, que, identificando-se com um exclusivo arquétipo, permanece no mesmo registo de desenho. Vítima da esquizofrenia, desordem do foro psicológico que lhe afecta regiões do cérebro que impediam a progressão nesse campo, Reis é como um artista parado no tempo, uma criança eterna.


Isto remete-nos para as considerações de Charles Baudelaire sobre a experiência do mundo do ponto vista, primeiro, do Sr. G., e depois das crianças. Sr. G. era aquilo que Baudelaire considerava ser o «homem do mundo». Como escreve o autor: «Ele interessa-se pelo mundo inteiro; quer (…) apreciar tudo o que se passa na superfície do nosso esferóide». De certa maneira, podemos considerar Jaime Fernandes como uma espécie diferente de «homem do mundo». É um homem do seu mundo. Isto na medida em que está parado num estádio da sua existência, recordando, com fresca impressão, o seu trabalho no campo e os animais. Para demonstrá-lo, Jaime funde-se, como António ao artista, com o seu gado. A identificação de si como animal configura-o como uma espécie nova estranha à nossa experiência de vida: daí que os seus trabalhos pictóricos nos sejam tão sedutores mas horríveis, ao mesmo tempo. Se considerarmos os seus desenhos ainda, passemos à concepção de Baudelaire da experiência do mundo por uma criança. A sua percepção é uma «percepção aguda, mágica à força de ingenuidade» tal como a de Jaime sobre o seu passado.

Esta percepção infantil e deslumbrada do mundo transparece na vitalidade da forma. Apenas se distingue no sentido em que a forma é intransigente, isto é, não permite mudança e é sempre a mesma. Como uma percepção infantil congelada. Mas Jaime Fernandes parece ter uma perfeita noção do espaço que ocupa, seja em papel ou em acetato que desenhe. Como se disse, há um arquétipo só dele e que é seguido. Dá um efeito de estranheza e curiosidade que António Reis soube adequar bem.

E assim passamos para a forma do filme «Jaime» e não apenas dos desenhos do internado. António Reis, em termos de imagem, quis demonstrar como a arte é um ofício reservado à solidão pessoal. Mostra-nos apresentando uma série de palavras escritas por Jaime, registos do hospital, deambulações e locais vazios.


Para agravar o efeito de estranheza, o realizador, a nível do som, escolhe várias composições de forma inédita, mas eficaz. Por exemplo, as imagens do exterior do Miguel Bombarda e da Beira Baixa onde Jaime viveu são acompanhados pelo compositor alemão barroco Georg Philip Telemann, cuja espontaneidade é análoga à água que vemos. Podemos, com justiça, afirmar que este é um tipo de junção poética – isto no sentido em que se quer mostrar uma união mágica, panteísta e harmoniosa entre o homem e a natureza, o humano e o não-humano. Precisamente como Jaime nos seus desenhos se juntava aos animais. A vida, a descoberta e o devir associam-se à mutação da natureza. Esta ideia poética distingue-se de outras junções musicais presentes no filme.

Quando entramos no hospital ou na obra de Jaime, reagimos com as sensações de surpresa e sufoco porque António Reis, na montagem, quis adequar o espectador àquele espaço mental desordenado. Assim sendo, introduz-nos às intermitências musicais de Stockhausen, que nos afunda num universo situado entre a loucura e a poesia, como a arte de Jaime.

O tríptico musical termina com a versão de Louis Armstrong da canção «St. James Infirmary». Os sons “jazzisticos” correspondem, mais uma vez, à desordem da existência invisível do camponês-artista. Para além do mais, a canção fala-nos da grave proximidade da morte e do fim, como que encerrando e homenageando essa vida que foi. A associação poética de António Reis é de uma originalidade que lhe pertence apenas a ele.

Para percebermos como pode isto funcionar ao contrário, podemos remeter para as associações entre a pintura e a música na obra de Paul Klee: nela, encontramos a ordem absoluta da música nas pinturas do autor, “aprisionada” no desenho estático.

oltando ao ponto essencial, António Reis e Jaime Fernandes são em «Jaime» uma força criadora dissolvida, combinada, una e invisível. O realizador, ao entrar, ao enquadrar os desenhos de Jaime, não está a reproduzir o visível, tal como também não está o internado. Ambos tornam visível.

É talvez por isso que o impacto deste filme surja ao nível dos sentidos do espectador. É uma obra de arte poética sem precedentes e que reforça a crença de que a arte não escolhe inteligências nem tem fronteiras.

