sexta-feira, abril 30, 2010

Fantasia Lusitana

Este filme, atento em documentar o que, dos anos 40 à flutuação decorrida até a inauguração do Cristo Rei almadense nos fins dos 50, se procedeu numa capital e num Portugal submersos na ideia da ilusão salazarista, é uma imperdível oportunidade para, antes de qualquer rememorar do passado histórico, nos conhecermos enquanto actuais cidadãos deste país. Parecerá abusivo considerá-lo, a quem rejeitar toda e qualquer presença da figura mítica do Estado Novo na nossa contemporaneidade, mas nunca um relato, que pretende, aparentemente, contrastar as ideias de fantasia e histeria social colectiva / realidade dura e implacável (mas que consegue fundi-las de uma forma implícita e interessante), demonstrou tanto o quotidiano vivido pela gente que somos, os costumes de um povo perdido em ilusões, numa desequilibrada Fantasia Lusitana. De facto, se consideramos a ideia de propaganda nos longos anos do regime ditatorial do Estado Novo (que, influenciado pelo arquétipo nazi, foi utilizada para, cerrada e invisivelmente, fechar as portas de Portugal ao resto do mundo), a ideia da movimentação dogmática que patrocina a religião, a ideia da ignorância analfabeta que se abastecia pela população, a ideia da neutralidade política face à guerra, a ideia da existência de uma espécie de sétimo continente que isolasse os portugueses na sua feliz e cantável insipiência de uma Europa devastada pela Segunda Grande Guerra, enfim, se considerarmos tudo isto e nos remetermos para esta actualidade, onde predomina a ditadura da comunicação social face à pequenez do consciente luso, ao contínuo apego à religião, ao desinteresse pelos assuntos estrangeiros, concluímos, pois, que não estamos tão longe da era da Fantasia, perspectivada esta, aqui, de uma forma sempre negativa, sempre desagradável pela suposta agnosia que esta advoga (o que não é, claro está, totalmente verdade). Para além de toda a comicidade envolvente (que seria legítima caso não fosse tratado algo de tão trágico quanto é a existência desta sociedade estupidificada), é de realçar o papel que os escritos dos refugiados ilustres estrangeiros da guerra, situados em Portugal, tiveram para a (des)construção desta película, precisamente de Alfred Döblin, Erika Mann e Antoine de Saint-Exupéry, que relatavam uma constante angústia, uma chocante incompreensão face à felicidade estampada nos divertidos portugueses, um sufoco horrível pelo calor, pelo brilho cego da capital, pela dança, pela música, pela paz em tempos de batalha, pela falsidade que lhes era inerente mas que nunca seria percepcionada pelo povo. Mais do que o ver, será, pois, crucial pensar este atípico e curioso documentário.

Constato, em parêntesis porque presenciei, no cinema Nun’Alvares um momento especial relativamente a esta peça, o óbvio – como as reflexões, externas e feitas a posteriori de uma atenta visualização, verbalizadas e expostas ao público e ao realizador, por parte de interessados, conseguem ultrapassar, na maior das facilidades, a capacidade de resposta pela mente criadora da obra (João Canijo, saiba-se), como se esta se limitasse ao redutor papel da técnica, como se esta se restringisse a uma ignorante intransigência pelas ponderações do público admirado e comedido. Surge uma questão que se eleva a não poucos filmes, não importa quando e onde foram estes realizados – uma obra, que se quer de arte, cria-se pela mão autora ou pelos olhos de quem a analisa?

quarta-feira, abril 28, 2010

Três Cores: Azul

A primeira tira da bandeira francesa e da trilogia do polaco Krzysztof Kieslowski é, para todo aquele que se disponha a senti-la e a compreendê-la, um bilhete de ida para o âmago do nosso espírito e condição. Voa, em sublime perfeição, como a música de Preisner: inscrita e visível no seu aspecto formal, inefável e transcendente na sua concretização. E, para completar o círculo, Binoche metaforiza-se no que será, provavelmente, o maior dos seus papéis – na busca do remate de um luto revelador, na fuga dos medos do passado e da própria transição indecomponível do tempo, na procura pela libertação da alma, dolorosa, solitária, e, indubitavelmente, necessária. Magnífica obra de Arte.

"Porque é que os meus filmes passam à meia-noite?"

A discussão continua, desta vez no IndieLisboa, num tom mais pesado, com particulares acusações à RTP. Falta saber quando - ou se - terminará. Recordo aos leitores o interessante programa Câmara Clara do canal 2 (há duas semanas atrás, sobre o cinema português, com João Salaviza e Inês de Medeiros, que pode ser visto aqui), onde ficou clara a necessidade de produzir mais filmes portugueses (e nada se referiu sobre a sua potencial qualidade, como gostam os tugas de falar) e do facto de o financiamento (propriamente o FICA) ter voltado grande parte das suas economias para uma série televisiva, da TVI ("Equador"). Quanto a mim, concordo com Medeiros quando salienta a escusada vontade, actual e ridícula, de se fundir a linguagem da televisão com a do cinema, formando aquilo que é o "audiovisual" (reforço as aspas). Deixo-vos, sem demoras, a "discussão" que ocorreu:
Paula Moura Pinheiro estava no Cinema São Jorge como moderadora, a convite da organização do festival de cinema independente IndieLisboa. Mas para os realizadores e produtores presentes no debate Estados Gerais do Cinema Português, ontem ao final da tarde, Moura Pinheiro é, acima de tudo, a sub-directora da RTP 2. O debate tinha tudo para ser explosivo. E foi - desde o primeiro momento.

O realizador Fernando Vendrell foi o mais emotivo. "A programação da RTP é uma vergonha, é má, inculta, arrogante, brutamontes", disse, exaltado.

Pedro Costa foi directo: "Porque é que os meus filmes passam à meia-noite?", perguntou a Moura Pinheiro. "O país é muito melhor do que a televisão pública que temos", reforçou o produtor Pedro Borges, que denunciou as "manobras de chantagem e intimidação contra produtores independentes por parte do director da RTP 2 [Jorge Wemans]", numa referência ao tem vindo a denunciar como "censura" daquele canal em relação a documentários da sua produtora, a Midas.

