domingo, março 27, 2011

Mel e o seu realismo espiritual

«Mel» é um daqueles raros acontecimentos cinematográficos que não se esperam - manter uma proximidade com a Natureza, a família e a infância num tom panteísta forte e belíssimo é coisa difícil nos tempos que correm. A crítica que se segue foi escrita por Nuno Carvalho e foi publicada na edição última da revista NS do Diário de Notícias.

«Primeira parte de uma trilogia construída ao contrário, 'Mel' venceu o Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2010

De vez em quando aparece um filme que nos relembra que o cinema pode ser uma nobre arte. É o caso de Mel, do cineasta turco Semih Kaplanoglu (n. 1963). Vencedor do Urso de Ouro na penúltima edição do Festival de Berlim, este filme constitui a última parte de um tríptico autobiográfico a que o realizador deu o nome de ‘Trilogia de Yusuf”, e que explora diferentes fases da vida de uma mesma personagem. Mas fá-lo, porém, numa ordem cronológica invertida, ou seja, começando pela idade adulta de Yusuf (em Egg, de 2007), passando pelos seus tempos de estudante universitário (em Milk, de 2008), e terminando na infância deste. Os três filmes têm nomes de alimentos de origem animal, mas, a avaliar por Mel, é de um autêntico alimento espiritual que se trata.

Kaplanoglu definiu o estilo do seu cinema como “realismo espiritual”. Um termo perfeito para designar um cinema que, sendo pura e simplesmente realista, não o é todavia num sentido literal, banal ou empobrecedor. Trata-se aqui de um realismo sublimado, espiritualizado, que encontra na realidade (e sobretudo no real natural) uma espiritualidade imanente, em boa parte decorrente de um olhar poético sobre as coisas. É uma poética da simplicidade que se desenha neste filme que, afinal, é mais do que um filme: é um milagre, uma epifania cinemática, um sopro de ar puríssimo.

Numa remota região do Mar Negro, Yusuf (Bora Altas), um tímido e frágil menino de seis anos, que se encontra na primeira classe, tem dificuldades em ler diante dos seus colegas de turma (é acometido de uma súbita gaguez, porventura de origem emocional, de cada vez que tem de o fazer). Porém, em casa, consegue quebrar esse bloqueio verbal, sobretudo junto do pai – mas a única forma que encontra para contornar a sua inibição é sussurrar as palavras ao ouvido deste, com quem tem uma ligação especial. Todavia, quando este, que é apicultor, desaparece nas entranhas de uma floresta aonde foi armar as suas colmeias, Yusuf deixa de falar, o que acentua ainda mais a ansiedade da sua mãe.

O lugar de Mel na ‘Trilogia de Yusuf’ é similar ao de Pather Panchali na ‘Trilogia de Apu’, de Satyajit Ray. Mas, no caso desta “prequela” de Semih Kaplanoglu, são traçadas as origens de uma alma que, futuramente, e em larga medida devido à sua relação conturbada com as palavras, se tornará poeta. Vivemos sempre muito em função dos que nos falta, e no caso de Yusuf, como aliás na maior parte dos casos, é da superação de uma insuficiência que nasce a virtude. Não sabemos até que ponto a Trilogia de Yusuf é autobiográfica; sabemos apenas que Kaplanoglu é um poeta das imagens e que Mel é um autêntico maná cinematográfico.»

quinta-feira, março 10, 2011

Rosetta

«Rosetta é uma pérola do cinema, ou melhor, a dupla dos irmãos Dardenne é uma pérola do cinema. Porque não há cinema mais simples e concreto que o cinema dos Dardenne. Rosetta é o segundo filme deles que vejo, e, se Le Fils me deixou perplexo, Rosetta deixou-me atónito. Porque para além do realismo exacerbado com que o cinema dos Dardenne se identifica, a arte de filmar, a mise-en-scène dos belgas, é a grande beleza do seu cinema. E se este cinema, oriundo de um Dogma 95, nos sensibiliza tanto, isso deve-se à câmara dos Dardenne, à proximidade com que ela se cola ao personagem, a um estilo de câmara na mão. A forma como a câmara é conduzida, a forma como segue a personagem é simplesmente brilhante e o grande trunfo deste cinema neo-realista dos belgas.

Rosetta é, num âmbito geral, um retracto duma dura realidade (como o é Le Fils), uma crítica social desconfortável duma realidade cada vez mais presente, a sobrevivência, a luta contra o desemprego. Acima de tudo, somos confrontados com um cinema frio e metódico onde só nos é apresentado o essencial para a compreensão da obra. O filme começa com o despedimento da jovem Rosetta, ao qual ela reage descontroladamente e agressivamente. A partir daqui, somos levados a perseguir (literalmente) Rosetta para onde quer que ela vá. Ou seja, Rosetta é Rosetta e mais nada. Os Dardenne querem sobretudo filmar a dura realidade de quem procura exaustivamente um trabalho, de quem procura uma vida normal. E para isso, fazem de Rosetta um ser desprezível, capaz de qualquer coisa para ter uma vida normal, para conseguir um meio que lhe traga o seu ganha-pão.

Mas Rosetta é muito mais que isso, lida com muito mais que isso. Rosetta é o quotidiano daquela jovem endurecida pela dura realidade, pela falta de afecto, endurecida antes do tempo. E por isso a sua constante procura num trabalho, por isso a sua forma de lidar com a mãe alcoólica que se prostitui para alimentar o vício, por isso o ritmo frenético com que Rosetta se movimenta naquele meio urbano. Observamos a sua rotina, o seu modo de conseguir alimento, a sua forma de entrar no acampamento onde coabita com a mãe (de quem sente vergonha e repúdio não obstante a um imutável afecto e incessante procura na reabilitação desta). Mas sempre fria, dura (a única vez que Rosetta sorri ocorre quando o único amigo que tem desata a tentar fazer habilidades sem sucesso).

Mas no fim Rosetta alcança a redenção (como Le Fils a alcançou). No fim, e depois de provar ao espectador a ausência de escrúpulos, a capacidade de abdicar e trair o único amigo que possui para conseguir um trabalho; no fim chega a redenção, o estranho poder de Rosetta nos incutir alguma pena por aquele ser, por aquela vítima da sociedade. Maravilha de cinema.»
>retirado do blog Preto e Branco; texto de Álvaro Martins. 

Rosetta é, realmente, tudo isto e mais alguma coisa. Albert Camus escreveu que o homem deve viver em revolta perante o nada desta vida, e Rosetta extrapola essa revolução, sobrevivendo num mundo cão sem piedade. Obra-prima.