Bibliografia
1. António Reis e Margarida Cordeiro – A Poesia da Terra, propriedade do Cineclube de Faro e com colaborações de vários autores.
2. A Arte, de France Farago – Porto Editora.
3. O Pintor da Vida Moderna, de Charles Baudelaire – Vega.
4. Jaime - entre o documento e a invenção poética, análise de Ana Isabel Soares da Universidade do Algarve.
Filmografia
1. Jaime, de António Reis
Webgrafia
2. Blogue “ANTÓNIO REIS” - http://www.antonioreis.blogspot.com/

quinta-feira, maio 26, 2011

A caminho da obra total


Nuno Galopim, jornalista, crítico de música e um dos autores do blogue sound+vision, escreve hoje sobre a música no cinema de Terrence Malick, num percurso desde Badlands até ao novo Tree of Life, que hoje estreia nas salas de cinema portuguesas. Os meus maiores agradecimentos por esta participação.
Foi Richard Wagner quem explicou a sua ópera como representando um patamar que designou como gesamtkunstwerk. Por outras palavras, a obra de arte conjunta e total, à música aliando a palavra escrita, o canto, o teatro, as artes plásticas, a dança... Procurássemos no cinema manifestações de semelhante dimensão (não no campeonato do auto-elogio, mas do feito artístico de quem procura uma experiência igualmente capaz de abarcar todo um mundo de artes e sensações), seria na obra de Stanley Kubrick que, à partida, poderíamos encontrar manifestações que, sem favor, responderiam ao desafio da comparação. Talvez n’A Laranja Mecânica (de 1971), que partia das visões de Anthony Burgess rumo ao olhar de Kubrick, ganhando corpo pelo trabalho ímpar assinado por Walter (hoje Wendy) Carlos na hora de compor música original ou de manipular, pelas emergentes ferramentas electrónicas obras de Mozart, Rossini ou Grieg... Mais ainda que neste exemplo, o ser maior que é 2001: Odisseia No Espaço, de 1968, é certamente um dos filmes que mais de perto pode traduzir, no espaço do cinema, a noção de obra total que Wagner procurara na ópera. Inicialmente pensado para acolher uma partitura inédita de Alex North (que chegou a ser gravada, o compositor ignorando que, no fim, o seu trabalho acabaria fora, tal e qual tantos metros de filme caem na sala de montagem), 2001 acabou antes por respirar a música de Richard e Johann Strauss ou de Ligeti, da relação entre som, imagem e toda uma agenda de intenções para lá das fronteiras de cada uma das artes convocadas ao filme nascendo um caso maior, senão mesmo um paradigma de referencia, na história da relação entre a imagem em movimento e a música.

Não são raras as vezes em que o cinema de Terrence Malick acolhe “comparações” ou a nomeação de jogos de referência com o de Stanley Kubrick. E se há espaço onde essas afinidades de facto se manifestam ele é aquele em que vemos como a música, em ambos, se manifesta como experiência de absoluto protagonismo na construção da sua ideia de “obra total”.

Tal como em Kubrick, uma das características mais marcantes na forma de Malick convocar música ao seu cinema ganha forma no modo como soma à “banda sonora original” criada expressamente para o filme em questão, excertos de gravações de outras obras, na sua maioria exemplos (uns mais célebres, outros menos divulgados) da grande tradição erudita europeia (que, para simplificar, muitas vezes acaba simplesmente referida como “clássica”, na verdade nem toda o sendo num senso estrito...).



Um primeiro exemplo podemos encontrar desde logo em Baldlands (entre nós estreado como Noivos Sangrentos), de 1973. Com partitura original a cargo de George Tipton (nome com mais trabalho reconhecido na televisão que no cinema, trabalhando em sit-coms como All In The Family, Love Boat ou Golden Girls), e a presença ocasional de gravações de música de Eric Satie, James Taylor ou Nat King Cole, a imagem sonora mais marcante de Baldands chega ao som de Gassenhauer nach Hans Neusiedler, de Carl Orff, composição que integrava na origem um dos programas educacionais criados pelo compositor alemão que o mundo teima em não reconhecer além da marcante (mas não peça de interesse único na sua obra) Carmina Burana.