A sub-directora da RTP 2 respondeu de forma igualmente directa: "Abaixo de uma determinada linha de água a ‘porcaria' da RTP [numa referência irónica às críticas que acabara de ouvir] acaba, fecham-na. Isso já fez parte da agenda de um Governo PSD. Há uma coisa que é o ‘share', abaixo dos cinco ou dos quatro por cento, acaba-se". Paula Moura Pinheiro argumentou ainda que o seu próprio programa, Câmara Clara, vai para o ar às 22h30, e garantiu que no que diz respeito à exibição de cinema português a RTP 2 está "acima do que a lei prevê".

O debate abriu com a leitura de uma carta enviada pela ministra da Cultura, na qual Gabriela Canavilhas promete uma "injecção no sector audiovisual" de cerca de 6,600 milhões no muito polémico Fundo de Investimento para o Cinema e o Audiovisual (FICA, participado pelo Estado, Zon Multimédia, RTP, SIC e TVI), "até ao final do primeiro semestre" (o FICA tem estado paralisado por problemas de gestão).

Canavilhas diz também que "o modelo de receita [para apoio ao cinema] assente na taxa de exibição [de publicidade nos canais televisivos] está esgotado" e que é preciso criar "um modelo que permita um aumento efectivo de receitas". E refere a necessidade de "imposição de um maior nível de exigência junto da RTP".

Em relação ao FICA, as críticas na sala foram generalizadas - Pedro Borges, por exemplo, sublinhou a perversidade do sistema, dizendo que "a TVI meteu lá 1,6 milhões e sacou 2,5 milhões para [financiar a série] ‘Equador'".

Para Luís Urbano, da produtora O Som e a Fúria, o FICA "foi uma experiência completamente aventureira", até porque "o dinheiro já foi para as mãos de quem não devia ter ido". Defendeu, por isso, o encerramento do fundo e um plano para a atribuição das verbas que ainda estão retidas nele. Para Urbano, o financiamento do cinema "tem que estar sedeado no Instituto do Cinema e do Audiovisual [ICA]".

A deputada socialista Inês de Medeiros lançou algumas propostas concretas para tentar resolver aquele que todos identificam como o principal problema do cinema português: a falta de dinheiro. A discussão centrou-se na diversificação das fontes de financiamento e Medeiros defendeu a necessidade de taxar "as novas plataformas onde a publicidade [que saiu das televisões] se foi instalar"; de manter, através do FICA ou de outro modelo, a obrigação das televisões privadas financiarem o audiovisual; e de introduzir "quotas reais" para todas as televisões exibirem cinema.

O panorama do cinema português actualmente é desolador, concordaram os realizadores e produtores presentes. "Rejeito liminarmente ser uma espécie de bandeira de uma geração bem sucedida. Essa geração não existe", disse João Salaviza, que com o filme "Arena" ganhou a Palma de Ouro para curta-metragem no Festival de Cannes no ano passado. "O espaço para essa geração que se tem anunciado é muito reduzido. O dinheiro existe, mas é mal distribuído. Gasta-se um milhão com filmes que não vão além de Badajoz".

Quanto à dependência do cinema da taxa da publicidade, Salaviza interroga-se: "Porque é que o dinheiro não vem do orçamento de Estado?". Mas Luís Urbano alerta para o perigo de se "condicionar a produção a formatos". "Como produtor não posso estar dependente de um ministro aventureiro como foi o anterior [José António Pinto Ribeiro]", disse.

"Que medidas para a internacionalização do cinema português?", fora a primeira questão lançada para debate. Mas rapidamente todos disseram que, perante a gravidade da situação geral do cinema, essa era uma questão secundária - "uma ultra-falsa questão", segundo Pedro Costa, sublinhando que o seu último filme, "Ne Change Rien", "fez três mil espectadores em Portugal e vai fazer o triplo no Japão."

"O problema não é a internacionalização. É a nacionalização", concordou Fernando Vendrell. "Cineastas que encontrei em festivais internacionais não percebiam porque é que os meus filmes não estreavam no meu próprio país". Se houvesse uma alteração da quota de exibição, defendeu, isso significaria automaticamente maior produção. "Seria preciso fazermos entre 25 e 40 longas-metragens anualmente para termos uma quota razoável".
in Público | Alexandra Prado Coelho

segunda-feira, abril 26, 2010

O Tempo do Lobo

A zona sideral a que Michael Haneke parece estar tão compenetrado em se afirmar com as suas obras de arte é um não-lugar, sem firmezas cautelosas de período e área. Parecer-nos-á assaz estranho, senão falsidade, afirmá-lo, se tivermos em consideração a sua vontade cirúrgica de tudo situar nos filmes, sejam as determinações culturais e geográficas como as circunstâncias sociopolíticas (demonstradas, não poucas vezes, pela via do noticiário da televisão). N’O Tempo do Lobo, o austríaco desconstrói a formalidade da sua própria filmografia para filmar ficção científica, o que, à partida, seria menos perceptível, criando uma plena fábula política, sem contexto preciso espácio-temporal. Vemos, com os olhos de uma sofrida Isabelle Huppert, dolorosa e paulatinamente, o declinar de uma Europa sem futuro, de um estado pós-apocalíptico de um mundo destruído pelos desastres ambientais, pela desconsideração governamental, pelo triunfo do terrorismo. Haneke diviniza-se e, após iniciar, de forma tão frustrantemente idílica, a película com uma viagem de uma família à sua casa de férias (que acabará, como se imagina, da mais trágica forma), recria um continente, aparentemente iludido na esperança de uma união supranacional capaz de proteger a paz e os direitos fundamentais da humanidade, deixado à miséria, às consequências últimas do fracasso da tecnologia, à pura anarquia e à lei do mais forte, característica no tempo do lobo. É filmado, por vezes de uma forma demasiado cansativa e com alguns momentos dispensáveis, um Inverno cinzento e desconhecido, que não tardará em vir, que abarca famílias que norteiam sem uma língua definida, onde a pluralidade da verdade, da identidade e do reconhecimento da pátria e da cidadania decaem sobre a incerteza e o maior dos pessimismos. Ainda assim, somos confrontados (ou despistados?) com réstias de uma humanidade e complacência nos mais pequenos e singulares gestos, paradoxalmente os mais criticados se perspectivados em escala universal: a cooperação, a liberdade e o amor. De facto, nesta ordem de aspectos, remeter-nos-íamos com facilidade à ambivalência circunstancial presente no “Ensaio sobre a Cegueira”, de Saramago, onde, por um lado, nos é mostrado o que de pior o ser humano consegue evidenciar e, por outro, o que de melhor existe na sua natureza. Este será, pois, um dos mais importantes e simbólicos retratos de uma burocracia anónima, falida e maldosa presente na contemporaneidade política europeia – mas, claro, Haneke também não nos oferece soluções, ou talvez vá dando uma ou outra rodilha ao salientar o papel fundamental da (pequena mas ainda existente) bondade individual.
7/10

