sexta-feira, dezembro 30, 2011

Top 10 melhores filmes de 2011

10. ROAD TO NOWHERE – SEM DESTINO, de Monte Hellman

Uma resposta ao mistério ontológico da criação da imagem cinematográfica, debruçando-se sobre a realidade re-presentada (isto é, tornada presente) durante a rodagem de um filme. O realizador-protagonista não é, por isso, senão o espelho de Hellman, que se olha para si mesmo como um criador de várias realidades, ainda que indissociáveis. [texto]

9. UMA SEPARAÇÃO, de Asghar Farhadi

Entre o realismo e o melodrama, Asghar Farhadi constrói na sua quinta longa-metragem, em tom desencantado, uma espécie de evidência sociológica – de que a verdade e a mentira, de mãos dadas com a religião e o medo, são valores que coexistem, para o bem ou para o mal, sem separação

8. O MIÚDO DA BICICLETA, de Jean-Pierre & Luc Dardenne 

Os irmãos Dardenne comprovaram aqui que é possível, na moral e nos tempos que correm, pensar uma dura realidade a partir de uma ficção que demonstre que as pessoas se podem preocupar umas com as outras. Ou em poucas palavras: que a nossa necessidade de sermos amados pode ser consumada. [texto

7. O ATALHO, de Kelly Reichardt

Apesar de registar um espírito histórico e primitivo de povoamento, união e descoberta, a câmara desta cineasta é consciente do seu tempo e não deixa de filmar algo que permanece profundamente contemporâneo: como o ser humano reage (e se revela) face ao desconhecido e a situações-limite. [texto

6. INQUIETOS, de Gus Van Sant

Muito embora possamos pensá-lo um filme sobre a morte será melhor desenganarmo-nos. Parece ser sobre uma questão ainda mais fundamental: como viver a vida ou, sem redundâncias, como viver? Porque, como aqui ouvimos, a morte é fácil, o amor (ou toda a vida, não nos importemos de acrescentar) é que é difícil. Em Inquietos chora-se – mas pelos vivos. No plano final do filme percebemos que a memória é o recurso que nos é mais caro para lidarmos com tudo aquilo que é efémero, tudo aquilo que já não é. [texto

5. AS QUATRO VOLTAS, de Michelangelo Frammartino

Uma visão tranquila sobre a jornada de um homem, de uma cabra e de uma árvore e que pode ser entendida como uma meditação tranquila, fresca e bela sobre a vida, o espírito e as suas metamorfoses.

4. SUBMARINO, de Richard Ayoade

Extraordinário olhar sobre a vida frenética, por vezes imaginada, de Oliver Tate, um jovem galês obsessivo e solitário. Lidando com força com os lugares-comuns da adolescência esta inesquecível comédia (que nos remete para múltiplas citações cinematográficas – mas sem as esconder) é também uma redescoberta do que significa o primeiro amor e o valor da palavra felicidade.

3. SANGUE DO MEU SANGUE, de João Canijo

A sedução de Sangue do meu Sangue provém da criação de um microcosmos (o Bairro Padre Cruz e, se quisermos ser mais particulares, a família que lá vive) que nos obriga, apesar de toda a familiaridade cómica e trágica daqueles comportamentos, a criar uma distância sobre nós – como portugueses e como seres humanos. Portanto: o que são o futebol, o telejornal e a telenovela ao lado dos dramas, das conquistas e da vida que partilhámos e nos une? É aí que reside a irresistível luminosidade de Sangue do meu Sangue: obriga-nos com que não nos esqueçamos da matéria de que somos feitos. [texto]

2. MEL, de Semih Kaplanoğlu

É um daqueles raros acontecimentos cinematográficos que não se esperam - manter uma proximidade com a Natureza, a família e a infância num tom panteísta forte e belo e sermos assim introduzidos a um tipo de realismo espiritual (o termo é do próprio Semih Kaplanoğlu), é coisa rara (embora necessária) no cinema de hoje. 

1. A ÁRVORE DA VIDA, de Terrence Malick

Parece, após vermos The Tree of Life, devidamente sem ideias pré-concebidas, impor-se uma questão: como pode o espectador receber um meteorito metacinematográfico como este que se propõe a questionar toda a sua existência? Que efeito terá a obra-prima de Terrence Malick em si? Mais que uma outra aparição nesta forma de expressão, este é um raro filme, sem distinções de público, que ambiciona redefinir-se como objecto de cinema e, para além disso, redefinir quem o percepciona. Então voltemos: como receber este filme que, a partir do momento extraordinário em que o vemos – ou, se nos quisermos aproximar mais da experiência, sentimos –, entramos dentro de nós, recordando afectos, sensações e uma vaga e passada aproximação com o divino, e imaginando respostas para as questões que nos assolam (e permanecem, porventura, silenciadas pelo esquecimento ou o medo)? The Tree of Life, se nos propusermos a mudar os seus contextos e figuras, podia ser um sonho nosso – e Malick parece construir exactamente isso, o seu derradeiro devaneio, uma visão da transcendência e uma ode de proporções cósmicas ao sentirmo-nos vivos, ao amor (esse misterioso sentimento), à família e ao alcance do sagrado por via da comunhão com a Natureza. O terreno serve de ponte para o que realmente interessa: despertar-nos para uma mudança interior e fazer-nos parecer, ao mesmo tempo e de maneira visceral, pequenos e grandes. Os protagonistas são fantasmas que emergem de nós – à luz do filme, não existem referências quando se quer sentir a Vida em estado de graça. The Tree of Life, um dos mais misteriosos filmes do século, é, para além de um hino à humanidade, uma essencial obra sobre o Fim, percorrendo uma busca incansável pela compreensão da morte ou pela aceitação do seu mistério. [texto]

A elaboração do top seguiu os seguintes critérios: 1) filmes que tiveram estreia comercial em sala em Portugal e em 2011 (excluindo, por isso, projecções em festivais de cinema exclusivamente) , 2) apenas longas-metragens.

quarta-feira, dezembro 28, 2011

Reviver Pocahontas

A convite do blogue sound + vision escrevi sobre aquele que, ainda que não sendo o meu preferido dos estúdios de animação Walt Disney, foi um dos filmes mais marcantes da minha experiência pessoal (quando mais não seja porque foi o primeiro que vi em sala), Pocahontas (1995). Aproveito para agradecer aos autores pelo convite. Poderão ler o texto na íntegra aqui.

terça-feira, dezembro 20, 2011

Um Filme Indiscreto


É certamente uma das imagens mais marcantes que pudemos ver este ano no que toca ao cinema português. Ainda que por aqui já tenhamos falado de Um Filme Português, de Levi Martins, Vitor Alves, Miguel Cipriano, Jorge Jácome, Vanessa Sousa Dias e Carlos Pereira, não é de esquecer que a matéria de um filme pode reflectir (sobre) tudo, até de ele mesmo. Curiosamente, ou talvez não, esta representação das vivências domésticas (alguém falou na Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock?) assinala um denominador comum – a televisão, portadora da correria desenfreada dos nossos tempos (vemos Oprah Winfrey em baixo, outro canal indistinto mais em cima…). A missão do cinema parece ser, por isso, antes de dar a ver, olhar e fixar-se no objecto filmado como se o tempo deixasse de correr. E essa capacidade, para além de ser exclusivamente cinematográfica, transcende qualquer proveniência geográfica.

sábado, dezembro 17, 2011

Double Feature [8]:
Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor e O Atalho

O Double Feature é um espaço de opinião sobre dois DVDs lançados (ou reeditados) pelas distribuidoras portuguesas. Os comentários que seguem foram publicados na edição n.º 38 (Novembro 2011), na revista Premiere.

Trabalho de Actriz, Trabalho de Actor, de João Canijo
Midas Filmes 
Filme: ★★★ / Extras: 

Antes de João Canijo ter estreado em Portugal, no passado dia 5 de Outubro, o monumento cinematográfico Sangue do meu Sangue, a oitava edição do festival IndieLisboa apresentou, na secção Director’s Cut, este pequeno documentário que revela e reflecte o processo de criação entre o realizador e o elenco do qual nasceu o guião. É por isso que, através de um lado cronológico, ilustrativo e eminentemente lúdico (Canijo chegou a afirmar que o estudo deste objecto seria importante para as escolas de teatro e cinema, na antestreia do documentário em Lisboa que contou com a presença de Rita Blanco, Cleia Almeida e Nuno Lopes), acompanhamos o desenvolvimento das personagens e respectivos conflitos e cruzamentos dramatúrgicos. Muito embora tenhamos ficado com a sensação de que este filme, não obstante a sua relevância, não ficaria mal enquadrado como um extra de um DVD, parece difícil tornarmo-nos indiferentes à singularidade da metodologia incomum e empenho visionário dos actores de Sangue do meu Sangue

O Atalho, de Kelly Reichardt
Alambique 
Filme: ★★★ / Extras:  

Se o minimalismo foi continuamente uma característica apontada ao cinema de Kelly Reichardt (autora de Wendy e Lucy), então O Atalho afirma-se possivelmente como o exemplo mais demonstrativo. Não nos importemos também de chamar a Reichardt uma paisagista norte-americana, cuja pulsão contemplativa (tornada real pela direcção de fotografia de Christopher Blauvelt) encontra alguma semelhança com a de pintores como Frederic Church (1826-1900). Assim, a narrativa, inspirada num caso verídico situado em meados do século XIX, segue três famílias guiadas por Stephen Meek, um explorador que contratam e que afirma conhecer um atalho para a sua viagem (este percurso está identificado entre os trilhos históricos do Oregon). Apesar de registar um espírito histórico e primitivo de povoamento, união e descoberta, a câmara desta cineasta é consciente do seu tempo e não deixa de filmar algo que permanece profundamente contemporâneo: como o ser humano reage (e se revela) face ao desconhecido e a situações-limite.