Nova incursão pelos clássicos chega em 1978 em Dias de Paraíso (Days Of Heaven) quando, em paralelo com a música inédita composta por Ennio Morricone (compositor com perfil eternamente associado à tradição do western spaghetti), Malick recorre a registos de Leo Kottke e Doug Kershaw, deixando para o genérico um execerto d’O Carnaval dos Animais de Saint Saëns. A música de Morricone teve mesmo assim distinção pela Academia, merecendo a Malick a primeira das suas nomeações na categoria de Melhor Banda Sonora Original.


Vinte anos depois, em A Barreira Invisível (Thin Red Line no título em inglês), o olhar é mais ambicioso e junta à partitura original de Hans Zimmer (que colheu glória com a música para O Gladiador, de Ridley Scott), fulcral na criação de uma dimensão humana interior que cruza o filme, elementos de outros tempos ora escutados num Animus et Anima de Arvo Pärt (o mesmo compositor que conheceria mais tarde em Gerry, de Gus Van Sant, um filme talhado à medida minimalista de peças como Spiegel im Spiegel ou Alina) ou um instante do Requiem de Fauré. A marca maior da identidade musical de A Barreira Invisível chega porém de uma ligação que sublinha a geografia que acolhe a acção, com uma série de gravações de cantos de povos de ilhas do Pacífico (da melanésia em particular), alguns deles com expressão narrativa no próprio filme. É de resto um dos mais preciosos extras de algumas das edições em DVD d’A Barreira Invisível um disco (virtual) que documenta em registos áudio os cantos que escutamos integrados no corpo do filme. Mesmo não tendo usado na montagem final alguma da música original que Hans Zimmer lhe entregou, o realizador usou-a nos décors como ponte para transportar os actores ao patamar emocional por si desejado. O trabalho de Zimmer valeu a Malick uma segunda nomeação para os Óscares na categoria de Melhor Banda Sonora Original.

Em O Novo Mundo (The New World), de 2005, a música composta por James Horner (parceiro de Ron Howard em alguns projectos como Apollo 13 ou Willow, Na Terra da Magia), está longe der ser novamente a memória de som que se guarda do filme. O disco, com a banda sonora, sabe por isso “a pouco” quando confrontado com as memórias de imagem e som de quem se sentou numa plateia a ver o filme e viveu a pujança da abertura da ópera O Ouro do Reno, de Wagner (que, descrevendo as águas de um rio na intenção original do compositor alemão servem aqui o avançar de uma pequena armada rio acima na sequência de abertura) ou as notas do Concerto para Piano Nº 23 de Mozart vincando outro protagonismo na relação entre a música e as imagens.


No fundo, tudo isto são pistas para chegar ao novo filme...

E se tal como por outros departamentos podemos ver toda a obra anterior de Malick como peças, ideias e feitos que confluem em A Árvore da Vida, a forma como o realizador integra a música não só é resultado de todo um processo de evolução que passa necessariamente pelos títulos anteriores como alcança, como o fez Kubrick em 2001, um patamar de ambição maior que, convenhamos, conduz de forma magistral aos mais felizes resultados.

Também aqui há um compositor encarregue de assinar uma partitura original que serve de corpo comum a parte significativa das imagens. O escolhido foi Alexandre Desplat, que nos últimos tempos assinou, entre outros, trabalhos de composição para O Discurso do Rei, de Tom Hooper, ou O Estranho Caso de Benjamin Button, de David Fincher. Uma vez mais, a banda sonora, em disco, foca o trabalho original do compositor ao serviço do filme. É porém de outras origens que provém os fragmentos de música que, como em filmes anteriores, vincam mais profundamente a forma muito peculiar, profunda e em perfeito diálogo de cumplicidades que Malick define entre as imagens que procura e as músicas que encontra. A Lacrimosa, de Requiem For A Friend de Preisner (o compositor das “três cores” de Kieslowski) é o fio que conduz a sequência que nos transporta aos confins do tempo, da nebulosa onde tudo começou ao processo de acreção do qual nasceram os planetas, o terceiro a contar do Sol sendo aquele onde vivemos. O Requiem de Berlioz cede o fulgor crente que reforça a intensidade do olhar sobre a transcendência que encontramos num outro instante-chave do filme. A pulsão nacionalista que vibrava na Moldávia de Smetana serve aqui episódios de vida a três, entre os filhos do casal O’Brien (que acompanhamos, em memórias vividas algures no Texas, nos anos 50). Pelo caminho um excerto da Sinfonia Nº 3 de Gorecki, outro da Sinfonia Nº 1 de Mahler ou instantes de obras de nomes como Tavener, Respighi, Holst, Kancheli, Couperin, Mussorgsky, Mozart ou Arsenije Jovanovik juntam-se na construção de um monumento maior. A obra total. E, a par com o já citado 2001 de Kubrick ou o genial Koyaanisqatsi de Godrey Reggio (com música de Philip Glass), um dos casos mais expressivos de absoluta capacidade de encontrar caminhos de perfeito entendimento entre a música, a imagem e a intenção final da obra.

