quinta-feira, março 10, 2011

Rosetta

«Rosetta é uma pérola do cinema, ou melhor, a dupla dos irmãos Dardenne é uma pérola do cinema. Porque não há cinema mais simples e concreto que o cinema dos Dardenne. Rosetta é o segundo filme deles que vejo, e, se Le Fils me deixou perplexo, Rosetta deixou-me atónito. Porque para além do realismo exacerbado com que o cinema dos Dardenne se identifica, a arte de filmar, a mise-en-scène dos belgas, é a grande beleza do seu cinema. E se este cinema, oriundo de um Dogma 95, nos sensibiliza tanto, isso deve-se à câmara dos Dardenne, à proximidade com que ela se cola ao personagem, a um estilo de câmara na mão. A forma como a câmara é conduzida, a forma como segue a personagem é simplesmente brilhante e o grande trunfo deste cinema neo-realista dos belgas.

Rosetta é, num âmbito geral, um retracto duma dura realidade (como o é Le Fils), uma crítica social desconfortável duma realidade cada vez mais presente, a sobrevivência, a luta contra o desemprego. Acima de tudo, somos confrontados com um cinema frio e metódico onde só nos é apresentado o essencial para a compreensão da obra. O filme começa com o despedimento da jovem Rosetta, ao qual ela reage descontroladamente e agressivamente. A partir daqui, somos levados a perseguir (literalmente) Rosetta para onde quer que ela vá. Ou seja, Rosetta é Rosetta e mais nada. Os Dardenne querem sobretudo filmar a dura realidade de quem procura exaustivamente um trabalho, de quem procura uma vida normal. E para isso, fazem de Rosetta um ser desprezível, capaz de qualquer coisa para ter uma vida normal, para conseguir um meio que lhe traga o seu ganha-pão.

Mas Rosetta é muito mais que isso, lida com muito mais que isso. Rosetta é o quotidiano daquela jovem endurecida pela dura realidade, pela falta de afecto, endurecida antes do tempo. E por isso a sua constante procura num trabalho, por isso a sua forma de lidar com a mãe alcoólica que se prostitui para alimentar o vício, por isso o ritmo frenético com que Rosetta se movimenta naquele meio urbano. Observamos a sua rotina, o seu modo de conseguir alimento, a sua forma de entrar no acampamento onde coabita com a mãe (de quem sente vergonha e repúdio não obstante a um imutável afecto e incessante procura na reabilitação desta). Mas sempre fria, dura (a única vez que Rosetta sorri ocorre quando o único amigo que tem desata a tentar fazer habilidades sem sucesso).

Mas no fim Rosetta alcança a redenção (como Le Fils a alcançou). No fim, e depois de provar ao espectador a ausência de escrúpulos, a capacidade de abdicar e trair o único amigo que possui para conseguir um trabalho; no fim chega a redenção, o estranho poder de Rosetta nos incutir alguma pena por aquele ser, por aquela vítima da sociedade. Maravilha de cinema.»
>retirado do blog Preto e Branco; texto de Álvaro Martins. 

Rosetta é, realmente, tudo isto e mais alguma coisa. Albert Camus escreveu que o homem deve viver em revolta perante o nada desta vida, e Rosetta extrapola essa revolução, sobrevivendo num mundo cão sem piedade. Obra-prima.

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