É uma brincadeira

Apareceu no Festival de Cannes como um extra-terrestre – Alain Cavalier, que com Thérèse, drama espiritual sobre a freira carmelita Teresa de Lisieux, venceu o prémio do júri em 1986, apresentava Pater (na secção competitiva), que foi reconhecido como o OVNI da passada edição do festival e que teve direito a estreia nas salas de cinema portuguesas (a 20 de Outubro). 

Aqui, Cavalier e Vincent Lindon, amigos próximos, decidem vestir um fato e uma gravata, filmar-se e interpretar as suas próprias personagens (realizador e actor), acabando por dialogar um com o outro fingindo serem presidente da república e primeiro-ministro. “É uma brincadeira”, resumiu o realizador e protagonista, sendo que a questão ontológica fundamental quanto a este objecto básico, à partida respondida, parece restar-se a “é tudo a fingir?” (tal e qual Cópia Certificada, de Abbas Kiarostami). 

Será uma brincadeira com o espectador? Após um divórcio com a ficção, o autor de Pater parece demasiado preocupado com a mentira quer na indústria do cinema como na França de Nicolas Sarkozy. Anulando a transparência de que teorizou André Bazin e afundando-se numa mise en abyme pouco original, Cavalier esconde-se por detrás das câmaras digitais de vídeo à procura de uma verdade que nunca parece ser atingida. 

Sem nunca esquecermos a sua intenção e liberdade conceptual, este making of e filme ao mesmo tempo nunca nos chega a despertar o interesse – não pela sua forma aparentemente inédita, mas por ser, apenas e só, preenchido por um jogo de diálogos vazios e um retrato de uma amizade que tudo tem de palavroso e de falso.

Esta crítica foi publicada originalmente na revista Premiere (n.º 38 / Novembro 2011).

O filho de mil mulheres

Acompanhamo-lo como uma lenda viva e conhecemos o seu universo de fio a pavio. Mas com o tempo “ficou mais austero – quase japonês”, garante António Banderas. Ele é Pedro Almodóvar, que se revela com A Pele Que Habito, [que estreou no mês passado] entre nós. Este artigo foi publicado originalmente na revista Premiere (n.º 38 / Novembro 2011).
Quando a última edição do Festival de Cannes projectou e aplaudiu o thriller dramático A Pele Que Habito, sobre um cirurgião plástico que procura vingar-se da violação da filha, pairou a sensação de que o abandono do pastiche não era inesperado ou acidental (há dois anos, o melodrama com toques de noir Abraços Desfeitos fazia já pressentir uma viragem de retórica narrativa). No entanto, ao regressar, pela quinta vez, à secção competitiva do festival, Pedro Almodóvar admitiu, em conferência de imprensa, que, apesar da sua “vontade de aceder a outros géneros cinematográficos”, pensa que regressará ao género que o celebrizou em redor do mundo – a comédia pop

Tal como escreveu Thomas Sotinel, crítico de cinema do Le Monde, a relação dos franceses com o realizador foi sempre curiosa. Grande parte do público e da crítica viram-no como um pequeno fenómeno latino até 1988, ano em que estreia Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos. Ainda três anos antes, Almodóvar criticara publicamente os programadores de Cannes de ignorarem o cinema espanhol. Contudo, esta comédia “nervosa” tornou-se no seu primeiro grande êxito de bilheteira. Em França, foi vista por cerca de 600 mil espectadores e, nos EUA, acumulou uma receita bruta de 7 milhões de dólares (aproximadamente 5 milhões de euros, o que equivale nada mais, nada menos que 10 vezes mais do orçamento com que o filme foi produzido). Foi também com esse filme que Pedro Almodóvar viu, pela primeira vez, uma obra da sua autoria ser nomeada para o Óscar de melhor filme estrangeiro (nesse ano, foi levado pelo dinamarquês Pelle, O Conquistador, de Bille August). Mais tarde, em 1999, Cannes render-se-ia por fim ao fenómeno almodóvariano, colocando Tudo sobre a minha Mãe em competição. Apesar do prémio para melhor realizador, Almodóvar não se contentou por não levado a Palma de Ouro (que galardoou os irmãos Dardenne com a sua Rosetta) e, para além de ter acusado David Cronenberg, então júri da competição oficial, de inveja (como recorda Thomas Sotinel em Masters of Cinema – Pedro Almodóvar), impediu que Fala com Ela (Óscar para melhor argumento) fosse seleccionado para a edição de 2002 do festival. 

Em vésperas do final do século XX, quando Cannes viu, pela primeira vez, um filme de Almodóvar, na verdade encontrava no ecrã uma síntese amadurecida do que havia sido o seu cinema até então. A crítica de cinema do LA Weekly Ella Taylor chegou a escrever, para o livro 1001 Filmes para ver antes de morrer, que Tudo sobre a Minha Mãe contém, não obstante o seu “tom mais contemplativo, sombrio e tranquilo” característico de obras como A Flor do meu Segredo (1995) e Fala com Ela, “sequências repletas de honestidade e balbúrdia à semelhança das obras iniciais do realizador” e uma “definição elástica de feminilidade proposta por Almodóvar e pelo seu espírito conciliador”. 

Efectivamente, a ligação entre a mulher como protagonista e Pedro Almodóvar parece ser indissociável (salvo raras excepções, como é o caso deste mais recente A Pele Que Habito, a ter, entre nós, antestreia na [passada] edição do Lisbon & Estoril Film Festival e estreia comercial [no] dia 17 de Novembro), desde logo na sua infância. Nascido em princípios dos anos 50 (não se conhece o ano exacto), em plena época de ditadura franquista e de opressão social e cultural (exibiam-se produções de Hollywood e, quando espanholas, eram sentimentalistas), Pedro foi o terceiro filho de António Almodóvar, um condutor de carroças, e de Francesca Caballero. Segundo o realizador revelou no dia depois da sua morte, em 1999, a mãe criara, tal e qual a longa-metragem Central do Brasil de Walter Salles (lançada um ano antes), um negócio que envolvia o processo de leitura e escrita de cartas (experiência que marcaria o cinema de Almodóvar que, de acordo com as suas palavras, lhe mostrou “como a realidade precisa da ficção para ser completa, mais agradável e tolerável”). Em Fevereiro de 1989, Carmen Maura, uma das actrizes que mais colaborou com o autor espanhol, revelou, numa entrevista publicada no Le Monde, que “o segredo de Pedro é a sua mãe”, uma “mulher trabalhadora” e humilde que “nunca quis ver os filmes do filho”, apesar de “se contentar com os prémios que vence e traz para ela”, tendo-os colocado na parede ou em cima da lareira. 

Este lado modesto da mãe, fortalecido por uma afectividade eminentemente latina com a qual o cineasta conviveu durante os primeiros anos de vida, poderá estar, eventualmente, na origem da sua forma de olhar a mulher contemporânea desde as primeiras e subversivas curtas-metragens que filmou com uma câmara Super 8, mesmo antes da queda do regime. A criação dos objectos fílmicos, cuja narrativa, baixíssimo orçamento e utilização de recursos denunciavam o seu amadorismo inerente, decorreu numa altura em que Pedro Almodóvar tinha acabado de deixar a família e passado a viver em Madrid onde era reconhecido como hippie (participava como figurante em filmes, vendia bugigangas flower power na rua, usava o cabelo comprido e convivia com um círculo íntimo de amigos composto por toxicodependentes e fãs de David Bowie). Viviam-se então os tempos fulgurantes da Movida, um entusiasmado movimento contracultura, liberal e underground que, para além de ter coincidido com a morte de Franco em 1975 e com a subida ao poder do socialismo na capital, confirmou Pedro Almodóvar como um dos seus protagonistas. Após se ter estreado, em 1978, nas longas-metragens, com Folle… Folle… Fólleme Tim!, Pedro Almodóvar deixou, dois anos depois, o amadorismo de parte e lançou-se para uma produção com maior organização e orçamento, cujo título Pepi, Luci, Bom e Outras Tipas do Grupo descortinava o núcleo principal de personagens femininas (e feministas) da narrativa. Curiosamente, o realizador resumiu o filme (enquadrado fora de competição no festival de cinema de San Sebastián) ao jornal espanhol El País como um “policial”, uma “comédia sobre mulheres”, um “filme pop” (por causa do seu “ritmo, superficialidade e luminosidade”) e um filme de Bergman e de Cukor, tudo ao mesmo tempo. A presença da mulher forte, superior e cáustica ficaria desde então reconhecida, até o dia de hoje, como uma distintiva dominante da sua obra – de tal modo que, em 2006, quando apresentou Volver – Voltar no Festival de Cannes, viu todo o seu elenco constituído predominantemente por mulheres receber um prémio conjunto de melhor interpretação feminina. 