Se em grande parte das ocasiões a música surge como uma dimensão que complementa as imagens, como que estabelecendo ligações pela audição a uma realidade que toma a visão com natural protagonismo, há momentos em A Árvore da Vida em que a música que escutamos vai além esse espaço de vida parceira à das imagens, irrompendo pelo espaço cénico ora quando o pai (Brad Pitt) mostra aos filhos um disco com numa gravação da Sinfonia Nº 4 de Brahms por Toscanini num álbum em vinil (na verdade a ficha técnica revela que escutamos uma gravação mais recente, por Karajan à frente da Berliner Philarmoniker) ora quando o mesmo Jack O’Brien toca, numa igreja, a Toccata e Fuga em Ré menor de Bach.

Se podemos ver A Árvore da Vida como toda uma reflexão sobre a vida e o seu sentido, a música que ilustra, alimenta e faz respirar o filme sublinha que o percurso de reencontro com o sublime (que acompanhamos, afinal, através das evocações e pensamentos da personagem interpretada por Sean Penn) pode ser uma experiência sensorial que não pede, necessariamente, uma racionalização das ideias e modelos que a narrativa veicula. A música tem, afinal, esse poder libertador. Transcendente, podemos dizer. Assim como é dotada dessa forma muito rara de encontrar a transversalidade mesmo quando nem sempre partilhamos a fé nas palavras que nos canta.

Um pequeno guia de sugestões para escutar, na íntegra, cinco das obras que Malick visita 
em momentos do filme A Árvore da Vida.

Brahms
Sinfonia Nº 4 – Pela Orchestre Revolutionaire et Romantique, dirigida por John Eliott Gardiner.
O disco é lançado pela Soli Deo Gloria, editora do próprio maestro.

Smetana
Moldávia – Gravação pela Wiener Philharmoniker, dirigida por Herbert Von Karajan, em disco
que inclui também a Sinfonia Nº 9 de Dvorák. Uma outra gravação desta composição surgia também
no trailer do filme.

Gorécki
Sinfonia Nº 3 – Uma das obras de maior sucesso da música contemporânea, viu esta gravação com a voz de Dawn Upshaw, a vender maios de um milhão de unidades nos anos 90.

Berlioz
Requiem – Grand Messe des Morts – Uma entre as várias edições de gravações desta obra do compositor. Gravação histórica pela London Symphony Orchestra, dirigida por Colin Davis.

Preisner
Requiem For My Friend – Gravação de 1998 pela Erato, corresponde ao primeiro registo desta
obra de Preisner.

quarta-feira, maio 25, 2011

Double Feature [1]: O Mágico e Paranoid Park

Esta publicação abre a rubrica Double Feature, um espaço de opinião regular sobre dois DVDs lançados (ou reeditados) pelas distribuidoras portuguesas. O comentário que segue dos primeiros dois discos foi publicado no dia 21 de Maio de 2011, na revista Notícias Sábado integrante do Diário de Notícias e do Jornal de Notícias.

O Mágico, de Sylvain Chomet
Castello Lopes Multimédia
★★★

Criado a partir de um argumento que o espantoso Jacques Tati (1907-1982) deixou sem concretizar e utilizando a sua mais célebre personagem – Monsieur Hulot –, o realizador francês Sylvain Chomet, nomeado para os Óscares da Academia com Belleville Rendez-vous, conta-nos a história de um mágico que tenta sobreviver à ausência de protagonismo e que se empenha em deixar feliz uma pobre rapariga que conhece na Escócia e com quem estabelece um autêntico amor paternal. Desolar mas profundamente tocante, Chomet cria, com minucioso detalhe e beleza, uma das melhores animações dos últimos anos, explorando, através do silêncio, o âmago das relações humanas.