Eu amo-te Philip Morris

Há algo de profundamente interessante nos filmes, sejam pequenos, como este, ou grandes, que gostam de brincar com as emoções de quem os vê, enganando-os como que a seu bel-prazer, tal como, magistralmente, o fez Expiação, de Joe Wright, a título de exemplo. É difícil reflectir sobre este estranho paradoxo – quando embarcamos na realidade de uma obra de ficção, tornamo-nos parte dela, e, a partir desse instante, tudo terá que obedecer à lógica imposta das coisas criadas. Mas quando temos defronte uma personagem que é um mentiroso compulsivo, todo o cuidado será pouco para o desatento espectador. Mais uma prova de como se torna crucial questionar as próprias imagens que nos vão, constante e continuadamente, recheando a vista. Quanto ao resto da obra: "heterodoxa" (como João Lopes o disse, e bem), boa para afrouxar a mente (apesar de suscitar a nota acima escrita), e para ver as críveis construções de Carrey e de McGregor, que, ao lado da química envolvente, são, previsivelmente, o que mais a enchem.

domingo, abril 25, 2010

A liberdade, hoje

Stalker

O que será que o homem mais procura – liberdade, amor, compreensão, conhecimento? Quais os seus mais intensos e íntimos desejos? A isto o filósofo russo tenta tudo responder, fugindo da sépia superficial das ambições intersubjectivas e viajando, com um stalker (que aqui ganha a força de humanizado guia divino), um escritor e um cientista, à profundidade, colorida e vital, do subconsciente e condição humanos. É tudo e até o nada: sem sombra para hesitações, uma assombrosa obra-prima, um clássico de monumental e intemporal importância de necessária vivência e reflexão, uma experiência que, tocando nos predilectos temas já nossos conhecidos de Tarkovsky, se metaforiza numa alegoria universal e platónica, lembrando a caminhada, solitária e onírica, para a Verdade que apenas a Zona poderá dar. Formalmente perfeito e belíssimo, este será, provavelmente, um dos mais relevantes filmes alguma vez criados – um místico e transcendente tratado sobre cada uma das almas que erram, perdidas, pelo universo.
10/10

terça-feira, abril 20, 2010

Perguntas #3

Se estivessem isolados numa ilha para o resto da vida, qual o filme que vos acompanharia?

segunda-feira, abril 19, 2010

71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso

Que Haneke filmava, com notável cuidado, as origens da(s) violência(s) contemporânea(s) já nós sabíamos, e esta peça, que literalmente coaduna setenta e um fragmentos de uma cronologia do acaso, com as habituais transições com que nos habituou nos precedentes O Sétimo Continente e Benny’s Video, fecha, numa penumbra de sombrio mistério e indomável absurdo, a trilogia do nosso quotidiano. O espectador torna-se, aqui, agente dupla e contraditoriamente passivo (porque assiste, de longe, às contrariedades e injustiças do mundo moderno) e activo (porque nos sentimos, de uma estranha forma, culpados pela acção decorrida e por nada fazermos para a inverter, talvez por nos sentirmos tão familiarizados com ela). Assistir a este filme necessário, que seria reactivado, noutros moldes, por futuros trabalhos do cineasta austríaco, é o mesmo que assistir à nossa intranquila existência, rodeada de uma frieza e incomunicabilidade social nas grandes cidades. É este vazio, é esta solidão, é esta constante falta de amor, patrocinados pelo mediatismo da televisão (o ódio mais amado na filmografia do autor) e pelo fingimento dos actores sociais que se movem em busca da solidariedade, que fazem atingir, de uma forma bem elephantiana (ou seja, sem dar objectivas explicações), o clímax final, horrível e irreversivelmente explosivo e diabólico. E é, segundos depois, após a notícia no telejornal da noite de um homicídio injustificado (será mesmo?) e em massa, que Michael Jackson, do outro lado do planeta, após declarações sobre as suspeitas de abusos sexuais, nos sorri docilmente para a câmara, terminando com o septuagésimo primeiro segmento da nossa experiência de vida. Ou de morte.
8/10

domingo, abril 18, 2010

quinta-feira, abril 15, 2010

O Espelho

É (ainda) no crescente assombro e admiração que, cada vez mais, vou tendo por Tarkovsky – esse grande cirurgião, capaz de operar a mais agreste visão –, que estou a digerir, calma e prazerosamente, a sua obra-prima, O Espelho. Deverá ser, provavelmente, o seu trabalho mais auto-biográfico e intimista e, como consequência, o mais complexo e inacessível. Valorizando a intersubjectividade das experiências pessoais, decorridas do pequeno ou mais englobante meio, este é um filme que nos exibe, em completa nostalgia e perfeita composição estilística, a mãe, o pai e os filhos; a guerra; as vitórias e derrotas de simples seres humanos que se unem e desunem pela morte; o amor pelo homem, pelo mundo e pela memória; o medo da despersonalização e do apercebimento de uma constante solidão; a percepção da realidade física e da subsequente aparência; a introspecção, materializada pelo mistério incansável do espelho da alma; o sonho e o seu carácter de verdade; a passagem irredutível de um tempo que não tardará em terminar; o desejo de imortalizar, em modo ultra-sensacionista e com o poder da imagem e do som, os mais marcantes momentos de uma existência; a rebelião – mostrada pela História de uma humanidade que gira em círculos, nervosa e contrariada, a fim de encontrar um sentido à sua vida, mostrada pela fulgurante Natureza, com os ingovernáveis, previsíveis e imutáveis manifestações de si, materializando o grito de revolta para uma generalizada indiferença do homem pelas coisas verdadeiramente sinceras e orgânicas. É, portanto, mais que um filme – é uma chegada a um divino atípico e pessoal, espelhado na natural transcendência da realidade, do sonho e das recordações que, aqui, nunca serão esquecidas.
10/10

segunda-feira, abril 12, 2010

Nostalgia

Sou da opinião que, mesmo o documental, o cinema é, por si só, uma manifestação artística que, encobrindo a realidade e mostrando-a como a mais genuína mentira, o autor dessa falsidade mais dela conseguirá debitar e moldá-la segundo os seus objectivos e ideias. Daí que, quase paradoxalmente, podemos considerar que o cinema é, da mesma maneira, uma das formas mais reveladoras do espírito que por detrás da câmara se esconde. Se, na maior parte das vezes, assistimos a casos indirectos do que acabo de referir, com histórias de ficção que aparentemente se restam por aí, então, noutras, é assumido com mais frontalidade o desejo intimista de se examinar pelas imagens, de transpor o mundo dos sonhos, das experiências e das denúncias para as imagens, revendo-se nelas, uma por uma.