Por sua vez, Volver – Voltar é um daqueles casos em que Pedro Almodóvar representa um dos seus temas mais queridos – o retorno às origens e ao passado. E, curiosamente, o autor reuniu-se aqui com grande parte das actrizes que dirigiu, colocando lado a lado aquelas que foram, com o tempo, apresentadas como as suas “musas”: Carmen Maura e Penélope Cruz. Nesta longa-metragem, o autor realiza um exercício de memória que relembra a sua mãe, a infância passada em La Mancha e as fortes imagens que lhe ficaram gravadas no pensamento nessa época (tomemos como exemplo o ritual da cena inicial, na qual um grupo de mulheres lavam, num cemitério, com fascinante energia, os jazigos dos familiares). 

Também Má Educação (que abriu, fora da competição oficial, a edição de Cannes de 2004) se assumiu como uma representação do passado autobiográfico de Pedro Almodóvar, ainda que numa esfera dramatúrgica completamente diferente. Regressando aos seus dez anos de idade (que foi, em boa verdade, o número de anos que precisou para escrever o guião), Almodóvar demonstrou como a sua adolescência foi assombrada pelo colégio religioso de Salesianos que frequentou. Tendo cantado a solo ao lado do coro de crianças (onde cantou uma versão da música napolitana Torna a Surriento, que é inclusive interpretada no filme, numa das cenas mais tensas), o então jovem Pedro testemunhou, com silencioso horror, casos de abuso sexual que foram denunciados em Má Educação

Contrariando as expectativas dos habituais espectadores, o realizador e argumentista afastou aqui, por inteiro, a presença da mulher – mas não da feminilidade. De facto, esta característica inédita permitiu que Almodóvar, declaradamente gay, explorasse, com mais profundidade, o seu imaginário queer, o que acabou por se materializar na representação da descoberta sexual, do universo da prostituição homossexual e dos travestis e respectivos espectáculos, com o actor Gael García Bernal a vestir, como um camaleão, diferentes papéis. Em filmes anteriores, o autor havia já abordado a questão da sexualidade não-normativa, como foram os casos de Tudo sobre a minha Mãe e, sobretudo, A Lei do Desejo (de 1987), filme inclusivamente anterior à vaga de produções que, em inícios dos anos 90, colocou em vários festivais de primeiro plano títulos que tratassem esta temática. 

A par da descoberta da sexualidade, Má Educação apresenta, de igual forma, a descoberta do cinema (como ocorreu com o realizador nos anos 60), colando-se a ele ao ponto de o tornar parte da narrativa (de certa maneira, estamos diante de um caso de um filme dentro de outro filme). No que toca às referências, Pedro Almodóvar nunca guardou segredos, confessando a sua admiração pelo visual de Rainer Werner Fassbinder, o lado absurdo, anticlerical e transgressor de Luis Buñuel e o burlesco de Federico Fellini. Para além do mais, será impossível deixar de reconhecer na sofisticação melodramática dos filmes do espanhol a influência decisiva que teve o cinema moderno de Alfred Hitchcock e a obra de Andy Warhol. Para verificarmos a sua inspiração basta, apenas, que atentemos nas cores agressivas, quentes e “espanholas” dos cenários e do guarda-roupa, e na direcção artística luminosamente kitsch e pop

António Banderas, personagem principal de A Pele Que Habito, garantiu numa entrevista à agência de notícia Reuters que Almodóvar “amadureceu como realizador e como pessoa”, tendo ficado “mais austero - quase japonês”. Hoje preparámo-nos, sem receios, para descobrir a nova pele que habita o autor e que elevou, depois de Carlos Saura, o cinema espanhol a outro patamar. E continuaremos a acompanhá-lo como uma lenda, cuja vida e obra parecem ainda ter muito que nos dar a ver. 

Uma obra entre colaborações

“Voltar a trabalhar com o Pedro foi como regressar às minhas raízes. Foi ele que fez a minha educação artística”, confessou António Banderas na conferência de imprensa de A Pele Que Habito na mais recente edição do Festival de Cannes. Com esta longa-metragem, o casamento profissional entre os dois foi realizado pela quinta vez, após se terem encontrado na última metade dos anos 80 em Matador (1986), A Lei do Desejo (1987), Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos (1988) e Ata-me! (1990). Mas esta é apenas uma das muitas colaborações que podemos assinalar no cinema de Pedro Almodóvar. Vem-nos à memória uma das mais antigas – entre ele e o próprio irmão Agustín, com quem fundou em 1985 a produtora El Deseo, que viria desde então a produzir todos os seus filmes. Logo depois, como uma inevitabilidade, a actriz-fetiche Carmen Maura, que participou em Folle… Folle… Fólleme Tim! (1985), Pepi, Luci, Bom e Outras Tipas do Grupo (1980), Negros Hábitos (1983), Que Fiz Eu Para Merecer Isto? (1984), Matador, A Lei do Desejo, Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos e, após uma misteriosa separação que perdurou por 17 anos, Volver – Voltar (2006). Por sua vez, Penélope Cruz, a sua “musa” mais recente, estreou-se na sua obra com Em Carne Viva (1997), tendo trabalhado ainda em Tudo Sobre a Minha Mãe (1999), Volver – Voltar e em Abraços Desfeitos (2009). Podemos ainda apontar nomes como Cecilia Roth (Pepi, Luci, Bom e Outras Tipas do Grupo, Labirinto de Paixão, de 1982, Negros Hábitos, Que Fiz Eu Para Merecer Isto?, Tudo Sobre a Minha Mãe e um papel de figurante em Fala com Ela, de 2002), Chus Lampreave (Negros Hábitos, Que Fiz Eu Para Merecer Isto?, Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, A Flor do meu Segredo, de 1995, Fala com Ela, Volver – Voltar e Abraços Desfeitos) e Marisa Paredes (Negros Hábitos, Saltos Altos, de 1991, A Flor do meu Segredo, Tudo Sobre a Minha Mãe, um papel de figurante em Fala com Ela e, mais recentemente, uma colaboração em A Pele Que Habito). Também Blanca Portillo, Lola Dueñas e Lluís Homar são nomes que encontram alguma presença na obra de Pedro Almodóvar.

Premiere de Dezembro já está nas bancas

O número 39 da revista de cinema Premiere já está nas bancas. Lá poderão encontrar da minha autoria, para além do quadro das classificações de filmes em sala, a cobertura, com críticas e entrevistas, que fiz do festival doclisboa com Basílio Martins, a crítica ao novo filme dos irmãos Dardenne, O Miúdo da Bicicleta, que estreia este mês e a crítica a dois lançamentos recentes em DVD, Isto não é um Filme, de Jafar Pahani, e Muriel ou o Tempo de um Regresso, de Alain Resnais.

quinta-feira, dezembro 08, 2011

A antinomia em Morrer como um Homem

Após ter passado pelo Festival de Cannes e ter sido o filme de abertura no Festival Queer Lisboa, Morrer como um Homem, a terceira longa-metragem de João Pedro Rodrigues, foi por ele anunciada da seguinte forma: “O meu filme não pretende ser um retrato nem dos travestis nem dos transsexuais, é uma ficção.” E, com isto assente, o autor falou da protagonista do filme, Tónia, um travesti já veterano que teme ser destronado do estatuto de prima donna no local onde dá espectáculos e que, apesar de se vestir e de se comportar como uma mulher no dia-a-dia, rejeita a eventualidade de uma operação de mudança de sexo porque quer morrer como um homem. “Para mim a Tónia é como a Lola Montès que, no filme de Max Ophüls com o mesmo nome, representa o espectáculo da sua própria vida. No fim do meu filme a Tónia representa o espectáculo da sua própria morte” (suplemento Ípsilon do jornal Público, 14 de Outubro de 2009). 

Estas declarações servem de ponto de partida para que reparemos nesta longa-metragem como uma obra em que o corpo e o comportamento são filmados de modo a transparecer uma interioridade antónima e de como o conflito entre os dois (corpo versus pensamento) pode ser (é) tornado tema. 

A noção de espectáculo de que o autor falou e a imagem da/do protagonista fazem-nos recordar o que Gilles Deleuze escreveu em A Imagem-Tempo sobre a ligação do cinema de Andy Warhol com o corpo. Caso o substituíssemos por este Morrer como um Homem ficaríamos com uma ideia muito acertada do que este trata: “Ao fazer de marginais as personagens do seu cinema, o underground atribuía-se os meios de uma quotidianidade que não parava de escorrer nos preparativas de uma cerimónia estereotipada, droga, prostituição, travestismo. As atitudes e as posturas passam nesta lenta teatralização quotidiana do corpo (…)” Posto isto, consideramos com justeza a personagem da Tónia (e, por que não, do seu namorado toxicodependente) como elementos fundamentais “de um cinema dos corpos”, como precisamente o de Warhol, visto que, em parte (importante reforçar isto), “a personagem é reduzida às suas próprias atitudes corporais”, saindo “o gestus, isto é, um «espectáculo», uma teatralização ou uma dramatização que vale para qualquer intriga”. 