Paranoid Park, de Gus Van Sant
Atalanta Filmes
★★★

Depois de deslumbrar com a sua inovadora trilogia da morte (constituída por Gerry, Elephant e Last Days), o versátil cineasta norte-americano Gus Van Sant mostra, em Paranoid Park, um olhar sobre a adolescência no presente, que crê estar perdida. Adaptado do romance homónimo de Blake Nelson, que por sua vez invoca Dostoiévski, este objecto cinematográfico de notável singularidade formal debruça-se sobre a decadência moral e psicológica de um skater de 16 anos após ter matado acidentalmente um segurança. Montado a partir de uma narrativa não linear e experimentando uma conjugação hipnótica de músicas e ritmos distintos, o realizador atinge nesta obra um estado de graça, cujo DVD mereceu uma nova reedição que inclui um estudo sobre a obra do autor.

Impressões sobre o primeiro Sound + Vision Magazine


Decorreu ontem, na FNAC do Chiado, a primeira das sessões mensais «Sound + Vision Magazine» que os críticos e autores do blogue sound+vision, Nuno Galopim e João Lopes organizam (os dois já tinham estado presentes no mesmo local, entrevistando, em Março, o escritor Michael Cunningham, como neste vídeo podemos ver integralmenter). O sucesso desta apresentação deve-se particularmente à tendência pela cúmplice informalidade da conversa entre o par de jornalistas. Como se, de repente, o espaço online se materializasse à frente dos olhos de quem espera apenas ver os autores juntos. Lúdico e bem conduzido, ontem contrapuseram-se telediscos (Lady Gaga – Judas – e Madonna – Like a Prayer), livros (Christopher Isherwood – Adeus a Berlim – e Patti Smith – Apenas Miúdos), DVDs (Duas ou Três Coisas sobre Ela, de Jean-Luc Godard, e Kaboom, de Gregg Araki) e discos (Ring N'Roll, de Catherine Ringer, e Mirrorwatching, de Jamie Woon). Malick merece o grande destaque desta primeiríssima sessão ao vivo, com ambos a trocarem impressões sobre a mais recente longa-metragem de Terrence Malick: «A Árvore da Vida», que estreia amanhã nas salas portuguesas. No final, o 70º aniversário de Bob Dylan foi assinalado, ficando a promessa de uma mais uma nova vitalização cultural no nosso país.

terça-feira, maio 24, 2011

O benjamim do cinema canadiano



Aos 22 anos Xavier Dolan começa já a afirmar-se como um nome de peso de uma nova geração de realizadores

Xavier Dolan podia ser uma representação da pintura expressionista «O Grito» de Edvard Munch. Mas o jovem canadiano, que acabou de estrear esta semana «Amores Imaginários», a sua segunda longa-metragem que escreveu, realizou, produziu e protagonizou, tem vindo a comprovar que é cada vez mais uma figura presente na expressão cinematográfica contemporânea.

Em boa verdade, podemos considerar este autêntico benjamim, que acaba de comemorar o vigésimo segundo aniversário, uma espécie de ícone de toda uma nova geração de realizadores que se tem vindo a formar na era do culto da rapidez no consumo da imagem e do audiovisual. Nascido em 1989 no Quebeque (Canadá), a sua incursão pelo universo das câmaras foi precoce. Aos cinco anos, representou pela primeira vez numa série televisiva e em anúncios publicitários e, em 1997, estreou-se como actor no cinema, à semelhança do que fez o pai, acabando por ter mais projecção no filme de terror franco-canadiano «Martyrs», de 2008. No entanto, a decisão de entrar no cinema de um ponto de vista mais criativo e autoral fez-se relativamente tarde, aos 17 anos, quando conheceu «as diferentes pessoas» que o «inspiraram e mostraram o caminho» e a obra de grandes nomes como Abbas Kiarostami, Gus Van Sant e François Truffaut (este último que, lembra Xavier, os amigos viam já com nove anos enquanto ele se divertia ainda com o «Sozinho em Casa»).

É com essa idade que o ainda adolescente decide escrever «J’ai Tué ma Mère» (que podemos traduzir como «Matei a minha Mãe»), uma história semi-auto-biográfica sobre a sua descoberta da sexualidade e a relação auto-destrutiva que mantém com a mãe. Dolan estreia-o no Festival de Cannes em 2009, que o recebeu com grande entusiasmo (ainda que apontando dedo a um aparente egotismo existente no filme), galardoando o realizador (entretanto com 20 anos) com três prémios. A sua primeira longa-metragem, que não teve entre nós estreia comercial, é uma experiência que confirma que o canadiano não deseja, com os seus filmes, declarar amor ao cinema, mas «simplesmente contar histórias».