Este é precisamente o caso de Nostalgia, que, como já assume pelo seu título, trata um sentimento de melancólica e aportuguesada saudade, de reviver daquilo que já foi, ou até não, um presente afastado, de desejo de total absorção das sensações que envolviam um tempo não possuído. Efectivamente, podemos acrescentar que a nostalgia é um estado natural, quase vital, à introspecção de um artista, de um poeta como o protagonista Gortchakov, de um poeta como o próprio Andrei Tarkovsky. Quando o lirismo de ambos se vê corrompido e exilado por forças externas (como uma Itália – um Mundo – que não compreende os verdadeiros propósitos de um criador desesperado, ou uma URSS altamente repressora daquilo que lhe é desconhecida ou desviante da convenção artística) ou até mesmo pela incompletude de um trabalho que não dissera tudo (e remetemo-nos directamente para o precedente documentário “Tempo de Viagem”, que fora co-realizado com Tonino Guerra), então parecerá, a ambos, que o exílio e a procura metafísica daquilo que é demasiado óbvio para o ser humano em terras estrangeiras serão os caminhos a seguir. Esta ideia existencialista, tão estouvada quanto natural, de se encontrar, em si mesmo e num local renovado, é materializada no mote desta obra, que nos apresenta a jornada de um poeta, Gortchakov como já referimos, acompanhado por Eugenia, uma tradutora apaixonada por este, que se rebela contra o seu espírito quando apercebida da gradual alienação que começa a proceder-se. É a partir desta alienação, que, obviamente, seguimos, influenciada por Domenico, a personagem lunática (ou, para outros, incompreendida) liberta de avenças sociais, que Tarkovsky aproveita para remisturar, como se de um sonho tudo se passasse a metaforizar, as personagens que se cruzam e as próprias circunstâncias. Se o divino é tratado objectiva e directamente numa primeira parte da obra, então, numa segunda, constatamos que o alcançamos sem o perceber muito bem, tal a complexidade é da colagem de momentos, sonhos, medos e vontades. Se, contudo, assistirmos, livres e atentos, às maiores cenas do filme, repletas de marcantes catarses, também denotamos que é na simplicidade que reside a transcendência pretendida e a inspiração celeste alcançada não pela pretensão, mas pela vivência do tempo e do espaço tal como ele é.

Tarkovsky enche-nos a alma até onde seria inimaginável, seja com a contemplação de um prado e de figuras anónimas (mas que nos pertencem), com o poder e a espectacularidade de um revoltado acto de suicídio, com o cumprimento paulatino e fulcral de um desafio de vida apenas com uma vela (e, neste caso, podemos dizer que nunca um plano sequência disse tanto ao ser humano), ou com o desfecho olímpico e divino de um homem que se encontrou em plena meditação. Todas estas sequências, recheadas de vida, de metáforas e de um estado esotérico de subsistência, são do mais belíssimo, do mais inultrapassável, do mais perfeito que alguma vez poderíamos conceber – e assim se realiza a mais pura e sincera das poesias e o descortinar de toda uma existência.
10/10

Un Chant D'Amour


Este é o único filme de Jean Genet, uma curta-metragem de aproximadamente 26 minutos realizada em 1950 mas que só pôde ser comercialmente apresentada nalguns circuitos, em França de 1975. O interessante e longamente censurado Un Chant D'Amour é um filme desprovido de diálogos, homoerótico, reflectindo o desejo e a paixão entre prisioneiros entre paredes, com tons surrealistas mas, também, claramente voyeuristas e provatórios para a época (até para os dias de hoje). Este foi um dos muitos trabalhos que inspiraram a concretização da obra de Andy Warhol e foi importantíssimo para a de outros autores que trataram a sexualidade.

sábado, abril 10, 2010

A Infância de Ivan

Toda a guerra, na sua essência e múltiplas formas, não obstante das suas consequências e motivações, é inútil – e  Tarkovsky, cujo espírito se anuncia da primeira à última refulgente sequência fílmica de A Infância de Ivan, sabe-lo bem, e exalta, à constatação, um sinal de imperdoável irreversibilidade e de autêntica impossibilidade de expiação a tal atentado colectivo ao homem. A perfeição e genialidade da sua primeira obra-prima não reside, todavia, na forma como condena a desumanidade, mas no seu (quase contraditório) deslumbramento pela mesma, que acaba, em última instância, por se afigurar uma das facetas do frágil ser, em diálogo com uma floresta plácida e bela, a que se propõe captar.

O seu nome é Ivan: o precoce protagonista do início de toda uma carreira que se avizinharia, uma criança russa, órfã, que, solitário e perdido, vagueia por um universo assombrado pela Segunda Guerra Mundial, acompanhando a evolução da frente soviética face aos alemães nazi e a gradual, paulatina e previsível transformação das coisas naturais no seu puro estado. É, pois, pelo constante recurso à ambivalência de temática, símbolos e metáforas que o Leão de Ouro é planeado e produzido, na exemplar e comprovada defesa de um mundo contraditório e harmoniosamente caótico. A diferença entre a criança, com a sua incontaminada pureza, e o adulto, com a sua corrompida atitude, a diferença entre a guerra, estrondosa e humana, e a paz, tranquila e inerente à Natureza, a diferença entre o sonho, que serve de impalpável e desejável escape, e a realidade, horrível e crua, são realizadas de forma ininterrupta e estável, tocando nos restantes temas que justificariam a construção da nossa personagem. Motivado pelo desejo de vingança dos inofensivos, pela errónea vontade de ser activo numa guerra a fim de se sublevar perante aqueles que a originaram, é através dos olhos do invicto Ivan, que assistimos, impotentes, a uma atroz despersonalização, que levaria à desconstrução de si e à perda da original identidade. Desta maneira, vemos a mais directa maneira de criticar a violência, da mais ínfima à mais global, e a sua reeducação milenar: pela apresentação da candidez de alguém que não deveria, de forma alguma, patrocinar uma escusada batalha e pela poluição progressiva da mesma, através da preponderância do adulto (que, por este lado, tem já completamente esquecida a simplicidade de uma infância perdida). O filme é, pois, isso mesmo – um hino à infância, ostentada no imutável bosque, nas coisas simples e naturais, que contêm a verdade que o homem parece desconsiderar. Mais do que isso, nesse caso, a película não será mais que uma viagem, subtil e poderosa, às profundezas da floresta labiríntica do âmago da nossa existência, à transcendência e à metafísica do pensamento, do sonho e daquilo que é de mais universal e ignorado. E o poeta russo tudo isto protege e capta através de imagética metafórica e belíssima, viajando entre uma fantástica ultra-realidade e os devaneios de Ivan, que recorda tudo o que há de mais universal – a mãe e o seu amor, o poço da sua imaginação, os momentos em que se debatia por agarrar um mágico reflexo de luz, o sol que lhe batia nas brincadeiras com os jovens colegas, os animais tranquilos e organicamente calculáveis, a grandeza e comunicabilidade melodiosa das árvores, a doçura da fruta, e, acima de tudo e de todas as memórias e de todos os pensamentos e de todas as sensações…, a água, que aqui serve de símbolo supremo de sobrevivência, de clareza, de liberdade e de revelação última de uma vida cuja fragilidade é iminente e sucessivamente recapitulada.