Contudo, não é de esquecer que o filme português é, em primeira instância e quanto ao seu género, um melodrama cuja teatralização do corpo protagonista (e suas atitudes e posturas) encontra correspondência directa com a mise-en-scène

E porquê? Em primeiro lugar porque, atendendo à art direction (assinada por João Rui Guerra da Mata), reparamos que “os décors são muitas vezes feitos em função das atitudes do corpo que eles comandam e graus de liberdade que lhes deixam” (por exemplo: o camarim colorido de Tónia com o guarda-roupa e distintivas da sua profissão bem como outras fotografias caracterizadores do seu carácter; o seu quarto, com um “altar” com um motivo religioso que assinala a sua devoção; a casa da Maria Bakker escondida na floresta, cuja decoração posicionada com uma rigorosa harmonia a afirma como uma personagem também ela severa e precisa nos movimentos). 

Em segundo lugar porque Morrer como um Homem, tal como Deleuze fala sobre o cinema de Jean-Luc Godard, “vai das atitudes do corpo, visuais e sonoras” (ligadas, neste filme, desde o espectáculo profissional ao da própria vida de Tónia) “até ao gestus pluridimensional, pictórico, musical, que constitui a cerimónia, a liturgia, o ordenamento estético”. Para exemplificar esta transfiguração podemos pensar no extraordinário plano-sequência da silenciosa Tónia e do namorado que canta no cemitério. Fazendo citação a Jacques Demy (em Os Chapéus de Chuva de Cherburgo há um plano que, em termos puramente formais, é muito semelhante), João Pedro Rodrigues “petrifica” as duas personagens e fá-las desfilar por cima de uma passerelle, filmando-as num travelling recto (fotograma em baixo). 


Entre os múltiplos significantes desta sequência podemos retirar a sua artificialidade e musicalidade [1] inerentes (ligada a toda a restante estética do filme e que tem, em grande parte, que ver com o próprio mundo em que vive a protagonista) e, provavelmente como consequência do irrealismo, a noção de espiritualidade: já o cemitério se apresenta como local que, ao fazer transparecer (de novo a ideia de espaço exterior como ponte de acesso à interioridade e a de que “as paisagens são estados mentais”), nos relembra o conflito essencial de Tónia – querer viver como mulher mas não poder morrer como tal aos olhos de Deus. Porque, e tal como Deleuze escreveu, “mesmo se decidir por ela, não muda nada. O seu corpo conserva sempre a impressão de uma indecidibilidade que não era senão a passagem da vida”. 

Todo o comportamento, as posturas e decisões de Tónia revelam, em si mesmos, a ambiguidade, característica do cinema moderno, que serve de motor de progressão deste filme. O método de João Pedro Rodrigues parece ser, como o autor de A Imagem-Tempo descreveu o de Antonioni, observar “o interior pelo comportamento, já não a experiência, mas «o que resta das experiências passadas», «o que vem depois, quando tudo foi dito»”. 

Morrer como um Homem é, por isso, um objecto singular no sentido em que, ao mesmo tempo, o corpo e o pensamento (neste caso do / da herói / heroína – e só esta ambivalência é suficientemente demonstrativa) coexistem e se anulam através de um modo de viver (como homem ou como mulher, é indiferente) à frente da câmara e de um modo de filmar essa vida trágica e indecisa. 

[1] A Cinemateca Portuguesa programou, em Novembro, um ciclo de filmes ligados à noção de musicalidade no cinema, tendo incluindo Morrer como um Homem na selecção. Na sessão de apresentação, João Pedro Rodrigues referiu a cena “tingida” de vermelho em que ouvimos, com as personagens paralisadas do filme, a canção Calvary, de Baby Dee.


Trabalho realizado no âmbito da cadeira de Estética no Cinema 1, da Escola Superior de Teatro e Cinema.

terça-feira, dezembro 06, 2011

Para os Cahiers temos Moretti

Já se tornou num hábito. Desde 1951 (com alguns anos em branco), no final do ano, a revista de cinema francesa Cahiers du Cinéma lista e divulga aqueles que considera serem os dez melhores filmes do ano. Os de 2011 já estão escolhidos e elegem “Habemos Papam – Temos Papa”, a mais recente longa-metragem de Nanni Moretti que está, actualmente, nas nossas salas de cinema, como o melhor dos melhores. A surpresa (que, em boa verdade, o deixou de ser com a passagem dos anos) é que, em segundo posição e em ex-aequo com a Palma de Ouro A Árvore da Vida, de Terrence Malick, encontramos O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira.

As curiosidades? Primeiro: nos três anos passados os Cahiers fizeram menção a filmes portugueses (em 2010, a Morrer como um Homem, de João Pedro Rodrigues, em 2009, a Singularidades de uma Rapariga Loira, de Manoel de Oliveira e, em 2008, a Juventude em Marcha, de Pedro Costa). Segundo: o cineasta português veterano já foi mencionado nas listas da mítica publicação francesa 10 vezes (em 1981, com Francisca, que esteve na primeira posição; em 1989, com Os Canibais; em 1990, com Non ou a Vã Glória de Mandar; em 1993, com Vale Abraão; em 1998, com Inquietude; em 1999, com A Carta; em 2001, com Vou Para Casa; em 2002, com O Princípio da Incerteza; em 2009 e em 2011).

A lista deste ano faz menção ainda a filmes como Hors Satan, de Bruno Dumont, Melancolia, de Lars Von Trier, e a Super 8, de J. J. Abrams:


1. Habemus Papam - Temos Papa, de Nanni Moretti
2. O Estranho Caso de Angélica, de Manoel de Oliveira 
em ex-aequo com A Árvore da Vida, de Terrence Malick 
4. Hors Satan, de Bruno Dumont 
em ex-aequo com Essential Killing - Matar para Viver, de Jerzy Skolimowski 
6. Melancolia, de Lars Von Trier 
em ex-aequo com Un été brûlant, de Philippe Garrel 
8. Super 8, de J.J. Abrams 
em ex-aequo com L'Apollonide, de Bertrand Bonello 
e com O Atalho, de Kelly Reichardt

quinta-feira, dezembro 01, 2011

O que é o cinema (versão 3D)?

[ver também Que futuro para o 3D?]

No passado dia 27 de Novembro, o portal Deadline publicou uma entrevista com Martin Scorsese centrada na sua mais recente longa-metragem, A Invenção de Hugo (que tem estreia nacional no dia 16 de Fevereiro do próximo ano). Nela, o autor de filmes como Touro Enraivecido ou Shutter Island confessa ter desejado trabalhar com as três dimensões no cinema desde 1953 (ano em que viu o primeiro filme a três dimensões) e ter sido sempre fascinado pelas possibilidades do 3D (que “deve ser encarado como um elemento e uma ferramenta narrativos sérios, sobretudo contando uma história com profundidade como narrativa”). Agora que concluiu Hugo (título original; trailer aqui), Scorsese admitiu preferir filmar, no futuro, apenas com esta tecnologia pensando que, caso tivessem sido produzidos dessa forma, as narrativas de Taxi Driver e O Aviador teriam sido beneficiadas. 

Comecemos por ignorar as possíveis reacções de tom provinciano que ou 1) justificassem as declarações do cineasta com o facto de poder estar, única e exclusivamente, a promover o seu filme, ou 2) rejeitassem a validade das respostas por desagrado pessoal ao 3D. E pensemos: quando Martin Scorsese compara as três dimensões com o Technicolor (que durante mais de uma década “foi relegado para musicais, comédias e westerns. Não era destinado aos géneros sérios, mas agora tudo é a cores”), quando comparamos (nós) o advento do som com o 3D, que quer tudo isto significar? Scorsese só tem uma resposta: que os filmes estereoscópicos são uma evolução da própria imagem cinematográfica. "A tecnologia avançando e podendo eliminar os óculos, que são um empecilho para alguns espectadores, então por que não? É apenas uma progressão natural". 

Posto isto, e tendo presente que a noção de imagem cinematográfica se transformou ao longo do seu tempo de existência, questionamos: para onde caminha o cinema? Ou, mais uma vez, uma questão-limite: o que é o cinema? 

As ideias de tridimensionalidade e de profundidade estiveram, desde a sua origem, sempre assentes naquilo que entendemos que é o cinema. E o 3D parece apenas revelar uma espécie de desejo de imersão, que atenue o distanciamento entre o espectador e as imagem e/ou narrativa apreendidas e que auxilie aquilo que conhecemos como suspensão voluntária da descrença

Assim sendo, importa que estejamos permanentemente atentos à evolução da tecnologia relativa à realidade virtual, cujos testes e resultados têm sido mais notórios na área ligada ao videojogo. E porquê? Porque é a sua evolução determinante que poderá responder aos limites que poderão existir, ou não, na imagem cinematográfica. No futuro, poderemos considerar cinema um espaço virtual conceptualizado por um individuo, no qual decorra algum tipo de narrativa e que possamos assistir “estando” lá? As possibilidades são infinitas. 