«Amores Imaginários», que lança em 2010 e que se centra num triângulo amoroso (mas menos interessante que o de Bertolucci, em «Os Sonhadores», ou o de Truffaut, em «Jules et Jim») no qual a personagem interpretada por Dolan surge como protagonista, é a continuação falhada da projecção da sua persona onanista e solitária (pelo menos assim se considera), e a procura desenfreada de um estilo que possa dizer que é seu, ainda que tenha alguns momentos interessantes (resultantes essencialmente do argumento, área onde, há que reconhecer, é realmente habilidoso). Cruzando as cores e personagens estilizadas do universo de Almodóvar, a liberdade de Godard (ídolo com quem competiu no festival com esta obra) e de Van Sant, e os slow-motion presentes no belo cinema de Wong Kar-Wai, não se sabe se Xavier Dolan, nesta etapa da sua vida, é um prodigioso cinéfilo ou cineasta impulsivo do pastiche.

Mas Xavier está confiante e parece querer amadurecer fazendo mais filmes. Comprovam-no «Laurence Anyways», longa-metragem sobre o amor impossível entre um transexual e uma mulher, e «Letters to a Young Actor», a estrear da sua autoria em 2012 e 2014, respectivamente.

**
Este texto foi publicado originalmente no dia 21 de Maio de 2011 na revista Notícias Sábado do DN e JN.

domingo, maio 22, 2011

Cannes [12]: A vitória do cinema de Malick


Terminou a 64ª edição da maior festa do cinema do mundo, o Festival de Cannes. Após 11 dias de projecção de filmes em competição para a cobiçada Palma de Ouro, o júri, presidido por Roberto DeNiro, decidiu premiar – e muitíssimo justamente – a quinta longa-metragem do misterioso Terrence Malick: «A Árvore da Vida», a estrear na próxima quinta-feira, dia 26 de Maio, nas salas de cinema portuguesas, e amanhã, dia 23, em antestreia, na Cinemateca de Lisboa. A crítica ao filme (que, por aqui, já foi vista e é uma obra-prima e a maior do realizador), será publicada muito em breve.

O produtor do filme Bill Pohlad, disse: «I have always wanted to speak French, and tonight more than ever. Tonight I have to take the place of a giant. Terrence Malick is very shy and discreet. But I spoke to him today and I know he is very happy to receive this honour. The Tree Of Life was a long journey, but it was all worth it. I would like to thank especially the Festival de Cannes.» O palmarés completo, a seguir:

Palma de Ouro
The Tree of Life, de Terrence Malick

Grande Prémio
Le Gamin au Vélo, de Jean-Pierre Dardenne e Luc Dardenne
em ex-aequo com Once Upon a Time in Anatolia, de Nuri Bilge Ceylan

Melhor Realizador
Nicolas Winding Refn por Drive

Melhor Actor
Jean Dujardin por The Artist

Melhor Actriz
Kirsten Dunst por Melancholia

Melhor Argumento
Footnote, de Joseph Cedar

Prémio Especial do Júri
Polisse, de Maïwenn Le Besco

Palma de Ouro para Melhor Curta-Metragem
Cross, de Maryna Vroda

Caméra D'Or
Las Acacias, de Pablo Giorgelli

[em actualização]

Quando a pop é uma arma





Considerada a celebridade mais influente do mundo pela revista 'Forbes', tem ligado a sua música a formas de activismo ideológico.

Mais que um heterónimo, um nome artístico ou uma espécie de alter ego, Lady Gaga transformou verdadeiramente a persona que encarnava a aluna disciplinada e dedicada aos estudos num colégio católico para raparigas (e que então respondia pelo nome de Stefani Germanotta). A cantora tornou-se, em boa verdade, uma referência popular de tal forma influente que o alcance global da fama já merece, na Universidade da Carolina do Sul (nos EUA), um curso que o analisa. Mas parecem querer impor-se as questões: quais foram os meios que tornaram Lady Gaga num fenómeno transversal à cultura pop, e de que forma a sua criação artística tem influenciado uma mudança de atitude do público nos tempos modernos? Talvez as razões sejam mais evidentes do que possa parecer.