A perpetuidade da figura de Ivan e da sua percepção discordante do real sintetiza a própria eternidade lírica do cinema do russo, que sublima a interacção do homem com a natureza e guarda em nós, para sempre, o que há de mais intemporal e perfeito no nosso terrífico mundo.
10/10

quarta-feira, abril 07, 2010

A solidão filmada por Gus Van Sant

Gus Van Sant é, sem margem para dúvidas, um dos grandes cineastas, na verdadeira acepção do termo, da contemporaneidade e, como tantos outros, o seu génio, apesar de implícito e inclusivo na sua própria filmografia dos anos oitenta e noventa (numa fase mais comercial, noutra, mais experimental e independente da comum concretização cinematográfica) revelou-se, na totalidade, no virar de um novo milénio, na última década por que passamos, na qual assinou cinco filmes que, sendo díspares, muito têm em semelhança: em 2002, o subversivo e belo “Gerry” (crítica), no ano seguinte, a obra-prima “Elephant” (crítica), em 2005, o filme semi-biográfico de Cobain “Últimos Dias” (crítica), dois anos depois, a adaptação de um ensaio dostoievskyano “Paranoid Park” (crítica) e, em 2008, o reconhecido “Milk” (crítica). O que, efectivamente, e reparámos caso nos voltarmos para a análise do anterior trabalho do autor norte-americano, reconhecemos, é a união de um elemento em comum, de um estado que é valorizado e trabalhado como um fantasma de toda a sua obra: a solidão.

Percepcionada por Van Sant, a solidão anuncia-se como uma condição inerente, de forma orgânica e normal, ao ser humano. Mais do que natural, esta é vista como basilar, apesar das circunstâncias em que pode surgir. Por outras palavras, podemos reconhecer a existência de duas solidões ─ a que se demonstra inevitável à existência do protagonista e a que é, de forma plena e lúcida, procurada por ele, seja por que motivo ou motivos. Esta dualidade de isolamentos, apesar de, na sua essência, se volverem ao mesmo, é importante que seja realizada, a fim de percebermos os contextos em que as personagens do mundo da obra do realizador se movem.

A primeira enunciada sucede sempre, necessariamente, num dado momento da vida: no fim desta. Assim, para Gus, todo o homem, mesmo fisicamente assistido, morre sozinho, só no seu id se nos quisermos voltar para a psicanálise, no espectro da sua subconsciência e na revelação, esta já límpida, que o último instante da existência poderá proporcionar, no limiar da metafísica do espírito, que não é passível de se ver acompanhado. Será, pois, interessante reparar, a título de alguns exemplos (todos eles retratando, curiosamente, um homicídio), que tal ocorre em “Milk”, quando Harvey é morto, simbolicamente vislumbrando o seu reflexo numa janela que direccionava o olhar para a bandeira dos Estados Unidos da América, e é filmado, por breves momentos, a contemplar-se; em “Paranoid Park”, quando o segurança da estação de comboios, após empurrado por Alex para a linha e morto pela passagem de uma locomotiva, o olha nos olhos em genuíno desespero, procurando por algo, que não a intangível sobrevivência, que nem ele saberia o que seria; ou em “Elephant”, quando Michelle, procurando companhia e ocupação nos livros da biblioteca, é repentina e brutalmente assassinada frente a todos, mantendo-se, nos últimos e escassos momentos de “si”, ao lado dos livros, que não lhe servem, então, de nada; ou no remake de “Psycho” (original de Alfred Hitchcock), com o homicídio já conhecido de Marion na banheira; ou em “Disposta a Tudo”, quando Larry é morto por Suzanne. Em “A Caminho de Idaho”, a morte de Bob, apesar de evidenciar o fatídico e indesejado retiro do mesmo, é ligeiramente desigual, dada a sua origem ser um ataque cardíaco. Todavia, não só a solidão inevitável à existência do protagonista nos aparece no momento da sua morte. Aliás, vários são, ainda que não forçosos, os momentos em que Gus Van Sant constata que nos poderemos sentir retirados do mundo sem que tal queiramos. Em “Mala Noche”, Johnny é um mexicano imigrante que rejeita o desejo de Walt, vendo-se numa nova América, apartado de qualquer sítio que possa considerar uma casa, onde a linguagem e o amor têm idiomas diferentes do seu. Em “O Bom Rebelde”, é-nos descrito o arco de mudança de Will, que se isola na dissonância que lhe afunda o entendimento, navegando entre a sua personalidade moldada pelo meio por onde cresceu e as múltiplas capacidades da sua sobredotada inteligência (reveladas sem que este o quisesse), e cuja situação vê um revés após uma decisão que, apesar de influenciada, foi pessoal e resultado de um afectado enclausuramento interior. No mencionado “Paranoid Park”, evidenciamos o estado de loucura interna a que Alex se leva, pelo peso inconjecturável da culpa, à aflição de uma sempre incompreendida solidão. Já em “Elephant”, a supracitada Michelle revelava-se em malquerido estado de retiro, resultado da violência psicológica exercida pelos colegas e da ausência de amigos ou de pessoas que com ela comunicassem verdadeiramente. A procura de locais, como a biblioteca, que lhe possibilitavam ser útil e interagir, não importava se de forma impessoal, com outras pessoais, como o bibliotecário, apenas nos confirma a animosidade pelo facto de estar só. O mesmo filme prima, portanto, por nos conseguir mostrar como que em locais tão movimentados, agitados e ocupados, como a escola e os seus corredores, se remisturam relações interpessoais, esquecendo os apartados, que se aglomeram na ruidosa multidão. Tal é denunciado pelo realizador num exacerbado derrotismo, que filma, com deleite e acalmia voyeuristas, o submundo dos retirados da sociedade – os delinquentes e os homossexuais, por exemplo –, como se lá residisse a esperança de encontrar a percepção e o entendimento que é sentir-se sozinho pela rejeição.