Para já, temos as notícias que envolvem a progressão da realidade virtual e seus derivados e obras invulgares, que nos fazem repensar tudo aquilo que é audiovisual, como a do francês Maurice Benayoun. Não querendo, contudo, ir mais além daquilo que temos (o 3D), ficamos com a ideia de que o 3D é, tão-somente, um indício de que o cinema ainda não parou na busca de uma definição e das suas fronteiras.

quinta-feira, novembro 17, 2011

Isto não é um filme

Depois de confrontados com as características e as qualidades de uma série de livros e de filmes (hoje estreia o penúltimo) cuja receita se tornou no factor de peso quando falamos de Twilight, será que podemos descrever este fenómeno pela literatura e / ou pelo cinema? Evidentemente que não. Quando falamos hoje disso falamos não só de uma união de expectativa entre o seu público e comunicação social como também – e talvez sobretudo – do poder desequilibrado da imagem mediática.

domingo, novembro 13, 2011

A verdade e o falso contados pela ficção em Atonement

Em 2001, o escritor inglês Ian McEwan publicou “Atonement” (tradução portuguesa: “Expiação”), livro que viria a dar origem à homónima segunda longa-metragem do também britânico Joe Wright, seis anos depois. A história é simples: no dia mais quente do ano 1935, Briony Tallis, uma rapariga com pouco mais de 10 anos que aspira ser romancista, que, após ter assistido à tensão sexual vivida entre a irmã Cecilia e Robbie, filho da criada de quem a jovem tem uma paixoneta, assiste nessa noite à violação de uma prima e acusa falsamente Robbie de ter sido o responsável. A mentira de Briony separa a irmã de Robbie, visto que o conduz à prisão e, mais tarde, à França em tempos de Segunda Guerra Mundial, onde vem a falecer. Sentindo-se responsável pelo destino das duas personagens, Briony procura, ao longo da história, uma espécie de auto-penitência (ou, exactamente como indica o título, de expiação), algo que ocorre quando publica, aos 77 anos de idade, o seu último romance, Expiação, no qual descreve toda a história (com tudo aquilo que é “facto” e “ficção”) que precedentemente assistimos.


Se nos debruçarmos na adaptação do romance para cinema verificamos que o filme vive e sofre da dualidade verdade / mentira através de elementos que não são apenas dramatúrgicos. De facto, o Atonement de Joe Wright parece comprovar como a imagem cinematográfica (qualquer que ela seja) anula, de imediato, qualquer efeito de verdade. No primeiro plano do filme (em cima), aproximamo-nos, no seguimento de várias figuras em miniatura de animais, da personagem da criança Briony que, de costas para a câmara, acaba de escrever a sua primeira peça de teatro. 

O travelling impossibilita-nos de não deixarmos de recordar Gilles Deleuze que, em A Imagem-Tempo, declarou que “o artista é criador de verdade, porque a verdade não tem de ser atingida, encontrada nem reproduzida, tem de ser criada”. Porquê? Primeiro: porque a primeira imagem (a casa), reproduz, quase exactamente, o espaço em que o filme está a situado e filmado (imagem ao lado, que pertence à segunda cena), relembrando que a imagem tornada cinematográfica é, necessariamente, uma representação (ou melhor: uma transformação) do real e, por conseguinte, da verdade. Segundo: porque a imagem das miniaturas dos animais é simbólica, parecendo uma representação da própria criação do artista e que nos posiciona no filme não como criações, mas como espectadores, como quem assiste à criação. E por último: porque, ao observarmos a personagem do criador (Briony), pensamos, em segundo nível, no criador da personagem do criador (Joe Wright / Ian McEwan), que tornam possível, pela ficção, a existência de (uma) verdade. 

O primeiro plano (tal como todo o restante filme) virá a transformar-se, com maior evidência após tomarmos conhecimento de que todo o filme é uma construção da personagem protagonista (que a escreveu), num ponto de vista que, mais que subjectivo, apetece chamar de intra-narrativo. De modo a revelar esse lado, o filme de Joe Wright é conduzido por uma banda musical (da responsabilidade do italiano Dario Marianelli) com a presença constante do som da máquina de escrever e de uma cena final que, não obstante o seu lado comovente, é preenchida com uma carga de amarga ironia (de modo a que qualquer tipo de espectador pense: estou a ver algo que não é verdadeiro). E, por isso, questionamos: se toda e qualquer ficção é uma falsa construção, o que faz com que Atonement nos provoque este tipo de reflexão? Será legítimo que nos frustremos, no final, por nos termos apercebido de que caímos nas teias da mentira (ou da construção da verdade) do artista? O efeito perverso de quebra da transparência narrativa no final deste filme reposiciona e relembra a nossa condição de espectador que quer assistir a uma mentira – não podemos, por isso, reclamar a falsidade se nós a pedirmos. Nesse aspecto o cinema como o dito clássico foi sempre muito cuidadoso – havia que construir a mentira do início ao fim de modo a que se transfigurasse numa realidade e numa verdade fechadas. Contudo, o cinema moderno e contemporâneo têm dado exemplos de como a ficção pode repensar o duelo entre a verdade e a mentira (como o cinema de Michael Haneke) e de como podemos tomar a consciência de que adoptámos um ponto de vista [1], e que este “pertence tanto à coisa que a coisa não pára de se transformar num devir idêntico ao ponto de vista” (Deleuze).

É, porventura, por essa demonstração da perspectiva que Atonement nos desafia com três imagens de Briony em confronto com a verdade (ao lado). Nos três planos acompanhamos as diferentes fases do filme e do conflito da protagonista: no primeiro, Briony conta a sua mentira, no segundo, lida com as suas consequências, no terceiro, chega por fim ao acto de expiação, que foi transformar os resultados da sua mentira na ficção, já que, como escreveu Deleuze, “a ficção não se refere a um ideal do verdadeiro que lhe constitui a veracidade, mas torna-se (…) uma ficção simuladora ou antes uma simulação de ficção”. Será curioso notar que todos eles, centrados na personagem, reflectem a imposição de um olhar sobre o do de Briony, dando importância ao acto de ver (que está, afinal, na origem do cinema). No terceiro momento, a imagem de cinema torna-se na de televisão (porque vemos a Briony com 77 anos a demonstrar a resolução do seu conflito numa entrevista para um programa de TV: continuar a mentir). Mas quererá isto significar que a imagem televisiva é portadora de verdade? Evidentemente que não e muito pelo contrário: apenas nos traz a grave evidência de que ela sofre de uma falsidade maior do que a do próprio cinema. 

[1] Sobre isso, Atonement filma repetições (com raccords perfeitos) de alguns momentos sobre vários pontos de vista, montando-os entre intervalos de acção (são caso disso, na primeira parte do filme, as cenas na fonte, na biblioteca ou quando Robbie é preso).

Trabalho realizado no âmbito da cadeira de Estética no Cinema 1, da Escola Superior de Teatro e Cinema.

terça-feira, novembro 08, 2011

Ver Tarkosky / ver Tarkovsky / ver Tarkovsky


Quando ontem, no Centro Cultural de Belém, na conferência (melhor será dizer: sessão de perguntas e respostas) de Andrei Tarkovsky (filho), acompanhado pelos comissários da exposição “Luz Instantânea – Fotografias, itinerários e saudades de Andrei TarkovskyAlberto Ruiz de Samaniego e José Manuel Mouriño, alguém denunciou a dificuldade de encontrar uma cópia de DVD com imagem fidedigna dos filmes do realizador soviético, falou-se sobretudo de respeito para com o realizador. 

Isto porquê? Primeiro: porque, aparentemente, existem inúmeras diferenças, de cópia para cópia, de um mesmo filme de Tarkovsky – sobretudo a nível da imagem (vide exemplo em cima: um fotograma de O Espelho, longa-metragem de 1975, decomposto em três versões distintas). Segundo: porque, de acordo com o que foi dito na sessão, só podemos respeitar o autor se virmos a obra de acordo com a versão (e visão) que foi originalmente idealizada. 

Neste caso e seguindo o raciocínio questionamo-nos: por que razão o CCB faz um ciclo de Andrei Tarkovsky exibindo DVDs comerciais e não as cópias de 35 mm (recuperadas e restauradas pela Fundação Andrei Tarkovsky, de Florença)? E, tomando como princípio de que o equipamento de projecção é inexistente, outra pergunta: por que é que a Cinemateca Portuguesa, cujo objectivo passa também pela “divulgação do património cinematográfico”, salvaguarda nos seus arquivos filmes que, muito raramente, vêem actualmente luz do dia e outros que, quase sempre todos os meses, são projectados? 

Este problema atira-nos para um debate ainda mais profundo (os critérios de programação e a missão da Cinemateca e a pertinência de um ciclo cinematográfico no CCB) e dispara, contra o espectador, uma certa frustração: se eu não consigo aceder às cópias de 35 mm dos filmes de Andrei Tarkovsky, como hei-de ficar próximo da sua concepção inicial e, por conseguinte, como posso não desrespeitá-lo? 

A conclusão a que nos obrigamos a chegar é simples mas infeliz: não existindo a sua divulgação o desrespeito é, em instância final, para com o espectador.

domingo, novembro 06, 2011

LEFFEST 2011 (2): A nossa necessidade de sermos amados

O que é um drama social? A questão não é propriamente ingénua – partindo de moldes muito definidos como podemos caracterizar a vaga do neo-realismo em Itália e suas diversificações, mais ou menos interessantes, por muitos outros territórios e que se mantêm contemporâneas, como podemos definir as personagens, a estética e a linguagem no cinema fora do seu contexto cultural (e social, político, económico…)? De qualquer das formas, fiquemos com a evidência de que qualquer rótulo e género se revelam, em instância final, inconsequentes. 