Inegavelmente, a jovem mostrou--se ao mundo como um autêntico asteróide visual, que rompe em definitivo com a normalização estética das grandes estrelas da música mainstream norte-americana. Quis que lhe chamassem Lady Gaga, esta enfant terrible da indústria discográfica que rapidamente se tornou na sua nova promessa. Estávamos então em 2008, quando o candidato afro-americano Barack Obama lutava pela presidência dos Estados Unidos e se unia com o país com a promessa simbólica de mudança. Lady Gaga lançava, em paralelo, o seu primeiro álbum, The Fame, surgindo como profunda defensora de dois pilares que a caracterizavam e determinariam, posteriormente, o seu sucesso: a diferença e a individualidade.

Será, por tudo isso, inevitável referir a comunidade LGBT (lésbica, gay, bissexual e transgénero) como primeiro motor do êxito da estrela mundial a quem Lady Gaga, agora considerada um ícone queer por excelência, reconheceu o papel na sua carreira, exercendo um profundo activismo pela igualdade dos direitos dos homossexuais. Após ter interpretado o single Just Dance em Maio de 2008 num programa de uma estação de televisãogay, e em Junho na marcha LGBT de São Francisco, e de ter revelado que a canção Poker Face tratava da sua bissexualidade, Lady Gaga participou naquele que considerou “o evento mais importante” da sua carreira: a Marcha Nacional pela Igualdade. Decorreu em Outubro de 2009 e defendia a equidade entre direitos, e que resultou na promessa, por parte do Presidente, que a política militar discriminatória “don’t ask, don’t tell” (que podemos traduzir como “não perguntar, não dizer”, que proibia o serviço militar de homo e bissexuais) seria abolida. São imensas as declarações pró-LGBT que Lady Gaga promoveu com afinco, afirmando que o teledisco de Alejandro, dirigido pelo fotógrafo Steven Klein, “é uma celebração do amor gay”.


A celebração da diferença não se fez exclusivamente aos homossexuais. Muito embora a Malásia tenha proibido a circulação de um dos mais recentes singles, Born This Way, pelo conteúdo que infligia a moral local, e Elton John o tenha considerado como “o novo hino gay”, será no mínimo redutor confinar a canção a esse universo. A aceitação pelas múltiplas diferenças (que apregoa nos 201 concertos da Monster Ball Tour) resume--se na canção do segundo álbum da cantora. Lady Gaga é a mãe dos little monsters, ou monstrinhos (expressão afectuosa com que trata os fãs) e parece querer espalhar a noção de respeito por aquilo que é diferente. Como canta no refrão: Whether you’re broke or evergreen / You’re black, white, beige, chola descent /You’re lebanese, you’re orient / Whether life’s disabilities / Left you outcast, bullied, or teased / Rejoice and love yourself today / ‘Cause, baby, you were born this way (em português, numa tradução livre: Não importa se és pobre ou rico / Se és negro, branco, bege, latino / Se és libanês, se és oriental / Não importam se as deficiências / te deixam apartado, achincalhado ou provocado / Alegra-te e ama-te hoje / Porque, baby, tu nasceste assim).

Podendo ser este lado solidário com a diversidade comparado com poucos (e igualmente ousados) artistas na área da música, vemos ser esbatida, progressivamente, as ideias modernas de beleza. Apesar de a imagem do indivíduo continuar central na sociedade e nos media, pela primeira vez esta deixa de ser uniformizada segundo um padrão imposto. O culto da individualidade faz-se em paralelo com o da diferença – e é nos telediscos que estas mensagens e o mito da sua figura inovadora se dão a ver, para além de todos os concertos e apresentações em público realizados (continua na memória o episódio em que Lady Gaga surgiu, nos MTV Video Music Awards de 2010, com um polémico vestido feito integralmente de carne, sobre o qual se especularam várias interpretações).

O carácter quase anedótico da sua aparência ganhou espantosas proporções, sobretudo aquando da estreia do vídeo de Paparazzi, narrativa que é seguida por Telephone, no qual colabora com Beyoncé. Consciente da força da sua postura, Lady Gaga tornou-se progressivamente, à medida que o sucesso comercial se consolidou, mais ousada nas mensagens que pretendeu transmitir. Em Beautiful, Dirty, Rich, canção que praticamente passou ao lado das atenções de muitos, Lady Gaga queima e nada em dinheiro, surgindo como uma caricatura do capitalismo selvagem promovido por um país abalado pelo rebentar da crise financeira. Já Alejandro insurge-se como o primeiro grande teledisco com uma perspectiva crítica da sociedade, mais especificamente da política e da religião, área que volta a pôr em questão no novo Judas, já de 2011. Vemos, aqui, metaforizada uma ideia da música como arma e meio de opinião, diferindo do universo pop da última década (do qual Britney Spears faz inegavelmente parte), reinado pela alienação social e desinteresse pela realidade.