O segundo dito tipo de solidão, que a tratava como procurada e tencionada pelo protagonista, é vista por Gus Van Sant como, grosso modo, um estado fulcral para a total revelação do mundo e de si mesmo. Sendo a mais complexa, também surge apenas em escassos momentos e, nalgumas vidas errantes, esta nem se chega a manifestar. É na solidão que reside, para a personagem, a verdade, a possibilidade para partir para um estado de única introspecção e avaliação do real, de pura interacção com a Natureza viva e natural (representada, na imagética, pela contemplação longa daquilo que é coercivo ao homem e belo, como o verde da floresta ou a amplitude de um céu azul, representada, no som, pela melodia calma, distante, misteriosa e compassiva de uma criação de arte humana ou pelo recurso de sons viscerais e expansivos, como é o caso do cântico dos pássaros) que serve, por sua vez, como ponte para a síntese da sua própria natureza e pureza. Tudo isto se poderá reparar em “Últimos Dias”, que determina os últimos dias vividos por Blake por sua conta, perdido e retirado num mundo dentro de si, manifestando-se no poder íntimo e místico da música. Daí o filme ser, na maior das probabilidades, tão inacessível: a força do nosso protagonista tem uma só uma alma só, o que será o mesmo se disséssemos que ele apenas seria compreendido por ele mesmo (uma personagem de ficção torna-se independente do criador e do público) e as imagens que tão serenamente acompanhamos apenas serviriam para mostrar a impossibilidade da existência uma objectivação directa como via de compreensão de um outro ser humano. Aqui, não importam as razões que motivaram o suicídio de Blake – importa sim constatar que os seus últimos momentos foram presenciados em total reflexão da existência, da identidade, do mundo e da vida.

E assim estabelecemos a conexão com “Gerry”, que demonstra ser a confluência das duas explicitadas solidões. Se, numa primeira instância, constatamos que os dois Gerry viajavam, sob o espectro fatal e indeclinável da morte, juntos, podemos, também, admitir que a junção entre os dois, que demonstram unir-se em situações-limite que os põem à prova, levou a uma consequente solidão, que se mostrou necessária mas vital. A revelação última do Gerry de Casey Affleck, exterior e inultrapassável, apesar de ser compartilhada com o Gerry de Matt Damon aquando da interacção dos dois com a natureza recheada pela poesia musical de Arvo Pärt, mostrou-se também diferente da dele dado que, morrendo primeiro na mais transparente e amargurada solidão, agravou a sentida pelo outro, que acaba, na prática, consigo mesmo, no Infinito do deserto da morte. Contudo, a companhia da Solidão (passe-se a implícita redundância), fazia-se sentir em ambos protagonistas enquanto estavam juntos, se atentarmos ao facto de que se comungavam, em imaculabilidade e transcendência, consigo e com um mundo exterior, vivo e inumano.

Resta-nos concluir sabendo da determinação van santiana de que, apesar de todas as uniões que coabitam no universo das possibilidades, o ser humano é genuinamente um ser condenado à solidão, tendo, pois, que saber aproveitar-se dela, deslocando-a para múltiplos caminhos na sua vida, sendo a procura de um significado desta o mais importante de todos eles.

terça-feira, abril 06, 2010

Twentynine Palms

Um homem e uma mulher viajam, de carro, por Twentynine Palms, onde o deserto e os abertos planos demonstram ser o palco da sua união bipolar e secreta. Tudo e nada sabemos dos dois, tudo e nada eles sabem de si. Assim é que Bruno Dumont, o francês que assinou este outro ensaio sobre a humanidade, filma, com uma câmara clínica, fria, atenta, sem pudores e (acima de tudo) sincera, o sexo, o amor ou as suas intenções, a amizade, a compaixão, a entreajuda e, sobretudo, o que de pior o ser humano pode demonstrar, afastando-se da moral de um lugar que deixa de ter, progressivamente, nome. Pois, perante uma belíssima fotografia, a Morte é quem governa e nos envolve – numa primeira parte, vendo-se inimiga de dois seres que teimam em ignorá-la (seja na estrada, seja numa piscina), numa segunda, vendo-se vencedora ante uma separação, destrutiva (por se antever na progressão relacional que se dava) e horrível (por via de uma catalisadora e inesperada circunstância). É, efectivamente, um filme difícil, amoral na mais profunda essência. Os longos e contemplativos enquadramentos do homem em interacção com uma natureza quase morta, fazem-me crer que esta grande obra não é nem percepciona o vazio ou o niilismo, de todo. E aí reside a sua basilar importância – por subsistir uma humanidade que, tendo que se consciencializar da sua capacidade orgânica de tudo fazer, pode escolher o caminho que há-de seguir. Twentynine Palms é, apenas, um desses destinos.
8/10