Tudo isto para falar dos irmãos Dardenne e do seu Miúdo da Bicicleta (título português de Le Gamin au Vélo, ontem exibido no segundo dia do Lisbon & Estoril Film Festival, no Cinema Monumental, em antestreia e sessão dupla às 21:30 e que foi acompanhada por uma masterclass com Luc Dardenne). Se ambos foram continuadamente associados ao conceito de drama social, apresentando as suas personagens afectadas pelos conflitos atómicos provocados pela profissão (ou a sua ausência) ou pela família (novamente: ou a sua ausência), então a longa-metragem mais recente dupla comprova o carácter redutor dessa mesma noção. Porquê? Porque o filme é “uma espécie de conto de fadas”, de acordo com as palavras de Luc e Jean-Pierre: há o herói, os “malfeitores que fazem o rapaz perder as ilusões” e “Samantha, que aparece como uma fada”. Não será, por isso, imponderado falarmos do magnífico filme de Vittorio De Sica, Ladrões de Bicicletas (1948), onde se retrata um certo tipo de infância, de relação familiar e a bicicleta como gancho dramatúrgico. 

Assim, e ao contrário da desilusão que Oslo, 31 de Agosto (segunda longa-metragem de Joachim Trier que, enquadrando-se na competição oficial do festival, foi ontem exibido no Espaço Nimas às 22:00) demonstrou ser (já que, salvo pelo menos duas cenas de excepcional beleza – como o plano-sequência final –, se perde num ritmo excessivamente palavroso e pouco convincente), os irmãos Dardenne comprovaram que é possível, na moral e nos tempos que correm, pensar uma dura realidade a partir de uma ficção que demonstre que as pessoas se podem preocupar umas com as outras. Ou em poucas palavras: que a nossa necessidade de sermos amados pode ser consumada. 

E, para o reforçar, há a introdução insólita da música não diegética no cinema dardenniano. “Pareceu-nos que a música, em certos momentos, poderia agir como uma carícia tranquilizadora para Cyril” (o protagonista), declararam num comunicado de imprensa. Tendo escolhido um excerto do adágio do Concerto Nº 5 para Piano e Orquestra – Imperador de Beethoven (que disponibilizo em baixo), os irmãos parecem transfigurar o impossível – o real, a ficção e aquilo que há pelo meio.


sábado, novembro 05, 2011

LEFFEST 2011 (1): Gus Van Sant contra o mundo

Se o cinema pode ser um mecanismo que permita que observemos e exploremos a vida, Gus Van Sant parece então ter descoberto a forma de fazer o mesmo com a coisa misteriosa que é, para si, a morte. Restless (título original; que estreia no próximo dia 10 de Novembro e foi exibido ontem em antestreia no Cinema Monumental no âmbito do primeiro dia do Lisbon & Estoril Film Festival – sessão dupla às dez e à meia-noite) começa por nos expor, então, um dilema que é, sobretudo, eminentemente cinematográfico: como representar aquilo que é invisível ou, por outro lado, aquilo que não existe? Continuando a filmar os vivos, evidentemente. 

Para o realizador norte-americano a morte não é um tabu. Demonstrara-o já na sua “trilogia da morte” (Gerry, em 2002, Elephant, Palma de Ouro de 2003, e Last Days – Últimos Dias, em 2005) e em Paranoid Park, apresentado em 2007, ponto de equilíbrio (ou assim quisemos acreditar) entre o cinema independente e mainstream. Mas Gus Van Sant parece não estar interessado em participar nesse duelo, tanto que Inquietos (título da versão portuguesa) se afirma claramente (pela transparência e um certo convencionalismo dramatúrgicos, muito embora o argumento não siga o arco arquetípico dos filmes clássicos, dado que não há qualquer ponta de objectivos per se) como um filme para o público (e não para um público), sem que isso equivalha ao abandono das suas ideias e da sua omnipresença enquanto autor. 

Na sua mais recente longa-metragem, a morte volta a estar no núcleo temático, a par do protagonismo nostálgico dos adolescentes. Partindo de uma amizade que, tão rápida como lentamente, se transfigura no princípio de uma relação amorosa, Inquietos segue Mia Wasikowska como Annabel, doente de um cancro terminal, e o filho de Dennis Hopper (mítico realizador e actor a quem o filme é no fim dedicado), Henry Hopper, como Enoch, assombrado, literalmente, pelos fantasmas do passado. Aqui, a proximidade do fim sofre da dicotomia entre a angústia e a indiferença. E isso é, porventura, a característica que transforma o filme distinto – quer de qualquer um que Gus Van Sant tenha realizado, como também de qualquer outro que tenhamos visto enquadrado num certo tipo de estética que um filme como Inquietos pode ser rotulado (mal, naturalmente). Angústia pelos vivos que partem (Annabel) e pelos vivos que ficam (Enoch); indiferença pela evidência da inexistência de algo pós-vida e, como consequência, pelo absurdo da vida. Há duas cenas particularmente chocantes em Inquietos: numa delas, Enoch confronta a namorada com o facto de não existir nada quando morremos; noutra, Gus Van Sant ousa em nos apresentar a sua visão da morte (um plano completamente negro). Importa, de igual modo, descrever como esse choque com o espectador se distingue do horror mediático que é nosso familiar contemporâneo. Ao vermos cenas do ataque nuclear em Nagazaki, ocorrido em Agosto de 1945, somos confrontados com a nossa indiferença face ao massacre que assistimos diariamente nos meios de comunicação social – perante esse estado de espírito, Gus Van Sant prefere não nos dar a morte, mas aquilo que temos por viver (e é isso que nos deixa em desassossego, em restless, precisamente). 

É por isso que a convivência com a morte não deixa de requerer, necessariamente, um lado ao mesmo tempo espiritual e, à falta de melhor palavra, realista. Primeiro: porque o sagrado, materializado na figura do fantasma Hiroshi, serve de ponte para nos relacionarmos com aqueles que não já são e, por conseguinte, atenuarmos um certo sentimento de solidão; segundo: porque a natureza no seu estado bruto, observada por Annabel, proporciona que entendamos a vida num constante estado de espanto e deslumbramento. Ou, melhor dizendo, de felicidade. Porque, como recorda a personagem encarnada por Mia Wasikowska, o pássaro canta de manhã porque se apercebe que ainda está vivo (reparemos, já agora, na frequente presença dos sons dos pássaros nos últimos filmes de Gus Van Sant – em Elephant, Last Days, Paranoid Park e, agora, em Restless –, associados sempre à morte). E, se por si só a utilização invulgar do som nos bastava para descrever o cinema simbólico de Gus Van Sant, associemos toda aquela atmosfera plácida e tranquila (fruto da colaboração com o director de fotografia Harris Savides e o compositor Danny Elfman, responsáveis pela imagem e pela banda musical de Milk, respectivamente) ao contexto do Outono (já visto em Elephant), estação agora associada ao realizador. 

Muito embora possamos pensá-lo um filme sobre a morte será melhor desenganarmo-nos. Parece ser sobre uma questão ainda mais fundamental: como viver a vida ou, sem redundâncias, como viver? Porque, como aqui ouvimos, a morte é fácil, o amor (ou toda a vida, não nos importemos de acrescentar) é que é difícil. Em Inquietos chora-se – mas pelos vivos. No plano final do filme percebemos que a memória é o recurso que nos é mais caro para lidarmos com tudo aquilo que é efémero, tudo aquilo que já não é.

sexta-feira, novembro 04, 2011

25 anos depois, o regresso do escultor do tempo



Justapor uma pessoa com uma envolvente que seja ilimitada, reuni-la com um número incontável de pessoas a passar ao pé dela e ao longe, relacionar uma pessoa com o mundo todo, esse é o significado do cinema. 
 Andrei Tarkovsky
Em vésperas daquele que podemos seguramente reconhecer como o maior evento cinematográfico do ano em Portugal, tomei a liberdade de reunir uma série de artigos sobre o maior dos cineastas soviéticos: Andrei Tarkovsky. O realizador merecerá um ciclo em Belém (Lisboa) com a exibição da sua obra integral (os sete filmes apresentados por ordem cronológica: "A Infância de Ivan" (1962), "Andrei Rubliov" (1969), "Solaris" (1972), "O Espelho" (1975), "Stalker" (1979), "Nostalgia" (1983) e "O Sacrifício" (1986)) e de um documentário de Chris Marker (“Une journée d’Andrei Arsenevich” (1999)); um concerto pelo pianista François Couturier e pelo Tarkovsky Quartet; a exposição de fotografia com mais de 300 polaroides “Luz Instantânea - Fotografias, Itinerários e Saudades de Andrei Tarkovsky", comissariada por Manuel Mouriño e Alberto Ruiz de Samaniego, e, por fim, uma série de conferências, uma delas por Andrei Tarkovsky-filho. O Centro Cultural de Belém (CCB), que se encontra a organizar “Andrei Tarkovsky – Esculpir o Tempo” de 7 de Novembro a 7 de Dezembro, criou um jornal que acompanha o ciclo e que inclui textos como o de Augusto M. Seabra, e que disponibilizo, na íntegra, a seguir a este parágrafo. Aproveito para relembrar alguns artigos já publicados n’O Sétimo Continente, como “As raízes do colectivo social no indivíduo, segundo Dovzhenko e Tarkovsky”, “Tarkovsky ou o ícone do cinematógrafo” e a biografia “Um passeio tarkovskyano”.