Lady Gaga é, para todos os efeitos, um ícone cultural e a voz de toda uma geração na era do Twitter (onde foi a primeira a atingir os dez milhões de seguidores). Produto artificial de um sistema que se esconde por detrás da figura pública ou não, o seu poder atingiu um enorme, porventura perigoso, estatuto de influência, acarretando uma responsabilidade social que apenas a cantora poderá ter consciência. Resta-nos aguardar o seu futuro que poderá, para o bem e para o mal, depender do acolhimento do novíssimo álbum Born This Way.


Telediscos com história
A imagem de Lady Gaga foi, para além das suas aparições públicas, sendo moldada sobretudo pelos telediscos que correram a Internet a uma velocidade vertiginosa. Serviram por isso de veículo para a projecção das canções, da cantora como ícone musical, de moda e cultural e das suas polémicas ideias.

Bad Romance
Francis Lawrence, 2009
Reminiscente do perfeccionismo de Stanley Kubrick (com os enquadramentos pensados ao milímetro) o realizador cria, em cooperação com a “Haus of Gaga” que trata da direcção artística, um cenário decadentista e uma coreografia notável que apenas encontra comparação com nomes como Michael Jackson, com o célebre Thriller. Sendo, na Internet, o mais popular dos vídeos da cantora (só no YouTube é o segundo vídeo mais visto de sempre, ultrapassando as 375 milhões de visualizações), Lady Gaga protagoniza a femme fatale que, após ter sido raptada e vendida para uma máfia russa, se vinga matando o homem que a negociou. Popularizando a roupa que vai vestindo, Gaga homenageia Alexander McQueen, terminando da forma mais burlesca possível.

Telephone
Jonas Akerlund, 2011
Sequela directa do teledisco que acompanhou Paparazzi (também realizado por Jonas Akerlund), Lady Gaga responde às acusações de poder ser hermafrodita quando a personagem que encara é levada a uma prisão reservada a mulheresm, onde é forçada a despir-se. A provocação subtil precede a sua libertação pela amiga representada por Beyoncé, chamada Honey Bee (uma menção à personagem Honey Bunny do filme de Quentin Tarantino Pulp Fiction). Este volta a ser mencionado não apenas no estilo dos diálogos mas no carro amarelo que Beyoncé conduz, o “Pussy Wagon” do filme Kill Bill. Engenhoso comentário à cultura pop moderna, Lady Gaga percorre costumes da população, dançando num diner vestida com a bandeira dos EUA.

Alejandro
Steven Klein, 2010
O fotógrafo Steven Klein dirige aqui um teledisco dedicado ao público gay de Lady Gaga. Evocando o filme musical Cabaret de 1972, este vídeo é porventura o primeiro em que vemos expresso um apelo à igualdade. Para além da exploração erótica e andrógina do corpo masculino e das relações entre homens, Lady Gaga veste um fato de látex vermelho e recorre a iconografia religiosa. Profundamente controverso e sedutor, este vídeo de Gaga (que cita a figura de Joana D’Arc) presta ainda uma homenagem, com os seus dançarinos, ao coreógrafo Bob Fosse numa sequência a preto e branco. A cantora faz também deste teledisco uma ode à comunidade LGBT, que passou a servir o Exército norte-americano depois dos silêncios da política “don’t ask don’t tell”.

Judas
Lauriann Gibson e Lady Gaga, 2011
Com lançamento previsto para a Páscoa deste ano e criticado por grupos religiosos, o mais recente teledisco de Lady Gaga é uma moderna abordagem a referenciais cristãos. Transformada em Maria Madalena, que acompanha numa mota Jesus e os seus doze apóstolos, Lady Gaga explora as influências que a experiência de palco na extensa Monster Ball Tour lhe proporcionou para mostrar coreografias mais ritmadas e com mais dançarinos. Como Maria Madalena, tenta, em vão, advertir a traição de Judas a Jesus. Lembrando episódios bíblicos como o lavar dos pés ou o beijo de Judas ou evocando quadros como o O Nascimento de Vénus de Sandro Botticelli, Judas é porventura um dos mais cuidados dos telediscos da cantora.

Este artigo foi originalmente publicado no Diário de Notícias, no dia 21 de Maio de 2011.