domingo, abril 04, 2010

Código Desconhecido

A linguagem tem uma vida própria. A constatação, que podemos considerar factual, apenas serve para minimizar e englobar a dinâmica, recheada de uma rude imprevisibilidade, que é inerente à comunicação entre os seres humanos. O que é o mesmo se disséssemos que o homem tudo e nada sabe de si e da forma como há-de interagir com os sistemas interpessoais que lhe rodeiam. O Código Desconhecido é, na maior das probabilidades, o mais interessante (e arriscado) da filmografia de Michael Haneke, ao lado d’O Sétimo Continente (crítica), que se demonstra mais subentendido e fechado numa só narrativa. Pela câmara gelada que filma, com uma vontade quase voyeurista, um récit incomplet de divers voyages, pela actualidade, pela crueza com que trata a mais dura violência (a que não se vê e a que se exprime na insensibilidade) do mundo contemporâneo e tecnológico. As falsas lágrimas de Binoche são o choro contido de uma sociedade perdida e desesperada por sair da sua zona de conforto. Sem moralismos, aqui, ainda que de forma não contraditória, tudo se pode considerar ambivalente ou até mesmo desconhecido, como trata o título original – pois, apesar de descrever uma realidade que nos é demasiado próxima, o austríaco parece criticar e responsabilizar todas as guerras, toda a manipulação e até mesmo toda a indiferença à Babel que não sabe educar ou educar-se. E, após uma arrepiante sequência contextualizada num metropolitano (que vos deixo em baixo), como se entrássemos num filme de Hitchcock, tudo começa a culminar estranhamente, como que a antecipar um negro, negro fim. Mas, em vez de terminar, a obra, sem dúvida de arte, estende-se e sai à nossa actual existência, deixando-nos a oportunidade para acabar o filme, para desvendar um código que, mais que incógnito, é inteligível e, logo, passível de ser aproveitado em prol de uma positiva mudança de postura, que é necessária na humanidade que corre demasiado depressa. Absolutamente obrigatório.
9/10

Curtas de Tarkovsky (3) - "O Rolo Compressor e o Violino"

Em dia de aniversário (se Andrei Tarkovsky fosse hoje vivo celebraria o seu 78º aniversário), deixo hoje aos leitores a terceira e última curta-metragem do autor - "O Rolo Compressor e o Violino" (Каток и скрипка ou Katok i skripka, em russo), apresentada na URSS no dia 30 de Dezembro de 1961 como filme de final de curso, apesar de produzido pelos estúdios da Mosfilm. Trata de uma amizade entre um aprendiz a violinista - o jovem Sasha, interpretado por Igor Fomchenko - e um operário de rolos compressores - Sergey, encarnado por Vladimir Zamansky. Escrito entre 1959 e 60 por Tarkovsky e Andrei Konchalovsky, este filme magistral, formalmente retratado pela poesia imagética e narrativa que determinaria o futuro da carreira do nosso cineasta, mereceu a condoração do instituto com a classificação de отличный, que é o mesmo que dizer "excelente", a mais alta possível, e o primeiro prémio num festival nova-iorquino para cinema estudantil. De facto, estamos aqui perante uma obra de uma beleza que marcaria o início de uma brilhante carreira, que poderá ser vista, integralmente, no Youtube e aqui, com legendas em inglês.





sábado, abril 03, 2010

Curtas de Tarkovsky (2) - "Hoje não haverá saída livre"

"Hoje não haverá saída livre" (ou, se preferirmos, Сегодня увольнения не будет... / Sevodnya uvolnyeniya nye budyet), título abreviado do literal "Hoje não poderemos abandonar as nossas posições", é o segundo filme de Tarkovsky enquanto estudante do actual Instituto Cinematográfico da Federação Russa (VGIK), que realizou, em 1959, com o seu colega Aleksandr Gordon. Com duração aproximada de 46 minutos, esta média metragem debruça-se sobre o exército soviético durante tempos de paz, glorificando-o, o que nos parecerá estranho se tivermos em conta toda a filmografia do cinesta russo. Na verdade, e ao contrário do precedente "Os Assassinos", este filme teve o apoio financeiro da televisão soviética, que esperava um filme de propaganda para ser exibido no aniversário da capitulação da Alemanha nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Isto permitiu que os dois realizadores pudessem filmar actores profissionais (como é o caso de Oleg Borisov) e tivessem disponível armamento e figurinos relativos ao exército. As filmagens, que tomaram três meses do tempo em Kursk, viram-se editadas posteriormente durante um igual período de doze semanas. O resultado interessante pode ser visionado na íntegra, com legendas em francês (em baixo dos vídeos) e em inglês (em cima), no Youtube e aqui:





sexta-feira, abril 02, 2010

Curtas de Tarkovsky (1) - "Os Assassinos"

"Os Assassinos" (Убийцы ou Ubiytsy no russo original) foi o primeiro filme com a mão de Andrei Tarkovsky. Trata-se de uma curta-metragem de 19 minutos realizada enquanto estudante da VGIK, co-assinado pelos colegas Marika Beiku (com quem realizou as duas primeiras cenas) e Aleksandr Gordon (que realizou a terceira e última), devido a falta de equipamento que levou à decisão de trabalhos em grupo. É a adaptação de um conto de Ernest Hemingway escrito em 1927, escolhido pelo próprio Tarkovsky, que montou com os outros dois o cenário de um bar norte-americano, na altura visto como sinal de perversidade e atractivo para os jovens. Os actores são estudantes do instituto de cinema, pelo que a câmara e a luz estiveram a carga dos colegas Alfredo Álvarez e Aleksandr Rybin. O resultado esperado foi a congratulação do seu professor, Mikhail Romm. Podemos ver na íntegra esta obra, legendada, no Youtube, em inglês ou castelhano. Aproveitem-na.


quinta-feira, abril 01, 2010

Um passeio tarkovskyano

Sair de casa e passear pelo mundo com o olhar de Andrei Tarkovsky é passear por ele e olhá-lo de uma forma mais diferente, reconhecendo a beleza e a intersubjectividade sensorial que, no final de contas, lhe é inerente. A câmara, contemplativa, meditativa e limpa, mergulhando na nostalgia e destino que todos parecemos compartilhar, é a força nova e viva daquele que quer tratar a condição humana nas suas diversas faces e plenitude. Ingmar Bergman considerou-o o “maior” cineasta de todos, por ter inventado uma “nova linguagem”, captando “a vida como uma reflexão, a vida como um sonho”. Por assim ser, e por reconhecermos a enorme influência que o autor detém nos dias que correm, o blog, durante o mês de Abril (que celebrará o seu 78º aniversário), dedicar-se-á àquele que é um dos maiores mestres do puro cinema.