Tarkovsky no seu próprio mundo
Centro Cultural de Belém

Numa entrevista concedida a Ian Christie, durante uma visita a Inglaterra, em 1981, Andrei Tarkovsky disse: “O meu objetivo é criar o meu próprio mundo e estas imagens que criamos não significam nada, para lá das imagens que são.” Desde a sua morte, em 1986, aos cinquenta e quatro anos de idade, que a obra cinematográfica de Tarkovsky tem vindo a ser reapreciada nesta perspetiva: o seu mundo, o que ele criou em sete filmes incomparáveis, é inconfundível e a sua linguagem (as suas imagens) constituem um constante desafio não tanto à imaginação dos espectadores mas à sua capacidade de verem o que lá está – e o que está para lá do espelho. O cinema de Tarkovsky seria apenas perturbante, se não se desse o caso de o seu mundo, aquele que ele quis construir, tocar cordas profundas da sensibilidade humana. A relação do espectador com o filme não é, assim, uma interrogação dirigida à superfície do que é mostrado, às puras formas, mas a um sentido mais íntimo que nos situa fora do nosso universo de referências habituais. Está lá tudo o que nos permitiria, teoricamente, ler uma teia de imagens, sentimentos e ideias que nos é conhecida; mas tudo o que lá está é (e não é) parte de um processo de aprendizagem que nos coloca um desafio maior: o que nos falta para sermos figuras deste universo de sombras e espetros? A sua obra fotográfica, mais de 300 polaroides tiradas a partir do final dos anos setenta, faz parte dessa construção de um mundo pessoal e intransmissível. A escolha de umas largas dezenas de provas desse espólio fotográfico permite-nos, pela primeira vez em Portugal, abordar uma outra dimensão do seu trabalho de reelaboração do real, que acabará por se reconhecer como instrumento útil de alargamento da nossa visão do que foi o mundo que ele criou. Ao propor um ciclo sobre o cinema e a obra fotográfica de Andrei Tarkovsky, o CCB pretende evocar, vinte e cinco anos depois da sua morte, um dos mais perturbantes criadores do século XX. À medida que o tempo passa, a obra de Tarkovsky ganha cada vez maior densidade e espessura: é como se as suas imagens se fossem transformando lentamente, quase ser darmos por isso, em esculturas arrancadas a uma matéria sem corpo nem idade – o tempo, precisamente. É do escultor do tempo que foi Tarkovsky que falamos neste ciclo.

Andrei Tarkovsky, a busca da transcendência
Augusto M. Seabra

Quando descobri os primeiros filmes de Andrei Tarkovsky foi para mim um milagre. Encontrei-me, de súbito, perante a porta de um quarto de que a chave me faltara até então. Um quarto onde eu sempre tinha querido penetrar e onde ele se sentia completamente à vontade. Senti-me encorajado e estimulado: alguém tinha expresso o que eu sempre tinha querido dizer sem saber como. Se Tarkovsky é para mim o maior, é porque ele traz ao cinematógrafo – na sua especificidade – uma nova linguagem que lhe permite de agarrar a vida como aparência, a vida como sonho.
Ingmar Bergman

Filho do poeta Arseny Tarkovsky, influência marcante na sua obra, Andrei Tarkovsky (04-04-1932/29-12-1986) realizou sete longas-metragens em 25 anos: A Infância de Ivan, Andrei Rubliov, Solaris, O Espelho, Stalker, Nosthalgia e O Sacrifício. Na união soviética viu-se a braços com dificuldades várias, tendo a divulgação dos seus filmes sido feita após anos de retenção – caso de Andrei Roubliov – ou num circuito muito restrito, e sujeito a “críticas oficiais” – caso de O Espelho. Quando optou por se radicar no Ocidente, em 1984, Tarkovsky sempre afirmou que as razões do seu afastamento não eram políticas (recusando o epíteto de “dissidente”) mas sim artísticas. 

Poucos terão sido ou são os cineastas contemporâneos a terem assim reivindicado uma condição de “artista” que se diria, senão desacreditada, pelo menos desvalorizada. Nesta perspetiva, o seu confronto com o sistema soviético era inevitável. Tarkovsky não podia ser nunca um “transmissor de mensagens” politicamente determinadas – o seu cinema era espaço de uma profunda interrogação sobre o ser e o tempo: “O cinema deve ser um meio de explorar os mais complexos problemas do nosso tempo, tão vital como aqueles que durante séculos foram os temas da literatura, da música e da pintura. É apenas uma questão de procurar, buscando de cada vez o trilho, o canal, para ser seguido pelo cinema.” 

Para além das fronteiras políticas dos sistemas, há que reconhecer que também a receção no Ocidente do cinema de Tarkovsky não foi uma “questão fácil”. O seu sistema de valores – sempre afirmado e reafirmado –, os longos discursos em que o explicitava, a invocação latente ou explícita de uma ordem ou de entidade transcendental, tudo isso eram características herdadas da cultura russa (e quantas vezes não se invocou – e ele invocou – o nome de Dostoievski) que não poderiam deixar de ser profundamente estranhas às nossas sensibilidades ocidentais. 

Mas o “milagre” do seu cinema foi o de a cada momento se transfigurar. Tarkovsky foi um cineasta que aliou a maior das abstrações a uma prodigiosa reinvenção da matéria. A este respeito é particularmente significativa e axial à sua arte cinematográfica a conceção de “escultura no tempo”. 

“Quais são as forças determinantes do cinema, e o que delas emerge? Qual o potencial, os meios, as imagens não apenas formalmente, mas também espiritualmente? E com que material trabalha o diretor? […] Pela primeira vez na história das artes, na história da cultura, o homem encontrou os meios de dar uma impressão de tempo. E simultaneamente a possibilidade de reproduzir esse tempo no ecrã quantas vezes quiser, repetindo-o e a ele voltando. Assim o homem adquiriu uma matriz para o tempo real. […] O tempo, impresso em formas factuais e manifestações, é essa a suprema ideia do cinema como arte, levando-nos a pensar sobre a riqueza das múltiplas possibilidades do filme, sobre o seu futuro colossal. Foi sobre esta ideia que construí as minhas hipóteses de trabalho, tanto teóricas como práticas. Qual é a essência do trabalho do realizador? Podemos defini-lo como esculpindo no tempo. Tal como o escultor toma um amontoado de mármore e modela-lhe conscientemente as formas da peça acabada e remove tudo o que não faz parte disso, também o cineasta, de um ‘amontoado de tempo’ feito de um enorme e sólido complexo de factos vivos, corta e retira tudo de que não necessita, deixando apenas o que é um elemento do filme acabado, que se tornará em parte integral da imagem cinemática.” 

Recusando os métodos dominantes de montagem, Tarkovsky privilegiou as transformações internas ao plano, nos seus extraordinários planos-sequências (desenrolando-se longamente no tempo, pois), como se num tempo concordante com o tempo real da perceção do espectador se operasse nos seres, nos objetos e na matéria em geral, as metamorfoses que indiciavam um “outro sentido”. 

Para além de todas as referências específicas da cultura russa, no seu cinema conjugaram-se duas fortes referências – a transparência idealizada da pintura renascentista italiana (Leonardo Da Vinci, sobretudo) e a condensação temporal e a subtileza de sentido de um haiku japonês. 

Mas para além dessas referências, importa salientar outro aspeto, crucial: visando ainda valores transcendentais, o cinema de Tarkovsky é espantosamente sensorial (sensível e para ser sentido) com as suas matérias elementares e atmosferas: a terra, a água, a lama, o nevoeiro. O Espelho, o mais “pessoal” dos seus filmes, num sentido autobiográfico, e Stalker, são a este respeito exponenciais. 

Mas foi provavelmente no derradeiro O Sacrifício, feito na Suécia, que o cinema de Tarkovsky teve o seu momento mais paradigmático. Aí está presente, sem dúvida, a interrogação mais radical da sua obra: no final, quando o pai emudece, em cumprimento de uma promessa por o dia ter amanhecido sem que se tivesse declarado a guerra mundial durante a noite anunciada, a criança, até então muda, pergunta: “Ao princípio era o verbo… porquê, pai?” Nunca antes o cinema de Tarkovsky havia sido tão liminarmente espaço de um humano ato, que solicita a demanda de um outro espaço, o da transcendência. 

Para um artista do tempo, e tão radicalmente explorador do tempo, esculpindo-o, um outro tipo de imagem, fotográfico, pode afigurar-se contraditório, justamente na medida em que enclausura o tempo, fixa-o. Elas são-nos também ora presentes. Algumas são fotos de família, com a sua mulher, Larissa Kizilova, e o seu filho, Andrei, às vezes com ele próprio, Tarkovsky, incluindo um autorretrato fotografando-se. mas a luz, as névoas, as ruínas, a “datcha”, remetem-nos inevitavelmente para O Espelho e Stalker – e o cão, o cão de Stalker! – nalguns aspetos prefigurando ainda O sacrifício. 