Андре́й Арсе́ньевич Тарко́вский, nascido, no dia 4 de Abril de 1932, em Zavrazhye (uma vila de Óblast de Ivanovo da actual Federação Russa), foi filho do poeta e tradutor Arseni Alexandrovich Tarkovsky, espectro do lirismo da sua filmografia, e de Maria Ivanova Vishnyakova, licenciada no Instituto de Literatura Máximo Gorki, a quem dedica o filme “Nostalgia”. Passando uma juventude típica mas inspiradora, marcada pela ausência do pai em 1937, onde viria a voluntariar-se para o exército soviético em 1941, Andrei muda-se, com a mãe e irmã Marina, para Moscovo. Durante a Segunda Grande Guerra vive temporariamente com a avó materna em Yuryevets, mudando-se de novo para Moscovo em 1943, onde regressa aos estudos na antiga Escola de Moscovo nº 554 e aprende a tocar piano. Do Outono de 1947 à Primavera de 1948 passa o seu tempo no hospital por causa da tuberculose sofrida, tempo a que se dedicará analisar no filme “O Espelho”. Vive-se no mundo os tempos da Guerra Fria entre o bloco oriental, dominado pela URSS, e o bloco ocidental, liderado pelos EUA. De 1951 a 52 estuda a língua árabe, acabando por não concluir o curso e por realizar uma expedição pelo rio Kureikye até 1954. É, mais tarde, na taiga russa, que Tarkovsky decide estudar cinema, sendo admitido no actual Instituto Cinematográfico da Federação Russa, VGIK, em 1956. Lá, conhece Irma Raush, com quem casa em Abril de 1957. Finda uma época de forte repressão soviética, Nikita Khrushchev, que comandou a URSS, deu espaço para os jovens artistas conhecerem o trabalho exterior. Assim foi que Tarkovsky conheceu os filmes neorealistas, da nouvelle vague, Kurosawa, Buñuel, Bergman, Bresson e Mizoguchi, reforçando o ideal do cinema de autor. Em 1956, realiza o seu primeiro filme como estudante – “Os Assassinos”, uma adaptação de um conto de Ernest Hemingway –, em 1958 produz “Hoje não haverá saída livre” e, em 1959, escreve o guião “Concentrado”. Conhece, neste ano, Andrei Konchalovsky, com quem escreve o guião “Antárctica – Terra Distante” e, mais tarde, “O Rolo Compressor e o Violino”, que realiza, em 1960, no seu final de curso, vencendo o primeiro prémio de um festival nova-iorquino para cinema estudantil, em 1961. Um ano mais tarde, realiza a sua primeira obra (uma obra-prima por sinal): “A Infância de Ivan”, calhando por receber o cobiçado Leão de Ouro, em Veneza, e por coincidir com o nascimento do seu primeiro filho, Arseny (ou Senka, como lhe chamava), no dia 30 de Setembro. Em 1965 realiza “Andrei Rublev”, uma biografia do maior pintor russo de ícones, frescos e miniaturas para iluminuras, que viria a ser lançado na URSS em 1971 (numa versão cortada, dada a forte censura) e a ganhar em Cannes o prémio FIPRESCI, em 1969. Divorcia-se em 1970 de Irma, casando, no mesmo ano, com Larissa Kizilova (produtora de “Andrei Rublev” com quem vivia desde 1965) e tendo, também no mesmo ano, o filho Andrei Tarkovsky Jr., no dia 7 de Agosto. Em 1972 lança “Solaris”, que, em Cannes, é nomeado para a Palma de Ouro e vence o Grande Prémio Especial do Júri e o prémio FIPRESCI. De 1973 a 74 produz “O Espelho”, cujo argumento tinha já iniciado desde 1967 sob os títulos “Confissão”, “Dia Branco” e “Um Branco, Branco Dia”. Por se considerar dotado de uma natureza elitista, as autoridades soviéticas categorizaram o filme como de terceira categoria, o que implicava sérias dificuldades de distribuição. Isto motivou a que, mais tarde, o cineasta saísse da indústria russa e fosse para o estrangeiro. Em 1975 escreve o guião “Hoffmanniana”, inspirado na vida do poeta alemão E. T. A. Hoffmann e, no ano seguinte, produziu “Hamlet” em teatro, em Moscovo. “Stalker”, vencedor do prémio ecuménico do júri em Cannes, apresentado em 1979 após sérias dificuldades de produção e na vida pessoal do autor (no ano anterior, Abril, tinha este o seu primeiro ataque cardíaco), marcava o fim da sua carreira na União Soviética. Isto porque no mesmo ano, Tarkovsky iniciava o seu novo projecto (chamado “O Primeiro Dia”, contextualizado na Rússia do século XVIII que, de modo a não ser censurado, viu ser entregue um argumento às autoridades diferente do original, que criticava o assumido ateísmo da URSS). Este fora, contudo, interrompido pelo “Goskino” (o órgão que regulamentava o cinema estatal), quando se apercebeu da falsidade do argumento entregue. Tarkovsky, furioso, desistiu do filme e partiu para outro, “Tempo de Viagem”, documentário para a RAI que, passado em Itália, co-assinou com Tonino Guerra, e escreve “Nostalgia”. Após dois anos de viagem pelo Reino Unido e Suécia, regressa a Itália e filma-o, completando-o em 1983, vencendo, em Cannes, o Grande Prémio Especial do Júri, o prémio FRIPRESCI e o ecuménico do júri. Apenas não levou a Palma de Ouro pelas advertências das autoridades soviéticas. Por este facto, Tarkovsky decidiu jamais voltar para o seu país de nascença, pelo que o seu filho, Andrei Jr., foi impedido de sair da URSS. No mesmo ano, prepara a ópera “Boris Godunov” na Royal Opera House, em Londres e planeia a sua última e grande obra: “O Sacríficio”, que, em Cannes, apresenta em 1986, após lhe ter sido diagnosticado um cancro terminal no pulmão. Sobrevivia à doença em Paris, ao lado da sua mulher e filho cuja saída da URSS é, enfim, permitida. Os três mesmos prémios no festival de sul de França são, portanto, recebidos pelo filho de Tarkovsky, dado o seu frágil estado. Após, no dia 15 de Dezembro de 1986, ter escrito a última entrada do seu diário (“mas agora não tenho forças que cheguem – é esse o problema”), Tarkovsky morre no dia 29, sendo enterrado no dia 3 de Janeiro do ano seguinte. A polémica instalou-se, contudo, com a causa da morte do cineasta, da mulher e do actor Anatoli Solonitsyn – foi indicado o cancro como a mais provável, até surgirem suspeitas que a KGB os teriam envenenado.

Assim se procedeu a atribulada de Andrei Tarkovsky. Mais que um cineasta, foi um filósofo das imagens, um visionário que deambulou pelas questões essenciais da vida, tratando a metafísica das coisas simples que, pela sua particularidade, contêm a maior universalidade e intemporalidade de todas.