Se falta o tempo, dimensão fulcral do cinema de Andrei Tarkovsky, ainda assim em muitas destas fotografias, quais complementos aos fotogramas cinematográficos, reencontramos a matéria sensível que é outra das dimensões distintivas da sua arte – e na matéria, a busca da transcendência.



Alberto Ruiz de Samaniego e José Manuel Mouriño | Tradução de Ana Sampaio


No dia 14 de agosto de 1979, quando se encontrava em Itália a rodar o documentário para a RAI intitulado Tempo di Viaggio, Tarkovsky escreveu no seu diário: “Telefonámos a Tovoli para lhe pedir que me compre uma Polaroid. Quero fazer uns instantâneos. [...] gostava de tirar umas fotografias da minha janela em diferentes momentos do dia. A paisagem matutina, logo ao amanhecer...” [1] Esta sugestão poderia perfeitamente ser confundida com o conhecido exercício de recolha de impressões monetiano, mas, na prática, aquilo que Tarkovsky realmente fez com a câmara que pediu a Luciano Tovoli [2] foi perseguir a luz de outra forma. A série de fotografias que começa com enquadramentos feitos a partir da janela transforma-se num percurso em que, numa espécie de travelling, se regista a chegada da luz vinda da paisagem ao interior do quarto. Acompanha-se a luz, no seu lento movimento, ao longo dos caixilhos e do peitoril da janela [3], depois pelos ladrilhos do quarto e pelas folhas e objectos abandonados ao acaso; pelo mobiliário, subindo por uma imagem da Madonna de Vladimir antes de pousar sobre a mesa ou no sítio onde Tarkovsky abandonou por um momento o pequeno-almoço para obter mais um instantâneo: a luz percorrendo a jarra de flores, o pão, a água turva, a fruta no prato. É um travelling mitigado, como aqueles que encontramos nos seus filmes, que depois continua pelas garrafas e as ténues cortinas da casa abandonada, pelo gato que dorme enroscado numa almofada, por Tonino Guerra, que escreve ou medita na igreja de Bagno Vignoni... 

O travelling leva-nos, por fim, a um autorretrato do próprio Tarkovsky banhado por essa mesma luz, perseguida, sentado junto à cama. Está de pijama e quase parece um menino (à espera). Está ao fundo, frente ao espelho. recuperado de entre as sombras que o rodeiam, segura a câmara enquanto (nos) olha a partir desse mesmo fundo, tirando a última fotografia deste lento movimento de câmara. um menino que (se) descobre, então, concebendo um lugar para a ausência, pondo em jogo, através da insistência nos vazios e nas penumbras, a experiência privada de uma dialética fundamental, a da elaboração e reflexão constantemente contornada e modulada da conivência entre o ver e o perder – jogo que remete, seguramente, para o espaço natal da mãe e da casa ausentes. Nessa margem, permanecem também os dois principais blocos que constituem a exposição: os instantâneos italianos que documentam um exercício cinematográfico (exercício que, na realidade, é algo mais, um sinal, um sintoma, uma premonição...) e os “contactos” arrebatadores da paisagem russa, algo que paulatinamente se evola da bruma matinal em miasnoe, como se se soubesse já nesse momento espetro e não apenas fotografia. 

Toda a série de Luz instantânea revela continuamente a nostalgia dessa morada perdida: a terra abriu-se e, nesse momento crítico que é, simultaneamente, um abrasamento momentâneo de luz, o indizível revela-se poeticamente como aquilo que quebra o próprio discurso, impondo o silêncio tenso da aura. Benjamin tinha razão: só remata a obra aquele que em primeiro lugar a quebra, dela fazendo uma obra despedaçada, fragmento do verdadeiro mundo, resquício de um símbolo [4]. As polaroides são então fragmentos, resíduos, pálidas moradas de paraísos revelados instantaneamente: o próprio facto de ser fotografia duplica o sentido de vestígio. se a aura é a aparição de uma lonjura, por mais próxima que esta seja, este carácter súbito da polaroide leva a que nela se imponha duplamente a aura, se possível, na medida em que o próprio processo de geração da imagem permanece quase como um segredo milagroso, algo inatingível, semelhante ao fascínio pelas imagens que o passado faz irradiar em aura. Imagens que parecem, como testemunha o forte exemplo de verónica, objetos concebidos para que se acredite não terem sido realizados por mãos humanas.

1 - Andrei Tarkovski, Diari. Martirologio 1970-1986, Edizioni della meridiana, Florença, 2002, p. 272.
2 - Director de fotografía de Tempo di Viaggio.
3 - Não há nenhuma fotografia, entre aquelas que tirou a partir da janela do quarto do hotel, onde o enquadramento da paisagem marque o próprio corte fotográfico. Nestas fotografias, a paisagem está sempre emoldurada pela janela e o interior do quarto. Por outro lado, deve notar-se que as fotografias de paisagens (exteriores) feitas em Itália são, na sua maioria, imagens muito menos líricas do que as realizadas em espaços interiores. Isso deve-se, em parte, ao facto de Tarkovski utilizar também as imagens Polaroid de uma forma prática, como um registo ilustrativo de lugares que poderiam vir a interessá-lo posteriormente (no processo de procura de locais para o futuro filme).
4 - Cf. “Prefácio epistemocrítico” de A origem do drama barroco alemão, de Walter Benjamin (1924)

O Mundo Interior
Charles H. De Brantes

Gostava-se de música em casa dos Tarkovsky. Cantava-se, tocavam-se instrumentos, viam-se muitos artistas lá em casa em Moscovo nos anos sessenta e setenta, até ao exílio de Andrei Tarkovsky em 1982, para oeste da “cortina de ferro”. Por coincidência, tornei-me guardião, durante algum tempo, em Paris, da sua discoteca pessoal, cujas velhas capas de cartão soviético cheiravam bem. Todos os fundamentais da grande música europeia estavam lá, os Schütz, Bach, Pergolesi, Mozart, Schostakovich… mas Andrei também se interessava por música oriental, pelos Beatles, pelos sons da natureza, pelo seu silêncio… e pela criação contemporânea com o compositor de música eletrónica Edouard Artemiev, que contribuiu para três dos seus filmes: Solaris, Le Miroir e Stalker. Recebi com verdadeira alegria o terceiro disco de François Couturier, depois de Nostalghia e Un jour si blanc, que ele nos diz ambos inspirados pela emoção artística que sentiu ao ver o seu “primeiro Tarkovsky”: Andreï Roublev

Há, claro, os títulos de cada uma das doze composições incluídas neste Tarkovsky Quartet que prenunciam o mesmo número de homenagens… Aos anjos, que preenchem, visíveis ou invisíveis, tanto a obra do pai-poeta Arseni, como a do filho-cineasta Andrei. A Tiapa, nome afetuoso que Tarkovsky dava ao seu filho mais novo, que as autoridades soviéticas proibiam de ir ter com o pai ao Ocidente. A San Galgano, essa abadia toscana em ruínas de Nostalghia, assim como era a barragem hidroeléctrica de Stalker. A Maroussia, doce alcunha dada à sua mãe, que ele fez entrar no seu Miroir na altura em que a voz do seu pai lia o seu próprio poema. A Mychkine, o herói de Dostoievsky que ele muitas vezes evocou como ideia para um filme. A Mouchette, o filme de Bresson de que Tarkovsky mais gostava. La passion selon Andreï, título original da longa-metragem da obra-prima histórica Andreï Roublev. O Apocalipse, último livro da Bíblia que impregna os últimos três filmes de Tarkovsky, com o inolvidável excerto lido por uma voz de mulher que sai a rir, sobre um fundo aquático cheio de imagens perdidas. Doktor Faustus, o romance de Thomas Mann que ele gostaria de ter adaptado ao ecrã. Sardor, o tajik-western cujo guião Tarkovsky escreveu, mas que nunca pode realizar. La main et l’oiseau, essa breve cena de Miroir que Tarkovsky designou mais tarde como o seu autorretrato. Enfim, De lautre côté du miroir, piscar de olho a todos os imaginários… 

Mas encontrei sobretudo o mundo interior onde François Couturier e o Tarkovsky Quartet com Anja Lechner, Jean-Louis Matinier e Jean-Marc Larché excelam em nos fazer penetrar. Doze baladas poéticas onde o piano, o violoncelo, o acordeão, o saxofone se erguem, se respondem, se abraçam, se apagam, voltam… Onde o batimento, como o de um coração, e os sons mais impercetíveis traçam um mundo onde plana a alma, o seu apelo, o seu sonho. Grandes asas se abrem, se estendem, se fecham. A imagem de dançarinos vem-nos à memória. Todo um espaço interior protegido por longos silêncios alargados, onde, milagre!, a improvisação permanece rainha. É sem dúvida isto que mais nos aproxima dessa “liberdade absoluta do potencial espiritual do homem” que Andrei Tarkovsky designava como a função própria da arte.